A DEUSA

 

 

Comeu-o com muito gosto, estalando a língua e gemendo de prazer. Mas não o fez de maneira selvagem. Ao contrário, foi bastante cortês.

 

Comeu-o aos poucos, com requinte e sabedoria. Dispôs igualmente de todas as partes, sem rejeitar nenhum ossinho, por miúdo que fosse. Aproveitou tudo tudo, inclusive os dedos dos pés.

 

Sugou primeiro os lábios carnudos, suspirando delicado.

 

Quando mordiscava o lombo, gemeu alto. Ao chupar a coxa, quase perdeu a compostura.

 

Perdeu a compostura ao lamber as partes tenras. Sacrificou-o em grande estilo, arrancando-lhe as vísceras sem sombra de culpa ou tardio remorso. Mas o momento de gozo ela viveu ao devorar-lhe a cabeça.

 

Ele perdeu a pele, as carnes, ficou nu por fora e por dentro. Mas ela não teve dó. Arrebatara seu coração. Enfim.

 

 

 

 

DUAS MANEIRAS DE SER FELIZ

 

 

Esquizofrenizou-se às seis horas da tarde ao som da Ave-Maria, quando uns anjos lhe disseram que largasse tudo e fosse pro convento seduzir a pequena Flor-de-Liz, enquanto outros aconselharam que ela se dirigisse imediatamente ao shopping mais próximo e comprasse lingerie de cor vermelha — aquela com abertura coincidente com as aberturas de nascimento — e subisse pros altos da Avenida Afonso Pena que sim, ela estaria perto do céu.

Então Marilene deu dois passos pra frente, dois pra trás e ficou paralisada, ouvindo as vozes cada vez mais perto.

 

Belo Horizonte, 15/08/02

 

 

 

 

O SALVADOR

 

                           

Então ele me tocou e eu fiquei curada.

O véu da cegueira se rasgou e eu vi: o tisnado da pele, o veludo dos olhos. A saturação do melado: rapadura batida e rebatida, em calor absoluto. Os lábios exatos — café claro e duas pitadas de chocolate.

Lembro antílopes e tigres e esquilos.

Meu sorriso rompe o gelo, não dói.

Meus  membros vencem a crosta de gesso, não sou uma estátua.

Abro as vidraças.

Ensaio passos de uma nova dança, ouvindo uma música que nem mesmo sei se existe.

Porque ele me assiste.

Fevereiro, 2003

 

 

GOLPE DE NAJA

 

 

Eu nem perguntaria o nome dele.

 

Iria para um canto qualquer, um vão de escada e, na pressa, talvez fizesse em pedaços a camisa azul.

 

Minhas mãos aflitas procurariam o caminho e abririam o zíper enquanto eu esfregaria minhas tetas no corpo trêmulo e meteria a perna atrevida entre  as pernas do homem, revolucionando os quadris.

 

Era o que eu pensava naquele carnaval, sentada com os outros em torno da imensa távola redonda, enquanto o macho ao lado, um perfeito estranho, corria a mão pela minha coxa e me lambia a cara com sua língua  fogosa.

 

Não quis ver-lhe o rosto, não me virei, nada fiz. Apenas imaginava a cena e seus desdobramentos. O golpe de naja, o salto primitivo.

 

Então, num sobressalto, acordei.

 

Fevereiro ou março, 2003

 

 

 

 

LABORES

 

 

Ele, um touro de forte. Ela, mignonne, franzina, uma pluma. Criatura mínima, mas disposta, cheia de calores, um vulcão prestes a expelir salsa-ardente.

 

E assim foi: ele abre caminho na terra revolta e tenra.

 

Cavouca fundo, com precisão.

 

Cavouca calmo, mantendo o ritmo certo.

 

Vai quebrando resistências em meio aos ais, explora a mina, conquista reentrâncias.

 

Vai umedecendo o túnel estreito, enquanto o fogaréu pouco a pouco se alastra, do centro para outras glebas.

 

Eventualmente, ele desbloqueia a saída e respira a paisagem. Com volúpia, saboreia os arredores.

 

Até plantar a semente em jatos tensos, na justa hora.

 

O gozo germina e ela nunca mais esquece.

 

Belo Horizonte, 2003

 

 

 

 

[Do original  "Visões do Paraíso"]

 

 

 

 

(imagens ©pedro paulo domingues)

 

 

Branca Maria de Paula (Aimorés-MG). Escritora, fotógrafa e roteirista. Premiada no 3º Concurso Nacional de Contos Eróticos da Revista Status, em 1978, teve o texto censurado na íntegra. Publicou seu primeiro livro — A Mulher Proibida — em 1980. Depois de várias obras direcionadas ao público infanto-juvenil, em 2005, lança Fundo Infinito — contos eróticos. Participa de diversas antologias. Entre elas, Intimidades (Dez contos eróticos de escritoras portuguesas e brasileiras). Vive em Belo Horizonte, Minas Gerais.