©enio squeff. o triunfo de dom quixote, 2006 - 259x409 cm - óleo sobre tela
  
                                                                     
  

 

Houve um tempo em que a palavra "ideologia" ocupava os corações e mentes de forma bem mais abrangente que hoje em dia. Na ambigüidade da expressão, guardava-se que tudo fosse "ideológico" desde a "falsa consciência da realidade",   como definiam os marxistas a religião, as crendices na vitória do bem sobre o mal, a alienação, em suma, até a verdadeira consciência dela, da realidade, como a que os marxistas pretendiam de sua própria ideologia. Há um artigo de Gerd Bornheim sobre o positivismo que delimita a questão a partir do próprio Karl Marx. Nem só de livros, porém, é feita esta matéria. O fim do socialismo real, por exemplo, parece ter exacerbado a questão à bobagem. Por obra e graça de seus patrocinadores, alguns chegaram a pregar não só a extinção das ideologias: pretenderam que a própria história teria seus dias contados a partir de então. Claro que era, por sua vez, uma posição tipicamente ideológica. O escritor inglês J.K. Chesterton, dizia, a propósito, que existem pensamentos que vetam todos os outros pensamentos e que, por isso mesmo, deveriam ser os únicos a serem vetados.

 

Difícil, realmente, analisar certas manifestações artísticas, independentemente das ideologias que as comandam Tome-se o cinema norte-americano: há como criticá-lo pela desconsideração de que o herói é sempre o self made man, sem levar em conta a idéia da livre iniciativa e a famosa "liberdade de mercado"  que é, afinal, o substrato que está nesta sempiterna "história de fadas" em que o bem vence o mal? O esquema vale para quase todos os gêneros cinematográficos. Na tela, o policial, o cowboy, ou mesmo o fora da lei (que até o fim da fita será reabilitado) embatem-se, via de regra, com o bandido: eis que este, porém, como os índios dos filmes de caravanas, não tem pai, nem mãe; ou família. A linearidade do pensamento permite, assim, que o sistema nunca seja contestado: John Wayne sempre fará retornar a paz que os bandidos quiseram perturbar na boa cidadezinha que ainda conserva os valores tradicionais dos pioneiros. E que, guardadas as proporções e o tempo, podem ser resumidas na tríade: tradição, família e propriedade (nada a ver com a TFP do Brasil).

 

Com as variações possíveis, seria sempre assim. Só que, com muitas outras variações, à primeira vista impossíveis, quase nunca é assim. Não é por nada que fora da indústria cinematográfica de Hollywood, haja o anti-herói não apenas no cinema, mas na literatura, no teatro, na ópera, nas artes plásticas. E no mundo. O escritor Joseph Conrad, com seu "Lord Jim", mostrou  bem como se desconstrói o herói, justamente para lhe dar sua justa dimensão de humanidade.  James Joyce, ao escrever a história de um dia na vida de um homem, fez mais: contradisse um dos poucos heróis gregos que conseguiram superar os fados e que, ao ser parafraseado no romance "Ulisses", como que acabou resgatado em sua real dimensão, não de um semideus, mas de um homem.

          

A "Odisséia", de fato, tem um "happy end", como nos melhores westerns. Mas não nos ilude em relação a seu mundo. Ele seria mesmo o da crueldade presente desde sempre na história dos homens.  Nada de pílulas douradas. Mesmo, porém, num clássico da literatura romana, como no "De Belo Galico" ("Sobre a Guerra") , de Júlio César o livro em que ele conta de suas vitórias militares contra os gauleses os fatos também são escamoteados. Graças à sua inegável máquina de guerra, os romanos venciam quase sempre (quatrocentos anos depois, a história seria diferente, mas com César foi dessa forma até seu fim) . Assim, para cada legionário morto, os romanos sempre assumiam a morte de mais de cem. E Júlio César, que, apesar de romano e general, não se somava entre os mais cruéis, escreve, com o máximo de naturalidade, ter permitido que seus soldados pusessem no fio da espada algo em torno de 40 mil pessoas de uma mesma cidade: eles resistiram ao cerco dos legionários muito mais do que os romanos poderiam tolerar. Matá-los todos, a começar pelas mulheres e crianças, era o mínimo que se esperava. Quanto menos, que eles tinham matado muitos soldados para se defender. Qualquer semelhança com outros fatos algures, que acontecem contemporaneamente, está longe de ser uma casualidade. Não obstante, aos leitores que o lêem, e o admiram, Júlio César é  sub-repticiamente convincente: consegue que não pensemos nos gauleses como gente.

 

Ideologia? Sem dúvida. Nós nos nutrimos delas para o bem e para o mal. Ninguém foge das ideologias. Na "Flauta Mágica", de Mozart um dos vilões da ópera é pura e simplesmente um mouro. Mozart e J.E. Schikaneder (o libretista) tinham os "mouros" como inimigos naturais desde que os turcos ameaçaram Viena, pouco mais de  um século antes (1683). Mas não é um dado importante, o tal "mouro" não se faz música preconceituosa. Fosse um musical americano, ele apareceria caricaturizado numa imitação  vulgar da música turca, ou árabe, para atender ao também vulgar gosto do americano médio. Sob esse aspecto, porém, ainda aqui o grande exemplo de manipulação ideológica continua a ser o cinema. Oliver Stone no filme sobre Alexandre Magno  põe na boca de Aristóteles, que foi, realmente, professor do rei macedônio, uma frase muito significativa. Para Aristóteles, Alexandre deveria dominar o mundo. Só dessa forma a democracia grega se imporia ao universo. Oliver Stone não ousou colocar em Aristóteles a voz do presidente Bush. Ao que consta, o presidente norte-americano não fala muito bem o grego clássico.

 

 

 

 

agosto, 2006

 

 

 

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