Metáfora sem o menor refinamento.

 

Eu entendo você. Juro, entendo sim. Imagino que seja difícil me escolher. Acho mais, acho que deve ser assustador. Sei que deve ser assim. Estou fechada, tenho a capa duríssima e nenhuma palavra gravada em mim — ainda que em letras douradas — é convite para leitura. No entanto me ofereço com suavidade e espera. Leia-me. Leia-me bem devagar, faça anotações em minhas margens, grife o que achar importante (ou se tiver algum sentimento para ser compreendido mais tarde). Mas por favor, não me deixe esquecida, intacta, desconhecida. Ia dizer empoeirada, me recuso.

 

Pode começar pelo fim, se quiser. Adeus.

Mas continue. Me abra ao acaso e passeie por trechos engraçados – eles devem chamar sua atenção assim, naturalmente. Demore-se no que eu tiver de poético. De bobo mesmo. Onde eu falo orvalho em vez de umidade. Onde tem relva no lugar de grama. Essas coisas de menina que me abrem, me permeiam e me finalizam. Acredito ser isso, a poesia, o melhor de mim. O que eu rimo, o que eu choro, o que eu metaforo.

 

 Deixe suas marcas. Uma dobra, uma memória ressecada entre alguns anos da minha vida. Provavelmente entre os primeiros capítulos. Cheiro de cigarros, uma impressão digital decalcada em mim com perfume ou tinta.

 

Quero que me leia. Página por página, sem parar, sem parar, por favor, sem parar. Quero que não consiga desgrudar seus olhos de mim e que nem durma. "Comecei e não pude dormir antes que a terminasse". Meu querido, durma, I am endless.

 

Mas escuta, quero dormir em suas mãos, meu corpo dobrado sobre seus dedos, sobre seu peito. Quero ser embalada pela sua respiração cheia de lembranças suaves. Quero cair desfolhada sobre sua cama, quando um soluço vindo de um sonho (revelação) acordar você e, novamente sem sono, você me abrir. E eu me revelo de novo e sempre. Do ponto em que você parou ou antes, ou depois. Ou antes. Não importa.

 

Quero que me devore. Ainda que depois, seja necessário reler o que a pressa ou a curiosidade deixou passar descuidado. Quero que deite comigo todas as horas em que seu pensamento pedir. Eu me rendo sobre seu sexo e aceito de bom grado suas exigências secretas, ocultas sob meu peso, guardadas em mim.

 

Eu deixo você voltar quantas vezes quiser ao que houver em mim que lhe deixe feliz, que tenha feito você rir. Deixo você me decorar. Espero paciente, imóvel, até você me guardar em sua memória. E me souber completamente. E me continuar de próprio punho.

 

Me leia sem óculos. Me encare com a "fixidez reverberada de um cego" — sem medo, sem restrições. Entregue seu olhar para o meu, confiante. Vem. Quero que você queria me sentir com as pontas dos seus dedos — descobrir, tateando, meus segredos em alto relevo. Quero suas mãos me contornando, me reconhecendo e ao que sinto, e quem sou — par coeur. Tu me connais par coeur.

 

Preciso muito que você me folheie, me leve, me deixe sempre ao seu alcance. Ou minha existência não terá tido o menor sentido. Quero absorver todos os seus fluidos – acolher suas lágrimas e pacientemente (como só uma mulher sabe) esperar que elas sequem sobre mim — que é de alegrias e descobertas que são produzidas as dores mais felizes. Quero acolher seu prazer e reproduzir infinitamente seus sonhos. Para que a gente permaneça nos que vão nos suceder.

 

Você vem? O acaso também vai fazer você descobrir trechos inteiros que nem eu mesma desconfiava. Pode ser o vento  de uma praia qualquer, pode ser um nada, pode ser até uma outra pessoa que, sem querer,  vai revelar tudo o que for amor em mim. E você  vai desejar ter sido amado assim e vai chorar de ingenuidade, em meio à sua ignorância do que sinto. Vai chorar por não se reconhecer em meu amor e no que sou através dos seus olhos.

 

Desolada, verei você invejar um amor tão cuidadosamente descrito e desejar roubar por alguns instantes o que sempre foi seu. Sempre.

 

Por favor, me leia em voz alta. Me leia embriagado de solidão e angústia. Me conte bem alto para que sua voz vença todos os tempos e eu me faça diante de você sobre todos, sobre tudo.

 

Por favor, dedique-me a você.

Foi só para isso que me copiei com letras caprichadas e sem rasuras. Para ser sua.

 

 

 

 

Sujeitos Ocultos

 

Devo o  que sou aos sujeitos

das minhas orações.

Me ensinaram a nadar,

a dirigir,

a beijar.

Me namoraram,

amaram,

quiseram se casar comigo.

Aceitaram meus nãos.

Menos um.

Me deram flores,

presentes, bombons.

Me deram bolos,

e meus melhores choros.

