ADIEU

 

Há muito tempo me despeço todos os dias.

Estou pronta para ir embora:

as malas já feitas à porta, o dinheiro no bolso,

o bilhete na mão e o destino a esperar.

Jurei que só voltaria quando me pedisse

e agora é por isso que não posso mais partir.

Ninguém vai me chamar de volta,

nem nunca vai dizer o quanto me quis.

Serei a única a esparramar na plataforma

a dor de um adeus solitário.

Posso ouvi-la fundida ao ferro dos trilhos,

gemendo por todo o caminho que é assim

que vamos ficar: nos hiatos paralelos repetidos

palmo a palmo até a gente adormecer, sem descanso,

nos vagões embalando pesadelos e o medo

de chegar carregando sozinha esse enorme

peso morto que é o amor não correspondido.

 

 

 

 

 

 

OS CAVALOS DE MARC

 

Os cavalos de Marc não correm da cor.

Eles são verdes, vermelhos, amarelos

com longas crinas que esvoaçariam ao vento

se houvesse um prado, uma montanha,

uma campina para o vento as esvoaçar.

Mas, os cavalos de Marc não têm ido a lugar algum.

Eles ficam parados nas fotografias como modelos

cheios de sombra azul. Por sobre os flancos enormes

eles olham serenos esperando uma moldura.

Eles se fixaram em minha lembrança

como um desejo não atendido e esperam

serem libertos de uma gaveta alheia

onde não os souberam cavalgar.

 

 

 

 

 

 

AULA DE GRAMÁTICA EM DIA DE VERÃO

 

Da vida eu não quero muito.

Na verdade, quase nada. Apesar disso,

hoje nada tenho do que desejo, mas

não aceito que se deva lutar ou matar por um sonho.

 

O que eu queria era estar só.

Não completamente só, apenas

o suficiente para não sentir o calor do corpo ao lado,

o suficiente para não o ouvir quando nada dissesse.

 

Queria uns aromas mais frescos, um pouco de brisa,

uma temperatura agradável, um parto vegetal,

tomar sorvete, esquecer que um dia você morrerá

e do tempo em que não tive nem esse medo besta.

 

 

 

 

 

 

ÁLVARES DE AZEVEDO REVISITADO

 

As horas correm, mas eu permaneço inerte

com os olhos fixos numa imagem que não existe.

Passatempo nenhum mais me diverte —

O tempo passa e só me deixa mais triste.

 

O século XIX está morto e enterrado,

mas eu continuo blasée.

O Werther moribundo vive a meu lado

Anunciando minha morte por você.

 

Como posso suportar sua visão,

A perseguir e aumentar o meu desejo?!

Maldito amor profundo! Maldito sofrimento vão!

Escravo da minha vontade de possuir o que vejo.

 

Vamos embora, Werther. Não quero saber de nada

do século XXI, nem de tecnologia ou medicina avançada.

Partirei sem ter tocado em um computador,

morrerei sem ter deitado nos braços do meu amor!

 

Já chega! Ali está meu esquife

e o féretro virá logo mais atrás.

Meu amor que na terra fique,

enquanto visito  o fiel Satanás.

 

Adeus, que ninguém por mim sinta-se mal.

Talvez sim por meu doce amor maldito

que vagará sozinho de hoje até o final

e conhecerá a terrível dor que me fez mito.

 

 

 

 

 

 

 

AMARELINHA

 

CÉU

 o        muro

 se       para

a        rua

da      casa

o        ocaso

da       lua

a        sua

mal     dade

em      mim

sem     voz

sem     saú

de       você

do       lado

o         posto

me       mal

trata    ex

ata      mente

as       sim:

       por

não     ser

meu    no

jar      dim

ao      sul

do      Éden

vi       vo

INFERNO

 

 

 

 

 

 

NA SALA DE ESPERA

 

Na sala de espera depois do jardim da infância

você espera, espera não sabe por quê.

Não há mais ninguém para conversar,

então, você pega o lápis, põe no papel

e desfila todo o alfabeto,

primeiro em letras minúsculas,

olha o relógio, agora as maiúsculas,

parece que ninguém sabe que você está ali,

e como era mesmo a equação do segundo grau?

 

Está na hora de ir embora

e nem a secretária veio lhe dar uma satisfação —

"Já leu Kafka?", perguntou simplesmente

e saiu sem esperar sua resposta.

 

 

 

 

 

 

CHARADA

 

Quando as palavras não têm mais jeito

pra dar em nada que se pensa,

quando o que se pensa não tem mais

nada a ver com o que se faz,

e o que se faz não vale a pena mencionar,

qual é a vida que não se leva?

 
 

O DIA QUE GUARDEI

 

Para minha mãe

 

Quando mudei de cor

e fiquei magrinha feito

as crianças que morrem de fome

no Nordeste, com olhos enormes

sem brilho nenhum, você veio

me salvar de mãos vazias, cheio

o coração da doçura que alimenta

a alma e o corpo cansado de comer.

Você armada de intuição desafiou

especialistas com paredes diplomadas —

todos errados; você estava certa.

 

Houve um exame no Hospital Infantil —

coleta de urina — só você me ajudou.

