©steven hunt
  
                                                                     
  

 

Idéias, quando reprisadas, não devem ser simplesmente classificadas como pasticho ou plágio; ou, ainda, como meras repetições diluídas de suas fontes. Algumas vezes, há intervenções bem sucedidas, que chegam a suplantar a idéia original. Outras, não, servem apenas para a alegria ingênua de desatentos consumidores de simulacros de cultura.

 

Por outro lado, as relações com o óbvio nunca são limitadas. Há, inevitavelmente, uma contrapartida, cujo acerto se dá com a reflexão do receptor, do leitor. Se existe um paradoxo nessas idéias, talvez eu esteja apenas descobrindo o reflexo da superficialidade, ou, de outro modo, desorientando a rude certeza da racionalidade. O óbvio não é o limite. O óbvio é o absurdo desse limite.

 

A tentativa de encontrar caminhos para filosofar em torno da inexistência, do desconhecido, da inadaptação e da incompatibilidade não suporta aqui análise mais apurada. Tudo pode se tornar muito óbvio, ou, por outro lado, muito estranho, improvável, sem nenhum senso.

 

 

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Uma das maiores dificuldades para um escritor é definir o percurso da sua narrativa. Uma narrativa mais longa, não diferentemente das básicas preocupações que acometem um narrador de textos curtos, exige também de seu executor um domínio da própria trama e dos artifícios que irão modelando a construção textual.

 

Se, além dessa primeira barreira, ainda se fizer imprescindível para o narrador lidar com uma infinidade de aventuras, mais íngreme e inacessível vai se tornar esse caminho. Será então necessária muita maestria para não se perder entre veredas; indispensável um atinado senso de orientação, e a certeza de seguras entre as mãos as rédeas do comboio de palavras.

 

 

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O escritor nunca deve domesticar a fúria das palavras. Há que se permitir com elas a anarquia, a libertinagem e a ruptura para, enfim, paradoxalmente, mantê-las vivas no calabouço dos textos. Na verdade, o escritor deve, nem que por decreto pessoal ou desaviso, sugerir-se um estado paranóico, a fim de validar o grito ou a candura – às vezes, uma forma de violência — da sua escritura.

 

Decerto, falar em violência nos dias que nos vigiam não é passo para nenhuma redenção. Porém, a violência aqui permitida refere-se apenas ao desnudamento dos valores do texto literário, embora na vida não seja tão diferente.

 

 

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A verdadeira primeira lição de um jogador de baralho, depois de saldar-se em olhares furtivos às mãos do outro ou em visões mágicas e reveladoras de cartas, parece ser aquela que se dá pelo aprendizado da arte de blefar. Da mesma maneira, essa fórmula se torna bastante eficaz com o texto literário. O blefe na literatura pode ser acompanhado na listas das obras mais vendidas, ou nas fórmulas inquisitorialmente corretas de enunciação defendida pela academia, ou, ainda, nas concorridas e incontáveis tertúlias em que se põe a lume a mais recente obra do tal aclamado escritor ou poeta de plantão.

 

No entanto, como poderíamos distinguir o valor literário de uma obra, se a discutível intencionalidade do autor fosse, suponhamos, desgarrar o texto da sua própria e exigível condição dentro dos parâmetros de uma época? Como uma crítica isenta, se existisse, recomendaria ou não a voz de um texto para aquém ou além das expectativas do leitor? Ora, esses exercícios de pensar apenas colaboram com as nossas próprias inquietudes, portanto, mais um blefe que pode ou não ser bem sucedido.

 

Se esses acidentes para uma provocação são vitais para a escritura de uma resenha, de uma sinopse ou de um ensaio crítico, que mais importaria ao provável leitor, senão a escolha de algum texto que servisse de pretexto a um possível deslumbramento? Na verdade, todo leitor é atraído ou, com perdão pelo trocadilho, traído por algum texto. Entre um e outro, nada além do blefe.

 

                  

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Encontrar vestígios cristalizados pelo inabalável Tempo na farsa ou na representação de textos literários não é tão complicado para um arguto observador da história dos homens. O olhar remetido a este Tempo, maiúsculo, da mesma forma que se reproduz a partir do escritor ou do crítico, pode sofrer o incômodo de deparar-se com preconceitos e previsibilidades, de mascarar ousadias ou mesmo de invalidar um pensamento.

