Malu soltou os nervos que, relaxados acomodaram-se uns aos outros. O que poderia fazer para que os instantes se tornassem reais, menos fantasiosos? Teria apenas que agir dentro do padrão da normalidade em que a sociedade, aparentemente, ditava as ordens. Agia aos olhos alheios, trajando toda a burguesia acumulada desde o berço. Sua intransigência levava-a a tomar atitudes que nunca pensara ousar. Num movimento despreocupado, jogou os cabelos para trás, sentou-se em frente ao micro e pôs-se a trabalhar, colocando de lado suas fantasias e dúvidas sexuais.


Deitada, olhava o teto branco. A fumaça do cigarro evaporava-se no ambiente quente do quarto. Soltou um suspiro baixo, ouvido apenas por seu coração, que batia lentamente angustiado.


Apagou o cigarro no cinzeiro em cima do criado-mudo inundado de copos, maço de cigarros, isqueiro, garrafas de uísque, e virou-se para o lado do companheiro. Valdo dormia respirando sossego, pouco se importando com ela.


Malu queimava de desejo na manhã que aos poucos se punha entre as persianas, revelando os raios de sol. Num único gesto leve, descobriu o corpo do amante. Apesar da idade, talvez mais de sessenta anos, Valdo tinha um físico desejável. A princípio Malu encantou-se com ele. Vendo-o nu sob seus olhos, ficou perguntando a si mesma o que ele tinha de tão especial. Talvez a penugem branca do peito descendo pela barriga ainda rígida e inundando a virilidade que, neste momento, imóvel, trazia um certo aspecto de mistério.


Brincando sem motivo aparente, Malu segurou entre seus dedos finos e longos, de unhas pintadas, bem cuidadas, o mistério que a encantava. Como não demonstrasse nenhum impulso elétrico, levou-o à boca e levemente comprimiu os dentes. Nada aconteceu. Sem pensar nas conseqüências, comprimiu com mais força, até sentir os dentes penetrarem na carne mole. Valdo despertou com um grito:


— Merda! O que você está fazendo? Quer me capar?


E correu para o banheiro com a mão entre as pernas. Abriu o chuveiro e deixou a água fria aliviar a dor, na tentativa de estancar o sangue.


— Filha da puta. Está pensando o quê? — gritou.


Não ouviu resposta.


Sentado na banheira, bem embaixo do chuveiro, não sentindo mais dores, recebeu Malu que, nua, entrou e sentou-se em seu colo.


— Como você é louca — sussurrou no ouvido dela.


E mais uma vez, entregaram-se ao impulso que os unia: o prazer de sentir o desejo trespassando suas carnes unidas.

 

 

 

 

*

 

Ela esperava. Já estava no segundo cigarro. O que será que ele fazia no banheiro? Por ela tudo bem, tinha o tempo que fosse para esperar. Precisava fazer a abordagem com outro esquema. O esquema atual não funcionava direito. Tinha seus momentos de êxitos, porém a maioria era negativa. Como agora.


— Você pode esperar um pouco? Vou até o banheiro e já volto — ele pediu logo que entraram no quarto.


— Tudo bem, fique à vontade — disse ela.


No entanto, o cara ultrapassava seu limite de paciência. Nervosa, fumava o terceiro cigarro que amassou no cinzeiro sujo em cima de um móvel capenga. Sentia-se irritada. Decidiu ir embora. Jogou as pernas para fora da cama e pegava o vestido quando o ouviu dizer:


— Você está como eu pedi?


— Sim, estou — respondeu.


— Só de camisola?


— Sim, só de camisola — droga! o que esse cara está aprontando?


— Posso te pedir mais uma coisa? — gritou ele atrás da porta fechada.


— Pode.


— Você não vai rir?


Rir! Por que rir? Curiosa, respondeu malcriada:


— Não vou não, porra!


— Está bem, vou abrir a porta bem devagar.


Cacete, o que esse cara está aprontando? Preparou-se, colocou o corpo em guarda.

A porta do banheiro foi abrindo, bem devagar. A  lentidão estava dando-lhe nos nervos. Quis gritar para que andasse logo. No entanto, ficou à espera.


E a figura que viu saindo do banheiro foi tão grotesca, tão ridícula, que ela não pode segurar a gargalhada.


— Porra! Você prometeu não rir.


— Ai meu Deus, desculpe, sinceramente, desculpe, é que nunca passei por uma situação dessa.


Ela não conseguia se controlar, a gargalhada vinha lá de dentro num ímpeto e saía disfarçada em risos seguidos.


O cara, da porta do banheiro, ameaçava-a, rispidamente:

 

— Você prometeu que não riria e, além do mais, estou lhe pagando, não estou?

— Sim, está — ela respondia colhendo o fôlego entre as risadas — desculpe, mas se você tivesse... por favor, não se irrite... se tivesse me prevenido, acho que seria melhor... não acha?


— Parece que você não tem sensibilidade. Não tem fantasia nenhuma?


— Sim, tenho, mas não esperava isso. Ver um homem másculo como você, peludo, vestindo camisola e calcinha... ah! desculpe, tá?


