..........A noite é de lua, a fogueira é bonita, grande e alta, as labaredas sobem para o céu, estalando, querendo estrelas. Muitas mulheres estão sentadas em volta do fogo, se aconchegando e conversando em todas as línguas do mundo, nesta última noite do congresso feminino pela igualdade e pela paz. Comemoram decisões, manifestos, palavras de ordem, amizades, conquistas e vitórias, entre risos e, por que não, entre lágrimas que lavaram as dores de tantas vidas. São letradas, analfabetas, cientistas, artistas, donas de casa, operárias, poetas, empresárias, artesãs, políticas, escritoras, camponesas. Entre elas eu, Amarilis, brasileira de Sertão Velho, confins da Paraíba. Eu, Amarilis, nome de flor conforme jurava minha avó, que aprendi a assinar meu nome depois dos trinta, aqui estou, em carne, osso e espírito, na Cidade do México, quieta, olhando tudo e dentro de mim mesma, eu que tanta lenha catei e cortei para acender o fogo e cozinhar um punhado de feijão, sempre gostando de ver o fogo pegar, gravetos finos, cascas cheirosas, eu, de enxada na mão desde que tive força, eu que pari meu primeiro filho com quinze anos e depois mais seis.
..........Eu, Amarilis, que tive o corpo macio e firme e a boca vermelha e cheia, atraí o olhar de Tonhão, chefe da jagunçada de Seu Zé Miguel e, se Tonhão me quis, não teve jeito. Mulher não morre de agüentar um macho, é o que se diz, e é verdade, eu não morri quando Tonhão me levou para a pensão do Boiadeiro, me tirou a roupa, me beijou o pescoço, enfiou a língua na minha boca, passou a mão no meu peito, e até aí eu poderia contar, se alguém acaso quisesse saber. O resto esqueci. Foi como se desacordasse, minha alma decerto saiu pela janela e ficou lá fora esperando, no quintal da pensão, junto com as árvores, as galinhas e o cachorro que dormia. Quando voltei a dar fé de mim, estava nua no chão e não na cama, Tonhão estendido do meu lado, me olhando com um sorriso torto, dizendo "então era donzela mesmo, sua potranca chucra, cosquenta, quase me escapa porta afora, a galope". Tive um sobressalto, a voz dele parecia vir de outro mundo. Levantei e não vi sangue, nem senti dor, só vi sair de dentro de mim um visgo branco. Nove meses depois pari meu primeiro filho sem nunca, até hoje, lembrar como foi que Tonhão entrou dentro do meu corpo pela primeira vez. Tive dois meninos dele, que foi bom para mim e até montou casa mobiliada. Em Sertão Velho se dizia que eu tinha amansado o coração do matador mais ruim do mundo, eu que podia deitar com esse homem e fazer tudo que ele queria com a boca e as mãos e a bunda, sem nunca gostar do seu jeito e do seu cheiro, até que ele morreu numa tocaia, pois de velho é que não ia morrer.
..........Eu, porém, continuo viva e estou aqui, olhando este fogo, entre mulheres lutadoras, eu que passei fome sem Tonhão e fui viver com Dito, homem trabalhador que pegava na enxada de sol a sol para ganhar muito mal a vida, além de beber todo sábado metade do que ganhava na semana, dizendo, com seu olho manso, "mas é só a metade, viu, Amarílis?...". Dito, sem maldade, com quem continuei passando fome e fez em mim três filhos sem pedir nada, bastando abrir as pernas desse corpo que eu nem sentia, pois se existia alguma coisa melhor ou pior não estava em minha cabeça vazia, em meu coração perdido. Tempo duro, de trabalhar como bicho para comer só arroz com couve, a pobreza sendo tanta que duas crianças morreram de doença, até que Dito morreu também, o sol a pino, em cima da enxada, me deixando sozinha com três filhos pequenos.
..........Eu que agora estou sentada aqui, junto de minhas companheiras, descansada e sem dores, mourejei um ano que durou cem, sem conseguir comprar comida que desse para todos, e agradeci quando Mariano Cruz se chegou em mim. Era homem bruto, de mão pesada e cara feia, mas tinha uma casinha e era bom de serviço, Mariano, que me deu mais duas crianças, mas uma não vingou. Eu me pergunto agora se esse homem me emprenhou dormindo, pois disso não lembro, só lembro que tinha que levar a vida com desespero, vinte e cinco anos e sete filhos, quatro vivos, dois meninos e duas meninas. Mas lembro, sim, quando abriram uma escola em Sertão Velho e meu menino mais velho, de oito anos, foi aprender a ler e escrever. Eu folheava seu caderninho, sentindo vontade de saber ler e escrever também, e outra vontade me veio, a de dizer não. Disse, e por isso apanhava de Mariano, sem me importar com o sangue que ele me tirava, até o dia que anunciou que ia para o Sul tentar a vida: "se eu me der bem volto para lhe buscar mais as crianças, se não der, Sertão Velho me vê mais, nem você, mas pode ficar com a casa".
