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Em A Idade Viril, autor compara criação literária à tauromaquia

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          Escritores autobiográficos gostam de abrir seus livros com uma mentira convencional entre eles: começam declarando, de modo pueril, que pretendem contar a verdade a respeito de si próprios. Essa verdade implica, em primeiro lugar, baixezas reais ou imaginárias, como se elas, mais do que algum gesto "nobre", contivessem o segredo de uma existência só por parecerem inconfessáveis, vergonhosas, sobretudo as de ordem sexual.

Michel  Leiris (1901-1990), nesse admirável A Idade Viril (Cosac & Naify, 208 págs.,  trad. Paulo Neves, R$ 39,00) também comete o deslize, mas logo percebe que o caminho não o levará muito longe, até porque, pelos seus relatos, qualquer um reconhece, a partir do autor, que nada fez de tão ignóbil e suas obsessões nem são tão constrangedoras. Há bobagens, infantilidades que via mecanismos sociais de repressão e culpa adquirem proporções absurdas. Para seu castigo, tudo é pequeno, reduz-se a pó, como convém à mesquinharia da vida pequeno-burguesa. Portanto, não perde tempo com isso nem massacra o leitor com suas dores de dentes.

Confessa-as, sim, pois sabe que a maioria dos mortais é bem reles, passa pelos mesmos dramas imaginários, cuja serventia no livro é estender a ponte da identificação, digamos, universal. Usa-as como um fio, mas sabe que falar por reflexo, ou seja, indiretamente, criando perspectivas em sucessão, revela muito mais a si próprio e ao hipotético leitor. A sua atitude é parecida com a de Bentinho no teatro, ao perceber a própria vida na ficção alheia, rompendo assim o limite entre o imaginário e a suposta  realidade, encerrando tudo num circuito ficcional onde Capitu ocupa lugar de personagem inatingível na sua dubiedade.

No caso de Leiris, existem várias Capitus, na efígie lendária de mulheres como Judite, Lucrécia, Salomé. São elas, na criação literária ou pictórica, na encenação lírica (como Mário de Andrade, ele achava Tosca um lixo) ou na cabeça do autor. Elas se desdobram e o "explicam" sem no entanto quebrar a magia de uma soberba fabulação. Discorre como um crítico de arte e literatura diante de mosaicos cambiantes. O desvelamento se torna um processo, não o fim, as iluminações vão se perdendo, substituídas por outras no jogo das imagens.

Nesse sentido, A Idade Viril permite a experiência encontrada nos grandes romances, que rompem limites entre ficção e realidade, assim como a cadeia dos gêneros. O amesquinhamento de sua biografia funciona como estratégia para iluminá-la com os mitos literários, artísticos e de sua autoria, as pessoas com quem conviveu. Não é por se tratar de um "mero alienado" que  deixa
na sombra a cena política e cultural da épocaligou-se aos surrealistas, por exemplo. Para lembrar: ele escreveu o livro entre as duas guerras mundiais, dos 29 aos 34 anos.

Não esquece, significativamente, de anotar que o detestado irmão mais velho só aceitou ir para a frente de batalha na condição de padioleiro. Assim como ao irmão, a indústria do horror não interessa nesse livro, mas sim essas crispações a que se resumem os fragmentos de uma existência. Daí o furor poético com que o escritor enfrenta, investe e afaga os fantasmas. Comove com sua dignidade estropiada. Autor da obra-prima O Espelho da Tauromaquia (pela mesma editora), Leiris compara a empreitada de A Idade Viril ao embate entre o matador e a fera.

A ênfase parece exagerada, ele também acha, pois ninguém corre risco de vida tão óbvio ao escrever um livro. O que conta é a metáfora do enfrentamento, encontrada em inúmeras formas nos registros humanos. As efígies são esfinges tão perigosas quanto sedutoras: o mero susto infantil disparou uma série de fantasias das quais sempre brota a mancha de sangue que ressurge nas relações pessoais, nos personagens da ópera, das artes plásticas e, claro, da festa brava peninsular: momento em que a grandeza pode oscilar com o ridículo mais grotesco, sem no entanto perder a aura mítica. Como rir, enfim, de um matador que, no seu traje de luzes, dispara em fuga quando, de costas para o touro, alguém o avisa que o bicho, aparentemente dominado, avança para novo ataque?

"... tratava-se para mim de condensar, no estado quase bruto, um conjunto de fatos e de imagens que me recusava a explorar, deixando trabalhar sobre ele a imaginação; em suma, a negação de um romance. Rejeitar toda fabulação e só admitir como materiais fatos verídicos...", diz no prefácio, onde aponta a inevitável armadilha do narcisismo e as ingenuidades da intenção traídaquando, durante o livro, reconhece não poder afirmar se tal coisa era imaginária ou "real".

Queria criar uma obra que fosse um "fato". Errou o passo mas acertou a estocada, igualando-se ao toureiro que no final das contas ultrapassa limites para provocar a surpresa e o fascínio do público diante de um novo e irredutível fato estético.

 

 

 

 

(publicado no jornal O Estado de S. Paulo)

 

 

 

 

O livro: Michel  Leiris (trad. Paulo Neves). A Idade Viril. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

 

 

 

 

outubro, 2005

 

 

 

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