— Tudo bem, vamos fazer de conta que nada disso aconteceu, está bem? Vou entrar no banheiro e sair como se fosse a primeira vez.


— Tudo bem...


O cara entrou no banheiro, fechou a porta. Ela enfiou o rosto no travesseiro e riu, riu, riu. Até chorar, molhando a fronha.

 

 

 

*

 

O jantar de fim de ano estava, como sempre, animado. Os mais audaciosos enfrentavam a pista, soltando-se ao comando do álcool como se fossem os astros principais da festa. Aureliano tentava umas passadas, junto com uma sirigaita loira, que rebolava descaradamente colada a ele. Levado pela euforia da bebida, esquecera até o propósito de conquistar Malu.


Com seu olhar de lince, ela notou que estava sendo deixada de lado por aquela lambisgóia. Aureliano se esquecera dela. Mas como pantera que sabe dar o seu golpe na hora certa, Malu esperava o momento oportuno. Foi para o meio da pista e, sem se importar de estar dançando sozinha, aos poucos foi se achegando ao casal, que despudoradamente colado, dançava quase parado, mal mexendo os pés.


Subitamente, viu-se perto deles. A loira oxigenada, com a cabeça apoiada no ombro do parceiro, com os olhos fechados, não viu Malu colada às costas de Aureliano. Num repente, sem pensar no que fazia, a mão dela correu pelas costas dele, e lascou um beliscão em sua perna. Aureliano soltou um grito abafado, largou a loira oxigenada e virou-se, pronto para brigar, quando deu de cara com Malu, que sorria para ele. Desconcertado, sem saber como agir, ficou parado com a mão no ar, vendo Malu se dirigir à mesa. Teve a intenção de segui-la, porém a loira o segurou. Com raiva, deu um safanão quase a derrubando e, tropeçando na indignação, chegou até a sua mesa. Correu o olho pelo ambiente. Não via a Malu.


No entanto, do seu lugar, Malu controlava todos os gestos dele. Agora, é só esperar mais um pouco e o peixe estará fisgado, ela pensou ao pedir outra bebida.


Nisso o show foi interrompido.


— Por favor, atenção. Aproximem-se, vamos começar o sorteio dos brindes.


A frente do palco foi tomada pelo pessoal que entre gritos e assobios, reclamava que já era hora.


Foi então que Malu viu Aureliano andar em direção ao toalete.


Não perdeu tempo. Levantou-se, atravessou o salão e alcançou Aureliano antes de ele entrar na ala masculina. Rapidamente, puxou-o pelo braço e, sem lhe dar tempo de perceber o que estava acontecendo, arrastou-o para o banheiro feminino. Entrou com ele no box e trancou a porta.

  
Aureliano, meio embriagado, com gestos lentos, mesmo assim notou que estava sendo conduzido. Não esboçou nenhum gesto, deixou-se ser levado. No box fechado, entregou-se à luxúria feminina, sugando todos os prazeres que o instante proporcionava. Revezaram-se nas carícias, ora um dominando, ora outro se entregando. Por sorte, durante o tempo em que ficaram no box, ninguém entrou no banheiro, e o pessoal continuava entretido com o sorteio que ainda se desenrolava quando Malu, sorrateiramente, saiu do banheiro.


No dia seguinte, corria um boato na empresa: Aureliano foi visto completamente nu, procurando o carro no estacionamento vazio do restaurante, depois da festa.

 

 

 

 

*

 

Não adianta gritar mais, pensou. Ninguém me ouvirá, disse para si mesma. Apesar de estar com a boca meio amordaçada, Selene sentia o pescoço dolorido de tanto virar a cabeça de um lado para o outro. Sonolenta, os braços adormecidos, as pernas bambas, conseguia ainda raciocinar. Há quanto tempo estava ali? Não sabia. Com os olhos vendados e a boca amordaçada, pouca coisa conseguia perceber. Notou um líquido que lhe escorria pelas coxas. Fora estuprada, pensou, ao reavivar um pouco a memória. Sim, fora estuprada.


Completamente nua, imobilizada na cama — pelo menos no que parecia ser uma cama —, com os pulsos e os tornozelos amarrados, sem conseguir se mexer, sentiu o peso de um corpo penetrando-a, a princípio lentamente, depois, com tal violência, que chegava às raias da loucura. Ao mesmo tempo uma boca macia, de lábios suaves e úmidos, roçava seu rosto, seus lábios, pescoço, seios, sussurrando palavras desconexas, que a deixavam excitada. Sua mente, num marasmo de lucidez e sombras, esforçava-se para não perder os sentidos. Mas havia momentos em que Selene apagava e era tragada pelo desconhecido torpor. Num instante de lucidez, percebeu que fora virada de bruços e estava sendo penetrada, mas que estranho, não era por homem, e sim, por mulher. Travesti? Não, isso não, tentou gritar. Foi então que sentiu um pênis de borracha levando-a a gozar mais uma vez.


