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Eu é quem for: ele, nós ou eu.
Eu é o que passei ou qualquer.
(Jeronymo Ávila)
Eu devorou o prato com macarrão encharcado de molho inglês tipo Worcestershire. Calmamente. Eu e o pai esperavam o expresso que os levaria de volta a Limoeiro do Norte. Havia um gesto, uns gestos diferentes naquelas pessoas ou o olho era pequeno? Eu permitia abrir silêncios entre. Na praça da Estação — apenas a praça e a estação ao largo —, a parada dos ônibus intermunicipais; na praça da Estação o carinho era secreto. De nada sabia Eu de mundo, de cidade grande, das impurezas da vida, a não ser seguir passos. O pai, carregando sacolas e uma mão apertada.
Havia um mar logo ali pertinho e Eu de nada sabia daqueles rumores; havia outros asfaltos condenando calçadas, muros, pedestres e Eu se metia no medo de se perder entre a multidão, anônimo entre anônimos; havia o calor ainda ameno que deixava sede e fome desde as dez horas e Eu deixava os olhos brilhando de desejo pela saborosa macarronada encharcada de molho inglês tipo Worcestershire por vir. A garrafinha do molho lida tantas vezes com o sotaque da inocência...
E,
ali, à espera do expresso que partiria às treze, o prato
com o círculo dourado era a margem do melhor dos mundos, a
infância doce e a macarronada afogada no molho inglês
tipo Worcestershire. Eu sabia que qualquer dia daqueles iria perder
quase tudo para o progresso que invade e desconstrói a paz
de todas as memórias. Parecia adivinhar que todos os riscos
estão à espreita. Parecia adivinhar pelo olhar do pai,
dirigido balcão adentro, naquele silêncio de dizer palavras
graves, o que nunca pronunciou:
—
Dia desses, você reconhecerá o que há para além
desses fios de que gosta tanto. O sabor desse tempero barato... A
vida é breve manhã, o tempo é tarde, a memória
é a noite mais longa...
Não
imaginava Eu ouvir o pai falando aquilo, mas parece ter escutado.
Alguns anos depois, o menino Eu encontrou o nome de Maria escrito
em um prato de sopa, com letras de macarrão. Eram letras de
Drummond nas primeiras vivências poéticas de Eu, mesmo
antes das Impurezas do Branco, na sátira marcante
de uma vida que se fazia temperada com desavisos e dolorosos mistérios.
Não
imaginava Eu ouvir o pai falando aquilo, mas reconheceria aquela voz
nas calçadas da praça, à noite, quando a fome
era apenas um desejo de retornar sem mais poder para aquele tempo,
para aqueles lugares, para a poça de molho inglês tipo
Worcestershire embebendo os fios de vida que Eu engolia com o tanto
do desejo saciado, antes dos repetidos retornos ao lugar de nunca
mais ser.
Eu,
de dentro do ônibus, todas as vezes que retornava ao não
mais lugar algum que ficou na lembrança, olhava a cidade que
não era sua e despedia-se dos lugares que cabiam dentro do
seu olho. Prestava atenção naquela cidade a que um dia
voltaria para aprender a insistir, para colher satisfações,
para empreender um jogo com a vida, para escolher o caminho entre
o hábito e o válido compromisso de ser. Voltaria como
um exilado, um sem-lugar ou, como se resigna, um cidadão do
mundo. Irônica evidência pós-moderna.
Eu,
de dentro do ônibus, todas às vezes, olhava a cidade
que não era sua e despedia-se dos lugares que não restariam
para sempre, pois sempre é uma palavra que inexiste em nosso
vocabulário de realidades perversas. E ficava a repetir imagens,
como a repetir frases inteiras nesta lembrança retirada a fórceps
do útero da melancolia.
E
foi assim, feito um indigente, que Eu trancou-se na Fortaleza do Sol
e bebeu todo o sal, para irrigar com o olhar o que restou daquele
prato com o círculo de desbotado dourado, sem mais os fios
de vida, sem o molho inglês tipo Worcestershire a temperar os
limites de um tempo que se faz distante hoje daquela praça
e de seus fantasmas. Aquela praça da Estação
que outrora alimentou a infância e comprimiu-a entre a inocência,
a saudade e a sorteada morte nossa de cada dia.
março, 2007