 

À sombra deste ainda desnorteado século XXI, a literatura se permite enveredar por caminhos vários: do mais tradicional ao mais experimental; do conceitual ao estrutural; do hiper-realista ao mais introspectivo; do documental ao surreal; do objeto mais vendido ao abjeto de auto-ajuda. Os leitores, assim, podem nutrir-se da cicuta ou das mais variadas fontes de proteínas para o espírito. Em se tratando de narrativas curtas, a proliferação de efeitos é fantástica!

 

Daí, podermos admitir que vivemos uma nova situação de conflitos e paradoxos que assimila melhor traços de subjetividade e nos encerra entre incertezas e dúvidas, como nos velhos tempos barrocos. Mas nada de pensar que é uma retomada ao barroquismo ou a validação do neobarroco.

 

 

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Viver continua sendo uma experiência instigante, apesar das multidões que projetam planos de ruptura com a decência e conduzem o ser humano a espaços de envenenamento da consciência. Viver, afinal, é uma premissa básica para aqueles que ousam se articular com movimentos próprios, validados pela certeza de transformarem dias em dias melhores, de verdade ou não.

 

No entanto, viver de verdade é experimentar a frieza, a rudeza e a crueldade necessárias. Se assim é na vida, com a Arte a assertiva é o ponto nevrálgico, a dor que reclama o ungüento. Nesse caso, vale lembrar de Camus, para quem ''a arte não pode ser melhor servida do que por um pensamento negativo''.

 

Na literatura, pois, os valores se decodificam a partir de um consenso: a dor, em qualquer das suas manifestações, é a mola mestra do seu fazer. Entre essas, uma, específica, arrebata-se e engrandece a Arte, desde que artesanalmente tocada pelas mãos de quem sabe que o valor da carícia é o mesmo que o do escarro. Trata-se da angústia, tão reproduzida através dos séculos, tão essencial ao ofício do escritor.

 

 

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O que se escreve é apenas a recorrência de sensações, antes de tudo, que se locupletam de vazios, silêncios, espasmos e alguma revelação. A literatura é um segredo. O estilo, outro. A leitura é uma tentativa de adivinhar o segredo do texto, ou mais, o da sensação primeira do autor. Mas adivinhar segredos é desconhecê-los, porque eles não se adivinham; eles podem ser revelados pela confissão daquele que os guarda. Portanto, a crítica não passa de um sintoma do desejo de repetir o que não pôde ter como gênese.

 

Borges, no texto "A supersticiosa ética do leitor" (1930), resumiu estilo como eficácia ou ineficácia de uma página. Para ele, o importante é a "eficácia do mecanismo" — a convicção da escrita que acentua a emoção —  e não a "disposição de suas partes" — suas comparações, sua acústica, os episódios de sua pontuação e de sua sintaxe. Temia o poeta a perfeição, pois para ele "a página de perfeição, a página na qual nenhuma palavra pode ser alterada, sem prejuízo, é a mais precária de todas. As mudanças de linguagem apagam os sentidos laterais e os matizes; a página "perfeita" é a que é composta desses valores sutis, e a que com maior facilidade se desgasta."

 

 

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Aos poucos, convém aprender a administrar as mais íntimas perversões e os mais impossíveis sonhos para que certezas e vida não sigam somente em rotas paralelas. Talvez seja mais aconselhável pensar que a humanidade é muito mais perversa do que pode imaginar a inocente sabedoria dos incrédulos. Se assim é, cabe exatamente à literatura reafirmar essas não pensadas verdades, ficcionando o real ou realizando a própria mentira.

 

Antes de tudo, o texto literário escolhe no leitor a divagação. Qualquer que seja o assunto, a visão de mundo deve se estender além do limite. Antes de tudo, uma boa dose de imaginação e impressionismo.

 

 

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Qualquer um que assuma a atitude de ler atentamente o mundo, não deixará de perceber gestos de impertinência excessiva em torno daqueles que se debruçam sobre aspectos da criação literária. A preocupação com esse fazer não é mérito da modernidade ou da pós-modernidade, se não, mais uma recaída ou decaída ao segredo dos vivos-mortos ou mortos-vivos do mundo.

