Tal qual Dom Quixote condenado ao ridículo, pasmosamente velho jogando dominó na praça contando façanhas imaginárias; vida deste enganzopador aqui sempre marasmada hã passos contados tudo numa lenteza que só vendo; nenhuma aventura amorosa capaz de estimular a atividade criadora de um cordelista que fosse; nenhum heroísmo miúdo ao menos ufa puxar num átimo braço de cego que atravessa esquina ui peraí sinal aberto; vida toda eclipsado pela proeza alheia; nenhuma noite em claro bebendo fumando jogando bilhar; nunca dia nenhum ligação inesperada ei pai carro bateu perda total peito enfaixado pronto-socorro venha depressa; também diacho arremedei bruxo aquele do Cosme Velho hã não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria; viagem aventurosa neca neres, senhores passageiros mantenham a calma vôo de emergência miniblíblia colete salva-vida tudo à mão lado de trás poltrona da frente meu Deus pane noutro motor; setenta anos marasmáticos eis a verdade; virgindade perdida aos vinte numa zona do interior; três quatro namoradas se tanto; sexo oral anal neca nunca, sessenta-e-nove cantado aí em verso-prosa nem pensar, timidez diacho; velhos safados todos esses companheiros de dominó na praça sabem da patranhice mas vivem pedindo ei Permínio conta outra vez história aquela de quando você quarenta anos atrás...sim suruba na casa dum conde cônsul sabe-se lá; final insosso este envelhecer sem vivência, Sherazade versão masculina inventando histórias para não morrer ao realengo num canto qual lobo da estepe; se pelo menos gravidez daquela namorada há meio século não tivesse sido alarme falso teria história real pra contar, aborto mal-sucedido talvez, morte prematura dela namorada quem sabe provocaria escândalo, médico famoso, teria guardado comigo até hoje recortes de jornais, meu nome neles todos, caixa alta, prova irrefutável; triste envelhecer diacho mais triste ainda depois de velho jogar anzol no passado neca neres de fisgar uma única emoção pretérita; daqui a pouco assim que velharada toda ufa cansar de vez de jogar, ei Permínio conta outra vez história aquela da casa que pegou fogo babá bebê todos presos no quarto de cima você entrou salvou, falando nisso, amigo aí continua devendo diploma honra ao mérito deles Corpo de Bombeiros hem sujeitinho modesto; grotesco demais velhotes gengivas às escâncaras gargalhando zombando um do outro; setenta anos de vida marasmante; nenhuma sogra suçuarana dizendo anos seguidos pelas caladas, querida filha você deveria ter escolhido filho da professora de latim hoje diplomata de carreira mas nem tchum bem-feito agora agüenta o canjirão ao lado dele marido azêmola; nenhum genro canalha para ser pego em flagrante três horas da madrugada com a cunhada no quarto ao lado; nenhuma esposa para dois anos depois de casada colocar uma gotícola de malagueta no meu desde sempre insípido currículo fugindo com um domador de leões; setenta anos de vida tediosa; tivesse comprado realmente três décadas atrás revólver calibre 38 para rebentar cachola dele prefeito que mandou desapropriar casarão da família ulalá pena hoje prescrita estaria lépido fagueiro contando comprovando tudo tintim-por-tintim aí sim queria ver velharada sambanga gracejando rindo a cântaros; setenta anos de vida enfadonha; nenhuma fratura exposta num jogo de campeonato escolar; nenhum puxão de orelha da professora; nenhum coma alcoólico; triste demais fim da estrada olho pro espelho retrovisor neca nada tudo embassado reflexo nenhum; não tivesse faltado, enxaqueca, quando chefe da repartição aquele que trinta e cinco anos atrás chegou na sala gesto tresloucado atirando a esmo huifa história agora seria outra; pronto, dominó por hoje chega hã espero não precisar repetir mais uma vez história dela minha primeira mulher infiel aquela que pressionada pelas circunstâncias se matou, arsênico, sei lá de repente velhote aí colete surrado debutando na praça já leu Flaubert ixe chacotas infinitas.


©rodin

 