Me escreveram cartas,

poemas – a esses eu amei.

Me disseram indecências,

fizeram confidências,

esses, perdi.

Me tiraram do casulo,

me apresentaram às asas minhas

que eu nem sabia.

Me empurraram no vazio e eu voei.

De susto e de amor eu voei.

Voei, voei, ainda estou voando.

Mas nem ficaram pra ver o que

fizeram.

Me disseram adeus e estão longe,

nem ouvem meu canto.

Passarinharam-me e não me ninham.

 

 

 

 

Ainda não

 

Amanhã acordarei sem memórias gris…

e terei sonhos tenros, ternos.

Amanhã confiarei em estranhos

correrei pra abraços que me chamarem.

Amanhã minha testa vai estar serena

e minha alma sem sustos…

Amanhã nunca tive cáries,

nem dores,

Amanhã serei eterna, como fui,

amarei pela primeira vez,

Amanhã.

Amanhã esqueci teu nome,

e teu rosto e porque ainda choro quando

te penso.

Amanhã serei minha como

quando estava inocente.

e amava sem espera nenhuma.

nenhuma.

amor doado, sem troco.

Amanhã nunca aceitei migalhas,

nunca mais, Amanhã.

nem sonharei acordada

porque não saberei diferenças.

Amanhã não te conheci,

nem te dei em desonra

meu segredo.

mas Amanhã,

só Amanhã.

Nenhum dia antes.

Ou depois.

 

 

 

 

 

nome

 

 

 

 

 

Todas eu

 

Tem dias que eu acordo Maria, santa.

 

Se choro, viro Sofia, Ana.

 

Inspeciono a limpeza e fago comidas, Emília.

 

Se fago um amor bem gostoso, tenho o nome

 

que ele me chamar, Lola.

 

Se fico aflita, não tenho nomes,

 

só medos.

 

Se vou à missa, sou Dolores,

 

Consuelo.

 

Só quando sou mãe, e eu sou o tempo todo,

 

aí eu sou Claudia, apenas Claudia.

 

que é pra minha filha ter apenas uma mãe

 

para amar,

 

imitar e,

 

se eu não conseguir,

 

negar.

 

 

 

 

Entenda

 

Você quer saber quando, eu digo, de modo permanente e peço desculpas pela inexatidão das palavras. Não as minhas, ou as que lhe digo (que palavras pertencem a ninguém), mas na armadilha escondidas em todas elas. Todas elas são traiçoeiras e escondem significados. Matam intensidades fechando em copas sentimentos profundos. Odeio as palavras. Não vivo sem elas. Sei que peço que as diga, que as repita, mas é culpa do silêncio dos nossos corpos que não conversaram nunca mais.

Você exige saber: quando. E eu urro a plenitude da palavra sempre e você pensa que sou evasiva quando, ao contrário, estou definitiva como um ponto final.

Você metafora dizendo que o sempre e o nunca se encontram na mesma impossibilidade. E então, vencida pela sua razão, me calo.

 

 

 

 

 

 

Vim me despedir. Preciso. Eu estou voltando pra casa. Não vai ser doce essa despedida. Não há paz no coração de quem parte assim, cheia de débitos. Nada fiz e tanto prometi. Não fale nada. Minha vontade é fio de aranha. Cederia  ao peso da sua voz, do que ela fala. Fique calado. Estou indo embora. Passei os últimos meses desenhando uma casa pra nós dois. Com a liberdade e a infinitude de uma existência regida por mim. Com a liberdade dos ditadores. Tem gente me esperando e eu não posso me atrasar. Adeus. Preciso ir, solte minha alma. Ela se prendeu entre seus dentes. Não, não vou me sentar porque não posso me demorar. Tem gente me esperando. Vim apenas abrir a porta e deixar as pontas duras da realidade arranhar nossas vidas. Estou voltando pra casa. Daqui eu vi, como jamais antes, o que poderia ter sido. O que faria, o que seria, como beijaria, como amaria e seria amada. Cansei desse futuro do pretérito – esse tempo sem presente. Vou me embora de você. Quero trazer comigo uns fiapos do seu espírito. Posso levar? Não me toque. Meus joelhos cairiam em oração. Preciso ir. Se eu continuar a vir aqui minha casa , a que é feita de pedra e de pão, vai produzir trincas, as janelas vão morrer de tanta espera. Me faça um favor. Tire aquele espelho dali enquanto durar esse adeus. Não quero me ver mentindo. Obrigada. Escuta. Não te amo mais. Você fica bem de preto. Que cheiro é esse que vem da cozinha? Nunca destampo panelas com iguarias que não experimentarei. Não quero suas receitas. Não acerto o ponto e nem tenho braço pra bater em neve essa clara que me oferece. Então tá. Estou indo. Me diga: tem alguém chorando lá no quarto. Vá ver o que houve. Preciso ir. Tem gente me esperando. E, ou me apresso ou não o encontrarei em casa quando, finalmente, me decidir e voltar.

