©julia fullerton batten
 
 
 
 
 
 
 
 

Em um estudo de 1935, Mário de Andrade discutiu magistralmente o erotismo dos poetas românticos brasileiros, descobrindo que o mínimo denominador comum de autores táo diferentes quanto Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu era o medo de amar1. Nascido de fontes diversas e com atualizações diferentes em cada poeta, era esse sentimento que, segundo o crítico, originava outras atitudes românticas conhecidas: o excessivo respeito à figura feminina, a conseqüente idealização que excluía a plenitude de sua sexualidade, e — última tentativa de superar a fobia do amor — a desabusada insistência no tema da mulher decaída, prostituída.

No que se refere especificamente a Álvares de Azevedo, Mário diz que em sua obra "todas as mulheres [...] se não são consanguineamente assexuadas (mãe ou irmã), ou são virgens de quinze anos ou prostitutas, isto é, intangíveis ou desprezíveis". Centrando a atenção no primeiro termo dessa oscilação, Mário de Andrade mostra como o poeta é obcecado pelo tema do regresso ao seio materno e, mais importante, como, "na descrição dos amores sexuais, Álvares de Azevedo encontra repetidamente imagens da maternidade". Prosseguindo na análise, Mário chega àquilo que considera "a mais original invenção do seu lirismo": o sono. E de fato o crítico nos mostra que em Álvares de Azevedo abundam exemplos de situações em que ou o poeta ou a amada (ou ambos) adormecem ou são retratados dormindo, sem que o sono tenha o estatuto de uma metáfora para designar a relação sexual: é sono mesmo. Dentro desse tema capital, Mário de Andrade chama a atenção para a mais importante variação: o motivo da amada adormecida, que o poeta ou seu herói pode beijar, contemplar e amar sem medo.

O sono tem realmente um papel importante na obra de Álvares de Azevedo, e as situações, sentidos e implicações do ato de dormir devem merecer a maior atenção, se quisermos traçar um quadro geral e compreensivo do caráter muito particular de sua poesia amorosa.

 Em primeiro lugar, como Mário de Andrade assinalou, o sono é sem dúvida um modo de evitar que o desejo emergente encontre realização carnal. Na maior parte dos casos em que tem essa função, ele é a peça central na estratégia de relacionamento com um tipo muito definido de mulher: a virgem idealizada, que pertence ao mesmo universo da mãe e da irmã. Há outras situações, porém, em que o poeta adormece junto à amada, que trataremos de expor adiante. Por enquanto, observemos que o oposto desse sono inevitável é a insônia febril, em que o poeta (ou seu herói), totalmente tomado pelo desejo sexual, vê-se obrigado a penetrar em um universo degradado e pecaminoso — o bordel — onde, submetendo-se à "sina fatal" que é a paixão física, vai "naufragar nas solidões do crime". As citações são do poema intitulado "Oh! Não maldigam", que exemplifica o que vimos expondo. Lá o jovem protagonista só conseguirá dormir depois de ir "ao lupanar pedir um leito" e de "buscar a convulsão no seio da perdida". Tal procedimento tem por conseqüência o remorso e o sentimento do pecado, mas é inevitável, uma vez que não há outra opção para o "mancebo exausto" superar a feroz oposição que há entre seus impulsos e seus afetos. É esse o argumento utilizado pelo poeta que repetidamente intercede pelo jovem devasso:

 

                   Se ele poeta nodoou seus lábios

                   É que lhe fervia um coração de fogo,

                   E da matéria a convulsão impura

                   A voz do coração emudecia!

 

 

Passada a "convulsão da matéria", porém, liberto e purgado do desejo, o protagonista adormece ao relento, fora do prostíbulo, e o sono em que mergulha torna possível que um anjo, uma nuvem, uma figura desrealizada e maternal se velha juntar a ele:

 

                   E o corpo adormecia e repousava

                   Na serenada relva da campina,

                   E as aves da manhã em torno dele

                   Os sonhos do poeta acalentavam;

 

                   Vinha um anjo de amor uni-lo ao peito,

                   Vinha uma nuvem derramar-lhe a sombra,

                   E a alma que chorava a infâmia dele

                   Secava o pranto e suspirava ainda!