Uma aragem fina arrepiou sua pele. Estava com frio. Tentou cobrir-se, mas não achou nada. Noutro instante de lucidez, Selene notou que estava deitada em algo gelado, parecendo cimento. Seria calçada? Um banco de praça? Não teve tempo de responder. Caiu novamente no sono.


Acordou com um bafo quente e fedido em seu pescoço. Empurrou a cara barbuda que espetava seus seios nus. Conseguiu sair debaixo de um corpo magro, nu, fedido, molambento. A cabeça doía. Como fora parar ali, no meio da praça, nua, ao lado de um mendigo que nunca vira, abraçado a ela e também nu? Meus Deus, o maldito do mendigo transara com ela, aproveitando que estava desacordada. Chorando desesperadamente, ajoelhou-se ao lado do mendigo que, assustado não sabia o que fazer.

Tempos depois, se lhe perguntavam por que não quisera dar queixa na polícia, não sabia o que dizer, isto é, sabia sim, mas não queria quebrar o prazer, pois apesar de ter reconhecido o fato como uma vingança bem feita e, pior, sabendo quem fora o autor, ou autores, ela havia gostado.

 

 

 

 

*

 

O caroço de azeitona rodopiou no ar e caiu bem no decote de Malu, que gritou assustada. Brunildo, do outro lado da mesa, riu. Não esperava acertar em cheio.


— Cretino, isso é coisa que se faça?! — Malu tentava tirar o caroço de dentro do sutiã.


Brunildo ria e se preparava para jogar outro caroço, quando foi acertado em cheio, no rosto, por uma rodela de pepino.


— Ah! é guerra que você quer?


Pegou a saladeira e despejou-a na cabeça de Malu que, por não esperar tal reação, tremeu toda ao sentir na pele a salada percorrendo sua pele, tornando-a avinagrada.


— Hum, que delícia, agora dá gosto comer essa salada — falou Brunildo, jogando a saladeira para o alto que, ao cair no chão, espatifou-se em mil pedaços.


— Ai, minha saladeira! — gritou Malu.


Mas já era tarde. Brunildo, por atrás da cadeira de Malu, começou a beijar-lhe e lamber ao mesmo tempo a salada, ou o que ficou em Malu. O gosto de vinagre, sal e azeite foram temperando aos poucos seus movimentos lentos, proporcionando prazer aos dois.


Malu tentou reagir, porém acabou entregando-se e, sem que Brunildo percebesse, pegou o pote de saladas de frutas e despejou tudo em sua cabeça.


Brunildo, sentindo o gelado das frutas junto com o vinho, arrepiou-se todo, e no entanto, não perdeu a calma, continuou nos gestos precisos e suaves a envolver seus corpos.


Com cuidado, tirou o short e a camisa de Malu e esfregou uma folha de alface na pele aveludada da amante, começando pelos seios que, excitados, tremiam ao sentir a folha raspando seus bicos.


Chegando ao umbigo, Brunildo pegou um gomo de laranja e o espremeu para depois sugar todo o líquido ali depositado. Malu, excitada, úmida de prazer, tirou a calcinha, e ofereceu-se àquele banquete, pronta para ser devorada com gosto. No entanto, Brunildo ajeitou as folhas, o pepino, o palmito mais a laranja, o mamão, a maçã e o abacate, entre as pernas de Malu.


— Não se mexa, fique com as pernas fechadas.


Assim que tudo estava arrumado, temperou com sal, azeite e vinagre, mexendo um pouco. Depois, num processo lento, tirou as calças, a cueca, e deitou-se por cima dela, colocando seu sexo no meio da salada que Malu ofertava. Assim ficaram por vários minutos num vai-e-vem vagaroso, até que não agüentaram mais.


Nesse momento, Brunildo saiu de cima de Malu e ajoelhou-se ao seu lado. Literalmente, começou a comer a salada afrodisíaca, provocando-lhe um prazer enlouquecido. Saboreou com gosto, até aparecer a mata escura da gruta, onde com sua brava espada, penetrou-a por várias vezes.


Cansada, porém satisfeita, Malu virou-se para Brunildo e beijou-o longamente, em sinal de agradecimento. Brunildo, por seu lado, também satisfeito, sentiu uma quentura amorosa no beijo de Malu, o que não demonstrou, pois estava se apaixonando.


Abraçados, cansados, num sono leve e suave, não viram o sol expulsando, com um beijo quente, as sombras dos seus corpos deitados no chão da cozinha.

 

 

[Do livro A dama do metrô, inédito]

 

 

 

 

(imagens ©guy bordin)

 

 

 

 

 

Osvaldo Pastorelli (Rio Claro-SP). Poeta e artista plástico, vive em São Paulo, onde se casou e nasceu sua maior obra-prima: Caroline. Foi publicado em várias antologias. Coordena, juntamente com os poetas Carlos Eduardo Savasini e A. Bittar, o projeto "Rascunhos Poéticos", aos sábados, na Casa das Rosas — Espaço Haroldo Campos. Tem contos e crônicas publicados no Anjos de Prata e no Recanto das Letras. Edita o fotoblogue É verdade.