Ufa ainda tenho muitos caracteres pela frente mas vou me precipitar não diacho; súbito quem sabe tau! tiro nela têmpora puh acabar de vez com minha vida achamboada aie nada mais existe em respaldo dela existência apre sempre que sento diante dele computador hã puxo da cachimônia coisas assim deste naipe dignas de párias melancólicos; mas qual! melhor pegar caderno de palavras cruzadas... vejamos... torturador tirânico odioso... onze letras... a-hã a-hã... pro-cus-ti-ano; primeiro filósofo a utilizar sistematicamente a argumentação dialética... cinco letras... a-hã a-hã... Zenão; o temor da morte é irracional porque ela morte em si não é algo que possamos experimentar... autor grego... sete letras... a-hã a-hã... E-pi-cu-ro; ixe tempo passando aie ainda tenho muitos caracteres pela frente hã editor pediu sete mil deles apre não sei se devo regredir tanto assim eh-eh quarenta-cinqüenta anos talvez... vejamos... frase desestruturante aquela dela minha mãe arre nunca saiu da cachimônia; tatuagem encefálica parece: SEU PAI É TARADO; impossível desde sempre lançar véu sobre sentença deste naipe assim tão eruptiva; tarde toda andando a trouxe-mouxe pelas ruas; menino ainda onze doze anos se tanto; me sentia desprovido de corporeidade alma inteligência vida forma razão tudo; ela minha mãe azamboada pensou que filho mais velho eh-eh preparado para absorver com madurez devastadora confidência; qual nada; quarenta cinqüenta anos depois frase dilacerante continua rompendo meu equilíbrio; ixe ainda tenho muitos caracteres pela frente; melhor contar também que palavras dela minha mãe tresandavam cebola; expediente inócuo: bafejo etílico sempre foi mais odoroso; também pudera vida feia feito aquela era melhor enxergar tudo fora de foco diacho; sete mil caracteres hã minha vida não vale tanto; para cada assassinato infantil um talho da forquilha; meu estilingue estava assim deles; professorinha huifa água na boca; rasguei bolso da calça grudei cinco dedos nele manzapinho chape-chape-chape huummm gozei de entuviada olhando extasiado joelhos roliços dela; debut digamos onanístico; coisa goguenta aquela na coxa direita durante quase meia hora provocou dia seguinte inflamação cutânea; constrangedor também aie encafurnar trajeto escola-casa mapa da Groenlândia estampado na frente dela minha calça; ainda tenho muitos caracteres pela frente hão editor pediu sete mil deles; ufa calor dantesco assunto mais nenhum ixe melhor tomar banho.

Arre sessentão abdominoso estólido ixe regime urgente aie olhos ardendo hã sempre assim vida toda ih ab initio pimba! vítima delas espumas sub-reptícias; água arrefentada ih chuveiro cafangoso ih preciso comprar outro logo-logo; huummm gostoso esfregar púbis plumoso com xampu; hum diacho solidão mais consultório psiquiátrico aquele cheinho assim de estrabuleguices eh qualquer hora também fico zoropitó de vez; humm gostoso esfregar púbis plumoso; huummm estou sendo possuído pelo fogo de Zeus huifa fogo celeste aquele que enfraquece mas nunca apaga; se ela Camila Pitanga estivesse aqui agora me enxaguando humm veni sanctificator mãos macias dela agora viajando quatro pontos cardeais deste corpo inóxio humm agora elas mãos-ambrosíacas estão roçando minhas virilhas hummm língua dela agora aqui na nuca huuummmm.

Sete mil caracteres puh diacho queria de jeito nenhum falar às escâncaras dela minha vida ixe ele meu pai raça de Otelo vinte anos mais velho que ela minha mãe exe desvairado pelo ciúme; pobre-diaba ano-e-pouco de casada ficou à sobreposse mês inteiro enconchada dia todo em casa; ciúme deles pedreiros trabalhando na construção ao lado; cafrice daquelas; noitinha ele meu pai chegava do trabalho abria portas janelas todas elas trancadas a sete chaves; sete mil caracteres apre; primeiro beijo meu aiuê debaixo dum pé de manga rosa; primeiro cigarro talo seco dele chuchu; pecado grave sim menino hã penitência severa hã vinte pai-nossos quinze ave-marias ah guarde para sempre esta palavra: zoo-fi-lia; sete mil caracteres ufa; hoje quando suspendo todos os afãs ouvindo June Christy lembro da voz dela minha mãe que era cantora cool também; lembranças chegam de cambulhada eita melhor pegar caderno de palavras cruzadas outra vez... vejamos... atitude de quem cria para si mesmo uma personalidade fictícia procurando viver em conformidade com ela... nove letras... a-hã a-hã... bo-va-ris-mo; sem vontade, doente... sete letras... a-hã a-hã a-hã... a-bú-li-co; se dizes que mentes, ou estás dizendo a verdade e então estás mentindo, ou estás dizendo mentira e então dizes a verdade... famosa antinomia dele orador e escritor latino... seis letras... a-hã a-hã a-hã... Cí-ce-ro; ixe tempo passando aie ainda tenho muitos (?) caracteres pela frente; avô materno resmelengo aquele nos estremeços da morte se recusou a falar com ex-esposa penitente; não quis correr uma esponja sobre o passado brumoso dela; avó se meteu numa redoma; recolhimento em si mesmo aquele aconselhado pelos estóicos; morreu seis meses depois de desgosto; mesmo destino fáustico dele Lear; lembranças chegam de cambulhada eita cinco seis sete mil caracteres de lembranças talvez eh-eh; OSTRODIA DEU UM TAR DE ECRIPI DIDIA FICOU TUDU DI NOITE; nunca mais esqueci desta frase dita por ele caboclo berôncio que vez em quando capinava quintal de casa; menino ainda oito nove anos se tanto mas placa na praça principal daquela pequena cidade vizinha hã inextinguível da memória: É PROIBIDO CONSTRUIR CASAS VELHAS; de repente tau! tiro nela têmpora puh acabar de vez com minha vida achamboada aie nada mais existe em respaldo dela existência apre sempre que sento diante dele computador hã puxo da cachimônia coisas assim deste naipe dignas de párias melancólicos; sete mil caracteres; sete céus búdicos; as sete portas de Tebas, as sete taças da ira divina; ufa tempo urge; viver é juntar caracteres pra manter a palavra viva; ixe esqueci dele meu passarinho.