 

Como vemos, o sono e sua ausência pertencem a pólos distintos na oposição matéria/coração. A insônia, juntamente com a meretriz e o sexo, pertence ao universo do desejo; o sono, com a figura feminina desrealizada e o amor maternal, ao universo da afeição — mundos esses que o poeta quase sempre se esforça por separar cuidadosamente. Antonio Candido registrou essa clara distinção presente na poesia de Álvares de Azevedo, e assim se expressou a respeito:

 

A sua obra exprime, com a força ampliada da arte, a condição normal do adolescente burguês e sensível em nossa civilização, mais acentuada ou prolongada nuns do que noutros: a dificuldade inicial de conciliar a idéia de amor com a de posse física2.

 

A ênfase na condição normal mostra o ponto de dissensão entre Antonio Candido e Mário de Andrade, uma vez que este chama repetidamente a atenção para a complicada relação familiar de Álvares de Azevedo. O mesmo vale para a dificuldade inicial, que remete mais uma vez ao motivo do poeta falecido prematuramente, em plena adolescência. Mário, por sua vez, vincula a precoce decrepitude sentimental do poeta, bem como sua morte, a uma impossibilidade de conciliar esses dois lados da vida afetiva.

Identificadas essas primeiras linhas de articulação, é possível demonstrar que o sono é uma reação que visa a manter separados esses dois domínios do sentimento amoroso, preservando o espiritual do contato com o físico e a prova disso é que quando cessa de haver perigo de confusão entre eles, cessa de haver necessidade de sono. É o que nos mostra claramente o poema que se intitula "C...", que começa decidido e franco, com o amante dirigindo-se à amada nestes termos:

 

 

                   Sim — coroemos as noites

                   Com as rosas do himeneu;

                   Entre flores de laranja

                   Serás minha e serei teu!

 

                   Sim — quero em leito de flores

                   Tuas mãos dentro das minhas...

                   Mas os círios dos amores

                   Sejam só as estrelinhas.

 

A segunda estrofe já apresenta uma queda de tom. Mesmo assim, esse conjunto não tem muitos paralelos em Álvares de Azevedo, pois a exposição direta da sensualidade sem remorsos é nele inusual. O texto se desenvolverá, porém, no sentido de recuperar o registro mais específico do poeta e, como se vê já nas duas estrofes seguintes, a posse física, intensamente sugerida no primeiro bloco, passa a modalizar-se em metáfora do casamento, da união sacramental. E se aí ainda se refere a nudez da mulher. é importante notar que essa nudez aparece ligada ao universo santificado da mãe e da irmã por uma comparação recorrente no poeta, a que teremos oportunidade de retornar mais adiante:

 

                   Por incenso os teus perfumes,

                   Suspiros por oração,

                   E por lágrimas somente

                   As lágrimas da paixão!

 

                   Dos véus da noiva só tenhas

                   Dos cílios o negro véu;

                   Basta do colo o cetim

                   Para as Madonas do céu!

 

Estamos agora exatamente na metade do poema. A amada está nua e deve consumar-se a união. O poeta solta-lhe os cabelos, o que é um símbolo erótico comum, mas o que acontece depois é inesperado: a relação se infantiliza e consiste em um ninar o outro:

 

                   Eu soltarei-te os cabelos...

                   Quero em teu colo sonhar!

                   Hei de embalar-te... do leito

                   Seja lâmpada o luar!

 

Esse é o ápice do poema, porque a seguir se retoma a imagem inicial, despida já da sensualidade brutal que ali se insinuava: as flores de laranjeira são agora apenas emblemáticas e o amante e a amada vão dormir num templo. E embora ele advirta que o templo é o do amor, o que realmente importa é a santificação crescente, que vimos observando, de uma explosão inicial de sensualidade:

 

                   Sim — coroemos as noites

                   Da laranjeira co'a flor;

                   Adormeçamos num templo,

                   Mas que seja o templo do amor.

