Visita

 

Homens e mulheres que foram meus amigos

penetram no meu sono.

Estão mais jovens do que eram

na hora de sua morte.

 

Têm o mesmo rosto de quando

havia futuro nos seus dias.

 

Esses mortos foram meus amigos.

Conheço-os pelo nome, conheci suas almas

e o ritmo dos seus passos.

Agora eles penetram silenciosamente no meu sono.

Trazem algum mistério

que desperta e me convida

para um sono maior e mais profundo.

 

 

 

 

 

 

Dezembro

 

Quando nossos olhares se encontraram,

na ensolarada manhã de Copacabana,

raiavam os anos oitenta e estávamos os dois

na casa dos quarenta.

Íamos para o trabalho em nossos automóveis do ano,

de janelas fechadas porque vivíamos numa cidade violenta.

Nossa maneira de olhar mostrava que há algum tempo

perdêramos a esperança.

O minuto foi breve, durou apenas o vermelho

do sinal de trânsito.

O sorriso que rasgou os nossos lábios

transformou-se de repente: viramos a cabeça

envergonhados — do sorriso, do olhar

e da manhã que nos surpreendia.

 

 

 

 

 

 

Ezra, louco

 

Ezra, numa jaula como um bicho,

silencioso e com o olhar dos loucos,

não pôde exorcizar suas idéias.

Comeu fezes misturadas à urina,

balbuciou o som de uma poesia,

engoliu saliva e pensamento.

 

O próprio pensamento, uma comida.

Julgando-se lúcido como um deus

e perdido para sempre em desespero

como um homem se perde e se constrói.

A nos mostrar como é dúbia a natureza,

como silêncio e grito se confundem.

 

Em sua cama, em seus chinelos,

no seu pijama sujo, nos ossos

sob a pele branca e machucada,

reflexões na bruma da loucura,

investigações no fundo das palavras

que permanecerão desconhecidas.

 

Vaiada, imunda, dilacerada alma

dos poetas fugitivos da poesia.

Não entendeu por que sangrava

nem de morte e solidão.

As palavras, sim, compreendia:

a sua força, tumulto, imensidão.

 

 

 

 

 

 

Salmo

 

Estou sentado numa praça à espera do Senhor.

Ele está atrasado e dos bancos em que se sentam os ricos

caem migalhas de pão que é o seu corpo.

Falta vinho, que é o seu sangue,

mas o vinho não falta em suas ceias.

 

É longa a espera, como longos têm sido os dias

em que tento me mover no trançados dos espinhos

ou na cruz que me tem pregado.

Não há fuga quando as amarras se misturam

aos braços, às pernas e no pensamento.

 

Não reconheço este sítio onde espero

e observo a fartura em outros bancos

eu faminto, insone, o corpo exibindo suas chagas,

a alma em busca de algo extinto

nas escadarias dos templos visitados.

 

Tenho permanecido na vizinhança das árvores

porém longe das sombras ocupadas.

Divido água e comida com os bichos.

À noite, penso que Deus é invenção soturna,

como os pássaros que cercam este lugar.

 

 

 

 

 

 

 

 

Sintra

 

O homem foi poupado

mas não poupou a si nem seus descendentes.

Violou as pedras

e sentou-se para admirar o jardim.

 

Uma lufada de vento, o frio dos metais

percorreu suas costas e fez assento na alma.

As palavras caíram sobre o chão,

houve clarões repisados na névoa.

 

Uma forma violenta de segredos,

este corpo onde habitou.

Nada se compara a esta forma de absurdos,

fraca, pendurada nos desvãos das janelas.

 

Mulheres, sorridentes, mostram-se;

nas ladeiras a água escorre, lava;

há vida nas latrinas, pensa o velho

que descobre a cabeça e olha os cemitérios.

 

 

 

 

 

 

Perdido

 

Colocas os pés sobre tapetes

e os olhos se detêm sobre janelas

cujos vidros se entrelaçam

em treliças de corda reluzente.

 

No telefone cinza, à mesa de papéis

em que depões o pó de teus sapatos,

em todo o mecanismo dessas organizações

a que pertences, que te pertenciam.

 

Achavas que te pertenciam mas a parte

não pertence ao todo e nele se dilui

como o pó na água e o som no espaço

que limita teus passos nesta sala escura.

 

Vinte anos se foram e os primeiros versos,

perdidos entre as folhas de um caderno,

perseguem tua mão na folha branca,

na magia das teclas da memória.

 

Perdes a luta de fugir deste poema,

como perdeste a de fugir da sala escura

e o som te busca, te procura o cerco

dos espaços que te sufocaram.

 

 

 

 

 

 

Entreato

 

Em mil novecentos e cinqüenta e sete,

quando nos encontramos numa rua do Recife,

viela de paralelepípedos irregulares,

estávamos lendo Folhas de Relva,

dissemos que a tradução de um poema

mantinha a vida um pouco mais serena.

 

Dezoito anos de vida nos pesavam,

naquela estreita rua do Recife.

As prostitutas jovens nos amavam,

a elas pretendíamos

dedicar poemas que transcenderiam

as suas e as nossas existências.