 

Se, entre os críticos extremos, a angústia da novidade ou a obsessão clássica tenta remover montanhas, em alguns ficcionistas podem-se divisar inquietações ante a impossibilidade de assumirem-se como criadores divinos ou pela angústia sinuosa de existirem apenas como autores terrenos. Enfim, entre críticos e lidos, a reação a um suposto conflito: viver entre uma dor que faz bem e devolve a vida e a corda que se prepara para o suicida.

 

 

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Os leitores temos a valiosa oportunidade de experimentar algumas sensações a partir da leitura de textos literários.  Espanto, prazer, estranhamento, por exemplo, são algumas dessas sensações provocadas no leitor, que autorizam a atividade do escritor. Afinal, todos os leitores ansiamos não apenas por uma relação lúdica com o texto, mas por um (re)conhecimento da própria existência e seu arrebatamento. Os textos têm validade pelo que concentram de sabedoria, consubstanciação e insanidade.

 

Se, para Nietzsche, em Assim falava Zaratustra, "as parábolas devem falar do tempo e do acontecer; devem ser um elogio e uma justificativa de tudo o que é perecível", pode ser que os leitores acabemos por entender, finalmente,  que ser perecível é da nossa própria natureza, e que por isso o princípio do caos, do sujo, do nulo são a causa do desvelamento do que é sujeito no mundo.

 

 

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É sempre oportuno lembrar que, como críticos-leitores ou leitores críticos, devemos estar atentos aos desenlaces dessa imensa máquina de apropriações, de improvisos, de angústias e de recalques, a sociedade. O grande questionamento continua sendo como voltar-se a esta sociedade, não como subservientes servidores, mas como interlocutores de uma nova etapa civilizacional. Ora, como críticos, cabe-nos ler o mundo em sua roda-viva; e, como leitores, cumpre-nos resgatar a crítica que valida nossos atos dentro da sociedade que nos desafia.

 

Gaëtan Picon na obra O escritor e sua sombra (1970) já advertira que "o crítico deveria ser um descobridor, não um consagrador". E continuou o dito: "O crítico é aquele que se mede com a produção de sua época, que prova uma concepção global da literatura, num constante contato com a atualidade".

 

Entre descobertas e tentativas de interlocução com o tempo presente é que vislumbramos a atualidade de uma literatura que se mobiliza entre a violência, o sexo, a promiscuidade, a luxúria e a expressão de uma realidade doentia. Não se trata de uma revelação de segredos, nem de um rebaixamento de espírito, da decepção do belo e do sublime, nem de insuflamento a uma permissividade que poderá tornar-se negação, mas, possivelmente, uma conseqüência hostil, caótica, de nossa decepção com a sociedade.

 

 

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O argentino Jorge Luis Borges disse que morrer é um costume que sabe ter toda a gente. Como em quase todos os segredos de sua genialidade, permitiu-se enxergar, sem fazer uso da vista que lhe faltava, e ironizar o sentido mais trágico da existência. Sabemos que a morte espreita os que a esperam, os que se desprevinem, os que se remediam, os que se compadecem. Somos todos vítimas de seu misterioso desejo.

 

Em qualquer época, em qualquer lugar, os costumes e as culturas tratam de preservar dinâmicas várias, com o intuito de resguardar o sofrimento infalível provocado pela presença dessa senhora de todos os pesadelos. Se o seu reino é o do fim do mundo, dê-se a ela o nosso último momento...

 

Há, porém, que se indagar o motivo pelo qual a morte é surpreedida, muitas vezes, pelo desafiante desejo de não temê-la, ou mais, de torná-la objeto de consumo, banal, como ocorre na vida de uns tantos habitantes dos confins da terra. E por qual razão as histórias desse povo se reproduzem,  transformam-se, reavaliam-se e seguem seu compromisso de perpetuar o pesadelo.

 

Não há verdades absolutas, apenas conjecturas. Existe a literatura que molda, especifica, presentifica e conduz-nos a algumas respostas sobre esse emblemático mistério do convívio de nossos dias. Melhor prazer é percebê-la, enquanto não tarda e tenhamos que voltar ao pó.

 

 

SEM FIM

 

 

 

 

 

dezembro, 2005

 

 

 

 

jorgepieiro@secrel.com.br