 

A fraqueza da estrofe é gritante quando comparada à primeira, de que ela é a glosa. Os dois últimos versos, com a adversativa forçada, pois responde a algo que não está no poema, chegam a ser comoventes. E, do templo, passa-se facilmente aos anjos e à anulação completa da sexualidade, em que a amante só o é figuradamente, pois que se redefine como noiva, prometida, intocada:

 

                   É doce amar como os anjos

                   Da ventura no himeneu:

                   Minha noiva, ou minh,amante

                   Vem dormir no peito meu!

 

Agora, afastado e sublimado o amor sexual, o desejo carnal, o sono não é mais necessário e a amada pode, tranquilamente, ficar acordada junto com o poeta:

 

                   Dá-me um beijo — abre teus olhos

                   Por entre esse úmido véu:

                   Se na terra és minha amante,

                   És minha alma no céu!

 

Como se afirma em outros versos, "é loucura os amores por anjos...". Eles acarretam sempre a profanação do objeto amado quando os desejos se concretizam ou mesmo apenas afloram ("Morena": "Mas náo cores! Se queres, afogo / No meu seio o fogoso anelar!/ Calarei meus suspiros de fogo / E esse amor que me há de matar!"). É por isso que o poeta exclama, orgulhoso e desesperado, em Virgem morta:

 

                   Ó minha amante, minha doce virgem,

                   Eu não te profanei, e dormes pura:

                   No sono do mistério, qual na vida,

                   Podes sonhar apenas na ventura.

 

Como dizíamos, o sono — e sua amplificação, a morte — preserva o universo ideal da contaminação, da degradação implícita no desejo sexual, material e impuro. Essa interpretação dá conta de muitas ocorrências temáticas do sono nos versos de Azevedo. É, porém, insuficiente, e incapaz de explicar a também freqüente figura do rapaz que dorme ou morre no colo de uma mulher da vida, quando o ato de dormir deve ter sentido ou função diferente.

Antes de passar à discussão desse problema, devemos lembrar que as figuras femininas têm, na poesia do autor, duas matrizes: ou pertencem à linhagem materna, ou são prostitutas. A insistência com que em sua obra se evocam figuras maternais e puras encontra equivalentes, como Mário de Andrade já mostrou, em outros românticos brasileiros. O que é característico de Álvares de Azevedo é que, nele, a utilização de imagens construídas sobre os atributos da mãe não se dá apenas nos poemas dirigidos a virgens ideais. A imagética materna é por ele muitas vezes utilizada também para apresentar a mulher disponível e socialmente decaída. Em "Glória Moribunda", por exemplo, ela tem a "imagem das Madonas descoradas", é um pálido reflexo da "Madona que nos embala na manhã da vida" (de: "À minha mãe"), enquanto que em "O Poema do Frade" ela se caracteriza, entre outras coisas, por exibir um belo "seio de Madona".

A figura materna, por sua vez, é fortemente erotizada. No já citado "À minha mãe", a madona mais se assemelha a uma Vênus brincando com Amor, pois "ao amor indolente se abandona / E beija uma criança adormecida", e é por ela que o poeta perde o sono e delira de saudades. Ainda nesse poema, ele confessa só querer viver por ela, nos joelhos dela. Ora, estar sobre os joelhos da amada é talvez a maior recorrência na erótica de Azevedo. Era nos joelhos da prostituta que Bocage, em "Glória Moribunda", tentava dormir e encontrar paz: "Quero agora dormir nos teus joelhos"; "Deixa-me suspirar a teus joelhos"; "Bem unida a minha alma em teus joelhos". Vários outros poemas nos mostram que estar sobre os joelhos, abraçá-los, adormecer junto a eles é atitude comum frente à amante e à mãe, qualquer que seja o estatuto da primeira. Mas esse lugar de adoração, de infantilização da figura masculina — que aí se coloca sempre em nível física e psiquicamente inferior ao da personagem feminina — é também, nesse mesmo poema, um lugar de morte, pois são justamente os joelhos maternos que vão surgir aí em alguns dos mais impressionantes versos do poeta — aqueles em que Bocage, moribundo, se dirige diretamente à memória da mãe:

 

                   Maldita minha mãe, que entre os joelhos

                   Não soubeste apertar, quando eu nascia,

                   O meu corpo infantil! Maldita!...