Lembro que eu não conseguia acertar.

Molhei sua mão e morri de vergonha.

Pensei que você fosse embora e morri

de medo também.

Mas, então você disse muito calma:

"Xixi de filha é água benta".

 

Seria sacrilégio escrever isso?

Antipoético? Nunca,

jamais algo nem ninguém me fez sentir

tão pura e tão amada.

Eu era um anjo doente, mas feliz

porque tinha essa mãe

e nada mais me importava.

 

 

 

 

 

 

DESCOORDENADA

 

O vazio entre meus braços

Tem seu exato contorno,

Um deserto cercado pelo verde

Avassalador do desejo de te devorar.

 

E quando fecho os olhos

Vejo sua íris multicor

E o canto seco dos seus lábios

Pedindo algo que eu quero dar.

 

Poderia encharcá-lo como um Amazonas

Se o mundo tivesse outro recorte

E não fôssemos um acidente indesejado,

Incongruente sobre a mesa de jacarandá.

 

 

 

 

 

 

MINHA CANÇÃO

 

Eu sou uma voz,

duas vozes, três a discutir

coisas sem cabimento aqui na minha cabeça.

Eu sou a pessoa que as escuta

e se pergunta por que continua

com esse bando de doidos

dilapidando com sentido as coisas belas.

Eu sou uma doença na mente de Deus,

não por ser forte ou corajosa,

mas por não temer.

Eu sou os olhos que guiam

estas mãos sobre o papel,

mas só veem o seu rosto.

Eu sou quem percebe os dias do calendário,

quem os conta até suas próximas férias

ou o momento certo para encontrá-lo.

Eu sou a vontade desperta saindo da cama,

encarando o espelho embaçado pelo banho -

e o mais estranho é que me reconheço

assim sem foco, sem começo, derretida.

Eu sou etérea carne macia que anseia

por todo amor do mundo, como todo mundo.

Eu sou o sorriso que sai da sua boca

porque sou sempre eu quem sorri primeiro.

Mas, eu sou má e às vezes louca

porque sem você não sou nada por inteiro.

 

 

 

 

 

 

DO AVESSO

 

Sinto a língua como a de um estranho em minha boca.

Meu beijo parece o de Judas e tenho vergonha do meu amor.

Meu pensamento, um galeão carregado de ouro no fundo do mar.

Quase tudo em mim está no lugar errado, irrecuperável,

e o que me impede de enlouquecer,

sair gritando por aí como essa gente fedida

que me olha nos olhos e persigna-se,

é a vontade de ser certa pra você.

 

E enquanto eu tiver certeza disso estarei segura.

Segura de que é você que me faz engolir uma raiva danada,

e não me deixa chorar quando eu só precisava explodir em lágrimas.

Mas assim, pelo menos, eu saio batendo as portas,

esmurrando os carros que desrespeitam o sinal vermelho,

consigo falar palavrão, ser muito malcriada mesmo,

correr 20km em 1h30, comer 1kg de chocolate,

uma caixa de corn flakes e 2 garrafas de vinho sem vomitar.

 

E enquanto me ocupo com essas coisas,

essas sensações esquisitas, que não são minhas,

você finge que vai desaparecendo e eu finjo que não vejo

que você está em todas as ruas por onde passo,

em todas as palavras que escrevo,

em todos os espaços do meu corpo

e é tudo o que eu desejo;

 

... e pensar em como sou estúpida.

 

 

 

 

 

 

SEGURAMENTE SECO

 

Sangue cerca as cidades, os oceanos, as florestas.

No deserto não há nada a lembrar a paixão ou a morte;

elas se foram dali com o espírito dos tubarões

há vários milhões de anos.

No deserto vive-se eternamente sob o sol,

queimando os ossos até ficarem branquinhos e crocantes

e a areia vir escaldante cobri-los em tempestade.

No deserto todo lugar é caminho.

Não é preciso escolher, nem abrir mão de nada.

Não é preciso mais morrer. Depois de morta,

a vontade levará embora a agonia natural

com duas fileiras de dentes afiadíssimos

ou algum vírus desconhecido, um tiro à queima-roupa,

quem sabe? Mas o deserto permanecerá sempre em paz,

derretendo em tranquila meditação toda sombra de desejo,

focalizando apenas uma visão branca e granulada. Muito zen.

É impossível mesmo haver miragem em olhos vazados,

meio improvável enxergar fantasmas sem a medula.

No silêncio tórrido e nas estrelas frias desse céu

brilham para ninguém os sonhos de um homem que seguiu sob os 50o C,

mas morreu na praia enchendo a boca dos peixes de um viscoso sangue.

 
 
 
 
(imagens ©graciela ciampini)
 

 

 

 

Chris Ritchie: Nasci em Santos-SP, em 8/11/67. Mãe brasileira e pai escocês. Cresci na praia e, desde que aprendi, sempre gostei de escrever. Vim para São Paulo fazer Letras e mestrado em Literatura, ambos na USP, e aqui fiquei, morrendo de saudades do mar. Sou professora de inglês e gerente educacional de uma instituição de ensino.