Pão e Circo

No Coliseu, o urro das famintas feras
O povaréu romano alvoroçava.
O circo mais o pão que alimentava
A Roma augusta das passadas eras.

Ao sinal das trombetas, os escravos
Na saliva da morte agonizavam...
Festejos na tribuna onde brindavam
Tibério César e a súcia de ignavos.

Os caninos cravados no pescoço...
Ventres rasgados expelindo a entranha...
O banquete das feras inclementes...

O brilho rubro aumentava o alvoroço...
Enquanto César, com a face estranha,
Mudo, sorria, sorrateiramente.


A Carpideira

Na sala, emudecido, esquife intransigente,
Com a seda branca e fúnebre aconchegando
O corpanzil do morto, glacial e infando,
Em repouso cansado, exausto eternamente.

Tece preces, a esposa, pelo Miserando,
Enquanto genuflexo, o filho, penitente,
Em alta voz pranteia, sua mão tremente
A soltar do pai a gélida, segue negando.

Enlutados na fila para as despedidas:
Aproximam-se um a um, benzem-se, balbuciam
E prosseguem, por fim, com as almas recolhidas...

Num canto, em espetáculo de encenação,
Soluços teatrais, lágrima financeira,
Concentrada e calma, chora uma carpideira.


O Louva-a-Deus

Manhã ensolarada, primavera:
A lebre célere salta nos prados,
A pomba arrulha em cima dos telhados,
Puxando a folha o inseto persevera.

Na sombra a vigiar, sozinho e cauto,
O louva-a-Deus traiçoeiro e faminto.
Em sua oração chamada instinto,
Espera para a hora de um assalto!

Desatenta a formiga num recanto,
Cai nos braços ligeiros desse santo:
O louva-a-Deus em prece à sua vida.

Agoniza a infeliz na primavera...
Extirpa as patas, o crânio macera,
E fura e corta e rói, a santa comida.

 

 

Madrugada

Há um cansaço na alma
E uma vontade incompleta de não existir.

Em vão eu traço objetivos cegos...
O coração não está cheio, mas abarrotado.

Em vão, tudo em vão...

Quis sempre me superar em tudo,
Superar tudo em tudo.
Quis sempre vencer os limites,
Os limites invencíveis.
Quis sempre esquadrinhar todas as possibilidades
Que estavam além das minhas possibilidades.

Tudo em vão...

Quando desci ao porão
Estava vazio...
Quando subi ao sótão
Estava vazio...
Quando entrei nos quartos
Estavam todos vazios...

Da janela
Olhei o vazio
No lugar da noite...

É sempre esse céu exausto,
A infinda madrugada...

Porque dentro de mim nunca amanhece...


A Muda

Chega um tempo na vida
Em que,
Diante do espelho,
Olhamos profundamente
Dentro dos nossos olhos
E chegamos à conclusão
De que não há mais nada
Que possa ser feito.

Chegamos à conclusão
De que nenhum de nós pode fazer mais nada.
Ninguém pode fazer absolutamente mais nada.

(As mãos sucumbem
E o corpo anoitece...)

É o tempo
Das folhas caírem,
Das flores murcharem,
De o tronco partir.

É o tempo
De brotar a Muda
Em que subsistiremos...

 

 

 
  Odes

I

Não sei se o sonho que tenho
É o sonho que sonho.
A mesma
Chuva que irriga os vales,
Inunda as pequenas aldeias.
A lua sobre os amantes risonhos
É a mesma,
Sombria nos bosques escuros.

III

As tuas esperanças
Deposita-as em ti.
As pedras do teu jardim,
Remove-as.
Planta as tuas sementes,
Varre os teus canteiros,
Rega as tuas árvores.
Não esperes que o vento
Limpe o chão do teu Outono.
Limpa-o tu. Sê teu estro.

VII

Meu coração publicano,
Corrupto cobrador de impostos...
Meu coração fariseu,
Mesquinho doutor da lei...
Meu coração soldado romano com as mãos ensangüentadas,
Pôncio Pilatos com as mãos impecavelmente lavadas,
Caifás com a consciência impecavelmente limpa,
Barrabás impecável.

Lázaro meu coração...

O ladrão
Meu coração
Na cruz.

X

Melhor é a coroa na choupana
Que o esfregão no palácio.
Enfuna as tuas velas,
Conduz a tua jangada:
O parco peixe pescado
É teu.
O mar
Pertence a Deus.


Litania do Corpo

O corpo assim como é salso
É doce assim como é gozo
É assim também doloroso
É do homem o cadafalso.

É o estômago empacotado,
É o pênis enrijecido,
É o intestino retorcido,
É o sêmen ejaculado.

É a morada dos suplícios
Dos temores das fraturas,
Dos tumores das agruras,
Das tormentas e dos vícios.

É também a axila e a mão,
As viscosas reentrâncias
Que recendem as fragrâncias
Com aroma de excreção.

É também a messalina,
Boca cheia de saliva.
A êmese copulativa
Perfumada de endorfina.

É também a febre ardente,
O frio calor nos ossos.
E o bombear dos remorsos
Do coração maldizente.

É também o suor frio
E os artelhos putrefatos.
O nojo em olhar os pratos
E os enjôos do fastio.

É também o combustível
Dos caules e das raízes.
E o sangue das hemoptises
É um adubo imprescindível.

É também a lauta mesa
Dos vermes intestinais,
Das larvas dos funerais:
Empregados da limpeza.

O corpo assim como é salso
É doce assim como é gozo
É assim também doloroso
É do homem o cadafalso.


O Burrico

De campo em campo
Puxando o arado
Lida o burrico
Atarefado.

No lombo o açoite
Sua carne arde
E segue arando
Até mais tarde.

Na faina infinda
Do dia a dia
O arado puxa
Sem alegria.

O arado puxa
Com precisão.
Tal qual um homem
Com instrução.

Do campo falta
Arar um tanto
E puxa o arado
Tal qual um santo.

À noite, pasta
Sozinho, mudo...
Pela manhã
Começa tudo.

De campo em campo
Puxando o arado
Lida o burrico
Atarefado.


Rua Vazia

Noite.
Sob a luz da lua,
O chão de areia pisada.

Os grilos cricrilam no canto dos postes.
Os sapos saltam de mato em mato.

A água turva desce lentamente
A vala
E desemboca no bueiro no fim da rua
Vazia.


Formigueiro

Trabalha a operária.
Soldado. Rainha. Soldo:
Terra monetária.


Ninho

Os piados finos.
O cio. Trilo entre os fios.
Cinco pequeninos.

(Do livro Fim de tarde)

 

(imagens de jan tove johansson e kamil vojnar, respectivamente)

 

Daniel Mazza (30/08/1975, Fortaleza-CE). Poeta, médico, mestre em Ciências Médicas, doutorando em Clínica Médica pela Universidade de São Paulo (USP), atualmente residindo em Ribeirão Preto-SP. Autor de Fim de tarde (Ribeirão Preto, Editora Funpec, 2004). Mais em seu site: www.danielmazza.com.br