 

Se lembrarmos que logo no início desse poema surge a imagem da mãe abraçando entre soluços o filho morto, que é aí que a meretriz é uma Madona descorada, e finalmente que, apesar das repetidas alusões a relações sexuais entre o poeta e a mulher, o narrador afirma decididamente que nada houve entre eles, começaremos então a perceber uma das constantes mais interessantes da erótica de Álvares de Azevedo: a impotência de amar quando confluem para um mesmo ser os dois impulsos amorosos que se busca manter o tempo todo separados — o afetivo e o sexual.

O texto de “Glória Moribunda” é inconsistente e mal cosido, como vários de um autor que não pôde selecionar o que dele se publicou, mas talvez por isso mesmo permita observar tão bem o processo que nos interessa: como a mulher prostituída — a princípio apenas uma "esponja da vida" de onde a personagem masculina pretende extrair a gota derradeira que talvez aí tenha restado — vai se transformando pouco a pouco num ser angelical ("Minha virgem — irmã — meu Deus!") que suplica ao poeta que a conduza para um estado assexuado e puro ("Levanta-me, poeta, dos abismos / Até ao puro sol do amor dos anjos!"), e termina por maternalmente acalentá-lo:

 

                   (...) E quando a aurora

                   Nos céus de nácar acordava o dia,

                   E nas nuvens azuis o céu purpúreo

                   Se embalava no eflúvio de ventura,

                   Das flores que se abriam, dos perfumes,

                   Da brisa morna que tremia as folhas,

                   Macilenta a mulher no chão da rua

                   Sentada, a fronte curva, sobre os seios

                   Embalava cantando aquele morto.

 

Esse trecho permite, aliás, um paralelo com o final de "Oh! Não maldigam", transcrito acima, pois em ambos a narração termina com a personagem masculina inerte, quando raia a manhã, em um espaço exterior àquele em que se desenvolveu a ação noturna. Mas se em "Oh! Não maldigam" se mantiveram rigidamente separados o mundo do coração e o da matéria, isto é, os dois diferentes impulsos amorosos, e por isso o mancebo sobrevive e termina por se reconciliar com a figura etérea que vem sobre ele, aqui, onde se confundiram as imagens do amor ideal, materno e angelical, com as do amor possível, carnal e prostituído, a personagem só consegue repousar junto à figura materna que o embala quando morre.

A reintegração com a mãe, o retorno ao seu regaço só é possibilitado, no primeiro texto, pela morte do desejo; no caso, pelo seu esgotamento. Como aqui ele se mantém ambivalente ao longo do poema, e vivo, é a morte física da personagem que se exige para que o retorno se consume sem culpa, sem que se configure o incesto, esse terror que assombrou a sua Noite na Taverna3.

É o medo do incesto que faz com que o sono seja um recurso providencial, pois todas as vezes que o objeto sexual se revela de alguma forma semelhante ao objeto afetivo a solução encontrada pelo poeta é o refúgio na inação e na inconsciência4.

O já referido "O Poema do Frade" nos permitirá observar melhor esse processo. De outro ângulo, porém, e com algumas variantes ricas de interesse.

O poema é recheado de versos altamente sexualizados e relativamente realistas, e a narração começa com a confissão de que a história é fantástica:

 

                   Escutai-me, leitor, a minha história,

                   É fantasia, sim, porém amei-a

                   Sonhei-a em sua palidez marmórea

                   Como a ninfa que volve-se na areia

                   Co'os lindos seios nus...