Pulquério querido psi psi psi vem alpiste gostoso vem psi psi psi eh-eh que bom ouvir de novo alto-bom-som seu estribilhar; perco você filhinho vida aí sim fica de lana-caprina; eh-eh vem bobinho trouxe água fresquinha também vem ih menino dissimulado vem dedinho mindinho meu vai fazer faguice no cocuruto emplumado seu vem psi psi psi huummm; contei ene vezes mas não custa nada repetir: meu avô teve um bicudo-maquiné feito você que viveu vinte e seis anos; canto dele huummm Caruso versão passeriforme; arre lá! Papai não gosta quando você faz assim eh esparrinhou água no meu rosto ih menino arrufadiço.

Sete mil caracteres apre queria de jeito nenhum contar hã difícil demais cruel lembrar tragédia aquela que me persegue desde sempre: briga à toa dentro dela sala de aula motivo besta prefiro esquecer detalhes de repente zape lâmina dele meu canivete direto no ventre dele menino; Erígone-Abadon a besta abissal; assassinato chocou cidade inteira; ele meu pai conseguiu abafar caso deixando filho-fúfio dois anos nele internato; vida toda neca neres consigo disfarçar aspecto torvo sombrio; ufa calor dantesco apre abrir a janela.

Doloroso ver indigente solitário ali cheio quem sabe deles solilóquios etílicos hã procurando talvez um sentido metafísico pra ela vida humana; também fico às vezes horas seguidas num banco de praça olhando para lugar nenhum vivendo neles meus desertos imensos; também sou molusco fechado em minha própria casca; indigente solitário ali quem sabe tentando inutilmente descobrir o que Deus é; mas diacho impossível imaginar Algo imaterial invisível sem dimensões nem limites; acho que Deus é invenção de Abraão; sensação estranha cruz-credo vontade súbita de quebrar o fio da vida dele indigente solitário ali quieto indefeso alheio.

Sete mil caracteres ufa tempo urge; amor nenhum nada patavina sombra de sombra apre vida angustiosa alvorotada hã tantos casais aí cidade adentro espocando champanhas trocando palavras dulcífluas lambendo corpos champanhosos xô murmúrio melancólico xô dolorosa inquietude; vejamos... não de jeito nenhum... melhor deletar este parágrafo... ninguém precisa saber que ele meu pai também... ufa o tempo urge; ah sim gostei huifa acho que vou completar os sete mil caracteres com este achado filosófico: solidão tem algumas vantagens como por exemplo ouvir com mais nitidez o som dela torrada estalando no céu da boca.





Evandro Affonso Ferreira é livreiro, ex-proprietário do Sebo Saganara (São Paulo, bairro de Pinheiros).

Livros publicados: Grogotó! (Editora Topbooks, 2000), minicontos, apresentado por José Paulo Paes; Araã! (Editora Hedra, 2003), romance, Erefuê (Editora 34, 2004), romance.
 
Colaborou nas revistas Novos Estudos, Et Cetera, Ficções, Ciência e Cultura, Coyote, entre outras.

Alguns comentários sobre a sua obra
"Evandro Affonso Ferreira revira o mínimo espaço em que trabalha, produzindo peripécia e reconhecimento tragicômicos no desfecho da ação — efeito que obtém, em geral, mediante a coincidência do tempo do enunciado com o da enunciação e a revelação da identidade imprevista do protagonista". Alcir Pécora (Folha de S.Paulo)

"Evandro Ferreira é um escritor de primeira, pronto e acabado. E pessoal". Millôr Fernandes

"Evandro se lança com pleno domínio da linguagem e perfeito conhecimento do gênero". Fábio Lucas

"(...) Sobre a exuberância dessa fala constrói-se, paradoxalmente, a escrita concisa de Evandro Affonso Fereira, que se empenha em transferir para o domínio do conto o ideal do multum in parvo do epigrama". José Paulo Paes

"Guardemos seu nome. Seus contos de estréia são coisas de gênio. Mais que gênio, oxigênio". Deonísio da Silva (O Estado de S.Paulo)

"A transgressão narrativa de uma quase obra-prima". Nelson de Oliveira (Jornal do Brasil)