 

Não posso ficar mais. Com o tempo o sol baixa e vai bater em cheio no meu rosto. Você não pode me ver assim. Preciso demais do benefício da escuridão, da distância, do silêncio. Conto com a riqueza da sua imaginação pra eu continuar existindo. Faça a gentileza de me construir com generosidade. E acredite na memória do tempo. Quanto mais ele passar mais nitidamente você vai se lembrar de mim. E é esse o retrato que quero que pendure em sua cabeceira. Sempre o último. O mais distante de hoje e agora quando me olha assim: me vendo. Quero ser ornada de saudade. Obrigada. Preciso ir. Vai chover e estou nua.

 

Ia me despedir mas você saiu sem fazer barulho. Descobri, desconcertada que estivera falando sozinha. Canto, pra disfarçar.

 

 

 

 

...

 

Se um anjo me viesse e

oferecesse um milagre, pediria:

quero quereres.

 

 

 

 

spot light

 

Me olhei no espelho e reconheci o rosto congestionado de sustos por vir. Pálida e dramática como uma boneca mal feita. Marionete vista de bem perto, sem o encanto da escuridão. Sem a misericordiosa vontade de sonhos de quem me assiste quando as cortinas se abrem. Linhas soltas, frouxa e caída, deselegante e espalhada, sobre o chão seco do palco escurecido. Sem serventia, sem movimentos espontâneos. Assolada de vida e inércia.

 

 

 

 

Mute

 

Não era culpa da juventude, que já era memória na vida dele.

Era um fio da alma preso ao passado que o fazia meninar na frente dela.

Ficava cheio de mãos e sem palavras condizentes com o momento de tanto tempo depois.

Mas era assim, fazer o quê.

As frases experimentadas na mente, saíam sincopadas da sua boca madura.

A respiração traía o coração em jovem agonia.

Então ela fez o que faria, o que fazia,

quando não tinha (sequer precisava) das palavras que vinha colecionando com os anos.

Guiou as mãos dele por onde o amor é cego.

 

 

 

 

Impasse.

 

Busquei terra escura e fresca pra me plantar.

Criei raízes nervosas, grossas e fundas.

Esqueci das asas.

Perdi o tempo da poda e já não seriam

aparas, mas assassinato.

Desistência.

Agora me estiro entre o chão e sua seiva

e o céu e suas promessas.

Entre o que me tornei

e o que poderia ter sido.

 

 

 

 

Desmemorial

 

Esqueci. Meu Deus do céu, esqueci sem piedade o motivo do que senti. E era tão forte que me acordava em plena dormência de existir. Disso me lembro, da plenitude, da alma pendurada entre o abismo e o nada. Eu, em feliz fragilidade, vivendo com leveza, as alegrias, as dores, de todas as idades. E agora, que esqueci, o que hei de sentir? O que faço com esse vazio que pesa em mim? Olha, estou afundada na indiferença, morrida na espera. Não me lembro do seu rosto (procuro fotos pra aquietar a agudez do esquecimento), minha boca não sabe mais o seu gosto. Ô meu Deus, esqueci. A sua voz, o seu olhar, esqueci. Se não te sei, se nem te lembro, pelo quê vou esperar, com quem vou sonhar? Por qual milagre acenderei velas?

 

 

 

 

Declinações

 

Eu amo

Tu não aceitas

Ele me quer

Nós nos consolamos

Vós vos rides do amor

Eles são felizes

 

 

(imagens ©colin anderson)

 

 

 

 

Claudia Camara (Belo Horizonte – MG). Publicitária, escritora e redatora. Duas vezes finalista no Festival de Nova York (campanhas para Acesita e Coteminas pela DNA Propaganda), recebeu os prêmios Abril de Publicidade com a campanha Inox para a Acesita, Colunistas Nacional e Regional, Profissionais do Ano, Melhor Anúncio da Mídia Impressa, Prêmio JB e Melhor Campanha de Incentivo ao Turismo com a criação do Projeto Divulga Minas, Troféu Imprensa. Publicou a novela 15 dias, 7 anos e alguns minutos pela Editora Biruta, São Paulo. Livro finalista do Prêmio Jabuti 2005, promovido pela Câmara Brasileira do Livro, na categoria Juvenil 2007,  Existe Um Lugar pela Construtora Norberto Odebrecht, o livro infantil Amigos de Estimação pela Lafabbrica do Brasil para a Secretaria de Estado da Educação de São Paulo e o livro de poesias 19 atos. Criação e desenvolvimento de roteiros para uma série para TV - La minute féminine, comprada pela produtora francesa La Parisienne d'Animation. Em produção, Sol no Céu da nossa Casa para registrar o trabalho realizado pela Construtora Odebrecht nas obras de infra-estrutura para a implantação em Minas do programa Luz para Todos. Escreve o blogue Mentiras Históricas.