 

Embora tenha ficado estabelecido que a história toda será inventada (e a imagem da ninfa já sugere o tom em que se vazará), a estrofe seguinte se apresenta cheia de culpa ("Não vos pedirei perdão contudo") e logo a seguir nos deparamos com um vitupério contra a crítica (literária, em princípio) construído sobre a imagem da mãe que assassina o próprio filho. Aqui novamente se estabelece o mesmo nexo que em "Glória Moribunda" entre a vivência sexual e a dissolução dos laços afetivos entre a mãe e o filho. No caso presente, a aceitação do sexual implica uma desaprovação, que o poeta desafia e identifica como proveniente da esfera a que o arquétipo materno preside. E toda a seqüência desse "Canto Primeiro", que é na verdade um prólogo à narração que só se inicia no "Canto Segundo", é constituída pelo esforço de esconjurar o anátema materno, insistindo sobre o caráter meramente literário da experiência erótica: uma metáfora ousada faz da imaginação do poeta um navio em que toda a tripulação está adormecida e o próprio narrador se incumbe imediatamente de explicar o porque do sono que se abate sobre o navio: sono e sonho não maculam o sonhador, nem comprometem a pureza de seu amor. Ao longo da subseqüente dúzia de oitavas (repletas de afirmações de que tudo é mesmo apenas sonho e literatura) que completam o cauteloso e necessário prólogo, o mesmo argumento é sempre repisado, o que permite que o "Canto Segundo" se inicie com uma imagem conhecida que conjuga sono, paixão e regresso à mãe:

 

                   Dorme! ao colo do amor, pálido amante,

                   Repousa, sonhador, nos lábios dela!

                   Qual em seio de mãe febril infante!

 

 

Estamos agora em plena fantasia, aparentemente isenta de culpa, em que novas associações com madonas, anjos, virgens tomadas pelo amor divino formam as imagens em que se vaza a narração da troca de "místicos beijos" entre o herói e uma belíssima meretriz (em cujo colo dormia na estrofe citada há pouco), a cópula e o repouso dos amantes satisfeitos, que se nos apresentam integrados à paisagem do nascer do dia.

As novidades dessa parte do poema são muitas, a começar pelo perfeito acordo que aí se observa entre os impulsos místicos e os carnais, acordo que se condensa na mais bela estrofe do poema, uma das poucas, senão a única da Lira dos Vinte Anos, em que o ato amoroso é associado positivamente à fecundidade e à reprodução:

 

                   D'aurora a doce luz, as brisas calmas

                   A lhes passar nos úmidos cabelos

                   Era o sopro de Deus! As duas almas

                   De suave himeneu nos doces elos

                   Tremiam como no deserto as palmas

                   Quando à noite nos cachos amarelos,

                   Entre os florões o vento perfumado

                   Do pólen lhes derrama o pó doirado!

 

Esse clima, porém, é insustentável na poética de Álvares de Azevedo, e a seqüência do texto nos mostra que todos os cuidados do prólogo foram em vão. O sonho rapidamente se transforma em pesadelo e os três cantos subseqüentes impressionam pela incongruência, pela falta de organicidade e pelo amontoado caótico de símbolos do castigo e da maldição. Ali vão comparecer todos os terrores: antropofagia, necrofilia, suicídio, loucura e danação. Ali o fantasma da mãe devoradora comparece em uma forma terrível: a pantera emagrecida que devora faminta os filhos mortos, como a punir a lira profanada pelos sonhos impuros do poeta, que em um dístico brilhante nos apresenta os extremos entre os quais se dilacerou a estrutura do poema:

 

                   Tudo é assim — no sonho o pesadelo,

                   — Em almas de Madona quanto gelo!

 

Desfeita não só a harmonia dos desejos, que tão promissoramente abria o movimento narrativo do texto, mas também a própria coerência deste, eis enfim o narrador de volta à terra firme, dizendo adeus ao mar que o embalava em sonhos, adeus aos amores, cabelos e seios que fingira, e finaliza, identificando a terra e a mãe:

 

                   Terra do amor! ó minha mãe! (...)