..........Eu me pergunto se esta boca que hoje sorri nessa noite de festa alguma vez sorriu nas tantas vidas que vivi e morri, e respondo sim. Ria quando era criança e brincava, ria de ver minhas crianças falando "mãe" pela primeira vez, ria quando tinha comida boa para dar a elas, mas muito mais ri quando me olhei no espelhinho da parede no dia da partida de Mariano e disse que não queria mais homem, nem filho na barriga, nem fome. Tinha uma casinha e era forte, então, mesmo sem saber como, assim fiz. Oito anos vivi, trabalhei, comi e dei de comer aos filhos, sozinha, o corpo descansando dos homens que nunca quis, o coração na sombra, a alma não sei.
..........A lenha estala na fogueira, uma mulher toca violão, outra toca flauta, outras chegam e sentam, aumentando a roda. Ficamos ainda mais perto, uma sorri e me diz alguma coisa, mas não voltei ainda do passeio em mim mesma. Fecho os olhos para ver Chico como vi pela primeira vez, e de novo sinto um baque, uma moleza, um calor, um frio. Era tarde de verão e aceitei ir com ele à mata. Chico me deu a mão, falou, e tudo parecia novo e nunca visto, "um ninho caído, veja, quanta arte... uma teia de aranha esperando o orvalho da noite pra melhor brilhar na luz da lua, repare... a noite se sente antes dela chegar, é só ver a passarinhada apressada, querendo dar ainda um vôo, um pio, um canto, escute... mas não adianta, a lentidão da noite chega, com pés de pano, então há que perder a pressa, pra melhor viver". E foi assim, como noite de lua, que Chico chegou em mim, e eu não poderia falar, se quisesse, mas não quis. Não poderia andar, se quisesse, mas não quis. Só quis olhar as veias da sua mão e cada curva das unhas na ponta dos dedos e a marca do chapéu na testa e a boca guardando todas as palavras que ainda ia me dizer, a linha dessa boca não tinha fim, e por cima de tudo os olhos, abertos para mim, então entrei, eu, Amarilis, parida de sete filhos, virgem de amor, para aprender o carinho e o prazer e o gozo por artes dele, meu homem, Chico.
..........E esta Amarilis que hoje aqui está nasceu dele, assim como Sertão Velho, pois Chico se alastrou entre o povo como em meu coração. "Todo mundo merece terra para trabalhar", dizia, "todo mundo merece ganhar o justo para morar, comer, vestir, passear" afirmava, "Seu Zé Miguel não é senhor de escravos, ninguém é dono de ninguém, só de si mesmo". O povo acreditou e se juntou a ele e nada foi como antes, muito menos eu. Vieram outros companheiros de Chico, montaram um sindicato na minha casinha que já foi de Mariano, começaram a luta, invadiram terras, montaram acampamento. Seu Zé Miguel nada dizia ou fazia, nem parecia ligar para o que se passava em Sertão Velho. "Está dando corda pra gente se enforcar", diziam uns, "está sendo vencido pela força do povo", diziam outros. O fato é que por um ano a esperança lutou de igual para igual com o medo, e eu, ai, quanto temia eu pela vida de Chico! Tratava de me enganar, dizendo que Tonhão não existia mais, mas nem precisava Tonhão, nem tocaia foi feita. Jagunços vieram como soldados, tiraram Chico de dentro da casa-sindicato e executaram no meio da praça, à vista de quem quisesse ver e contar.
..........As labaredas consumiram a casa e o acampamento como este fogo consome esta lenha, mas não consumiram Chico. Chico não se consome jamais, está vivo em cada pedaço meu, nas reuniões dos companheiros, nos acampamentos e nas lutas que vou lutando pela vida afora, eu que sou agora uma ativista e aqui estou, escutando os cantos e os versos das mulheres. Então me levanto e desnudo este corpo que no espelho de vidro tem quarenta anos mas também a idade da menina que fui e posso ser, pois é com ele que desejo, quero e posso, e nua percorro a roda, iluminada pelo fogo e pela lua, dançando a paz, o alimento, a justiça, a igualdade e a alegria, que é o que cantam estas mulheres, e se escorrem lágrimas dos meus olhos enquanto danço são pelo prazer e pela dor de existir no mundo e ser Amarilis, nome de flor, e nada mais.

Dora Castellar
Amarilis
Dora Castellar tem pelo menos três vidas. Numa, foi bailarina e atriz. Noutra, foi mãe de muitos filhos e viveu numa fazenda longínqua, onde plantou, colheu, ordenhou, fez pães, bolos e muitas outras alegrias. Na atual, escreve roteiros, dirige e edita documentários e programas educativos para TV e é autora de peças de teatro. E anda escrevendo contos, também, para ver se dá conta das emoções de tantas vidas — as próprias e de gente que vai encontrando pelo mundo. Publicou contos na coletânea Novelas, Espelhos e Um Pouco de Choro, Ateliê Editorial, 1999 (contos de roteiristas sobre tevê), organizou e publicou um conto na coletânea Histórias do Olhar.