 

Éramos poetas, buscávamos palavras,

tínhamos ódio dos adjetivos,

tentamos dizer que a mudez é um poema,

o silêncio calmo, o mergulho uma serpente.

O mundo era um teatro, a nós cabia

representar o belo, se existisse.  

 

Refizemos palavras, entendemos que o sentido

das coisas é mutável; o ser, apenas existir

e permanecer no âmago da chuva

é receber no rosto a tempestade.

Compreendemos a força dos sentidos

que o amor traz consigo em suas voltas.

 

Nada nos confundia, no Recife,

pois aprendêramos a amar as despedidas.

Os poetas que líamos, Dylan, Whitman,

Calderón, Pessoa, Valery e Augusto dos Anjos,

todos nos dizendo que a paixão nos perseguia,

a memória não existia.

 

Quem soube do amor, naquele tempo?

Odiávamos os adjetivos, o poema

seria silente e seco, duro como um grito

solto na madrugada, arrebentado pela fome

dos aflitos.

Estávamos cansados, mirando a madrugada.

 

Cansados como hoje, nesta manhã

de mil novecentos e oitenta e oito,

quando senti que tua morte interrompeu

o que deveria ser e não foi,

não mais será porque jamais te disse:

o poema é um fruto podre da existência.

 

 
 
 
 

Amar

 

Descobrimos palavras e emoções.

Visitamos o fundo das almas

e a essência onde elas habitam.

Construímos em torno a face da doença.

 

Descobrimos o calibre das armas,

que não foram feitas

para o inimigo.

Elas são o que vemos e pensamos.

 

Um tiro é como o pensamento,

o punhal simples escolha.

Um tiro é uma sela que se monta

neste século obscuro.

 

 

 

 

 

 

A tarde e um novo dia

 

I

 

O menino investigava a tarde

e o silvo das locomotivas avisava:

o pai chegava, ia escutá-lo,

ouvir a sua voz e seu silêncio.

 

Os míticos lugares, as distâncias,

tudo emoldurava um pôr-de-sol chuvoso,

cortado de andorinhas,

acentuando o desmaiar do dia.

 

A terra, parto de segredos,

despertava com as nuvens carregadas,

com os sapos, os insetos, plantas

e o verde em brilho dos canaviais.

 

A voz dos violeiros, o cantar dos carros

e o odor dos últimos engenhos

misturavam cheiro e música, chuva e vento,

aos olhos do menino que esperava.

 

 

II

 

O poema nascia como um sopro

em direção à chama de uma vela.

O sopro a extinguia

e a chama uma vez mais

reacendia.

 

Existe algo distante nas palavras,

nas metáforas da infância,

nas imagens perseguindo um canto

e nas transformações de um dia

alucinando o sol antes da aurora.

 

Memória e palavra se completam

uma na outra, perseguindo sons,

dissecando as cores e o traçado

de rotas em que nos perdemos,

para sempre, na busca de um retorno.

 

Que tal redesenhar imagens,

o formato dos rios, as marés

de um tempo ausente e acalentado?

Um tempo de espectros e chuva,

inundação sem ritmo das almas.

 

 

III

 

O passado marca em nossas vidas

o rosto da espera.

Nos lugares visitados, descobertas prometiam

a esperança de outros dias.

Novas palavras foram ditas,

vocábulos noturnos

das horas inventadas.

 

Perseguimos a dor para feri-la:

condição de ser, forma inconsútil

no vazio dos espaços

que a memória constrói

para ter vida.

 

A arte das pontes, das igrejas,

o riso das velhas prostitutas e dos cegos

compuseram a partitura

de um cântico esquecido.

 

Marcamos encontro nas esquinas

que imaginávamos existir.

Chovia, era noite, o frio repetia

que o país era outro e outra a festa,

éramos estranhos entre nós

e a música nada nos dizia.

 

Sem que nada percebêssemos,

estávamos velhos e a lembrança nos trazia

algo sobre o tempo e a sua gosma fugidia.

 

 

IV

 

Era o instante da memória que vivia

o tempo das mudanças

e das sombras refletidas nos estios.

 

O tigre da memória e a sua sombra.

No lugar dos jardins, bosques sombrios

e onde foram caminhos, retinas assombradas.

 

Vou retirar da fonte o alívio das pegadas

e o esmorecer das tardes encobertas

pelo jorrar do pó das semelhanças.

 

Ali se deitarão nossos delírios

junto ao sereno, ao clamor e às despedidas,

vigília das noites espelhando seu cansaço.
 
 
 
 
 
 
(imagens ©picasso)
 
 
 
 
 
 
 
Celso Japiassu (João Pessoa - PB). Publicou os livros de poesia O texto e a palha (1965), Processo penal (1968), A legião dos suicidas (1971), A região dos mitos (1979), O itinerário dos emigrantes (1983), O último número (1988), Dezessete poemas noturnos (1993) e, em parceria com Nei Leandro de Castro, Cinqüenta sonetos de forno e fogão (1994).  Vive no Rio de Janeiro. É o editor do Uma coisa e outra.