                   Na morte a minha fronte macilenta,

                   Inda a ti volverei qual flor à vida!

 

                   Viverei do que foi -- dos sonhos meus! —

                   Da seiva do passado hei de essa flor

                   Regar das quentes lágrimas do amor!

                   E quando a luz apague-se nos céus

                   E o frio coração à dor sucumba

                   Inda murmurarei — adeus! — da tumba!

 

 

Não há, porém, retorno aqui para o poeta que foi longe demais em sua fantasia incestuosa, pois nem a morte, o mergulho no indiferenciado pode, como costuma suceder em outros textos, recuperar-lhe a inocência no retorno ao seio materno, porque a própria tumba na terra-mãe é nesse poema simultaneamente um leito nupcial, tendo, portanto, o retorno um caráter ambíguo e poluto:

 

                   Sono de chumbo, tálamo de terra,

                   Que nódoa negra teu sudário encerra?

 

 "O Poema do Frade" mostra o paroxismo a que pode chegar o terror do incesto, quando não se conseguem manter separados os dois diferentes tipos de impulsos amorosos.

Sua confluência reveste-se sempre, em Álvares de Azevedo, de uma nítida marca de ofensa e corrupção. Por isso o mundo, quando é lugar onde os desejos se realizam, se lhe apresenta como um lugar asqueroso, "um lodaçal", um "cemitério envilecido" ou "um leito infecto", e a vida como "um lupanar imundo", de onde ele só pode escapar (e nem sempre) pelo sono ou pela morte, e onde ele só mergulha cheio de remorso e sentido de maldição.

 Pensamos ter buscado, até aqui, entender de quê foge o poeta que dorme ou morre. Resta-nos indagar se há indicada alguma possibilidade (por remota que seja) de superar a dicotomia dos impulsos amorosos cuja conjugação é para ele pecaminosa.

No caso de Álvares de Azevedo, como já deve ter ficado claro, não há nenhum horizonte, nada que seja equivalente à utopia de outro grande poeta também obsedado pela morte, aquela Pasárgada em que a ternura pueril se possa harmonizar com a plena realização sexual, pois seu amor é sempre insano e irrecuperável:

 

                   Misérrimo! votei meus pobres dias

                   À sina louca de um amor sem fruto,

                   E minha alma na treva agora dorme

                   Como um olhar que a morte envolve em luto.

                                                        ("Adeus, meus sonhos!")

 

Tampouco consegue ele fazer com que a religião seja um lugar redentor em que se neutralize a oposição dilacerada entre o afeto e o desejo, uma vez que o próprio amor divino se lhe representa como uma espécie de consolo pela perda do amor humano e primeiro:

 

                   Meu amor!... foi a mãe que me alentava,

                   Que viveu e esperou por minha vida

                            E pranteia por mim...

                   (...)

                   E agora o único amor... o amor eterno

                   (...)

                   É o amor de meu Deus!

                                                            ("Hinos dos Profeta")

 

 

Além disso, o amor de Deus, como o da mãe, se corrompe ao se misturar ao mundo ("O Poema do Frade", Canto IV, XXVIII).

Ao poeta só resta, portanto, a paralisia amorosa e o lamento por um mundo ideal, anterior à cisão dos desejos e à diferenciação dos objetos amorosos, um mundo de sonhos para sempre perdido:

 

                   Criatura de Deus, ó mãe saudosa,

                   No silêncio da noite e no retiro

                   A ti voa minh'alma esperançosa

                   E do pálido peito o meu suspiro!

 

                   Oh! ver meus sonhos se mirar ainda

                   De teus sonhos nos mágicos espelhos!

                   Viver por ti de uma esperança infinda

                   E sagrar meu porvir nos teus joelhos!

 

                   E sentir que essa brisa que murmura

                   As saudades da mãe bebeu passando!

                   E adormecer de novo na ventura

                   Aos sonhos d'oiro o coração voltando!

 

 

 

[Publicado, originalmente, em "Folhetim", Folha de S. Paulo, 15 de abril de 1988.]

 

 

 

 

Notas