©steve bronstein
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Há no Oriente um gosto impermanente e definitivo. Simultaneamente. Um Oriente que nem existe mais, é de se supor, mas que aos olhos menos corriqueiros, ainda está lá. Está  nos grandiosos épicos, nos arroubos arquitetônicos, na sábia tradição oral, na religiosidade cotidiana e na relação quase original com tudo aquilo que chamamos de tempo. Curiosamente, em hindi, um dos idiomas mais falados na Índia, temos uma única palavra  para designar idéias tão antagônicas quanto ontem e amanhã. E veja que este é um idioma tão indo-europeu quanto o vosso português! E é assim que os indianos se relacionam com o tempo. Um dia de Brahma, por exemplo, também chamado de kalpa, dura 4.32 bilhões de anos humanos (obviamente, o número exato  depende da tradição, mas é sempre algo astronômico). Um só dia!

 

Lembro-me de ter lido uma pesquisa acerca da preferência dos habitantes de vários países em relação ao tempo e ao dinheiro. Na Rússia, ávida por  consumo, abafada por anos de sub-comunismo, ganhou o dinheiro. Foi onde mais cidadãos se confessariam felizes, caso fossem ricos. E na Índia, com sua corrupção crescente e propinas obrigatórias, o tempo levou a melhor. É mais desejável ter tempo livre, declararam.

 

E isso ocorre num país onde milhões são desempregados, atente. Com tanto tempo de sobra e  muitas reencarnações por vir, o ineditismo  dos indianos é mais distinto do que se supõe.  Perceba, este é o país que deu ao mundo um épico do tamanho de 15 bíblias, que forneceu o conceito do numeral zero e que montou as bases do minucioso e demorado jogo de xadrez moderno. É onde a figura do historiador, ao contrário do mundo greco-romano, simplesmente não existia, pois se o tempo não ocorre, não há então História, conclui-se. Bem-vindo, prezado leitor!

 

Na verdade, queimava eu a língua com um chá matinal num feriado destes, impressionado com a habilidade de Mallarmé em recontar umas histórias da minha terra. Uma tradução brasileira, recém-lançada, iniciou-me no seu talento. São os Contos Indianos.

 

Comecei justamente falando do tempo, pois creio que a relação do autor com a confecção do livro, entre dezenas de outras, corre por esta via. Primeiro, mas não mais importante, o livro é recontado da versão de uma tal de Mary Summer, que havia desagradado Mallarmé, não a senhora, mas a obra. Ou seja, o autor, não sabendo nada de sânscrito, se aventura a reescrever a tradução  (caso soubesse a língua, talvez percebesse o excesso quando escreve a bela Sundari para designar a rainha,  na primeira narrativa. O nome próprio da monarca já significa beleza em seu idioma original, explico. Pela adjetivação do autor, sabemos que ela é bela, mas somos privados de saber que já era chamada desse modo desde seu nascimento, que já era predestinada a ser. Assim desvendado, o nome deixaria de ser um simples nome para carregar, ao estrangeiro e desavisado leitor, o seu significado original e determinante). Segundo, ele reconta as histórias numa ordem diversa das sete originais, ficando apenas com quatro. Depois ainda, me valho das palavras de Dirceu Villa, que ensina, na introdução do livrinho (diminuto pelo tamanho, somente, pois sua grandiosidade é de difícil mensuração):

 

"O trabalho de Mallarmé, datado de 1893, é, no fundo, o trabalho de um grande especialista que cuidadosamente rearranja as partes de um objeto imperfeito: ele não reescreve as histórias, no que seria uma simples e convencional paráfrase do texto de Mary Summer, mas reconstrói a estrutura dos contos, muitas vezes apenas remanejando  as mesmas sentenças em outra ordem narrativa, de onde extraímos que ele interpretou de modo muito diferente o próprio aspecto narrativo dos contos".

 

Do caráter museográfico da obra de Summer, como foi apontado em um de seus prefácios, ao qual eu acrescentaria didático, funcional e esquemático, Mallarmé reconstrói estilisticamente os contos, começando não do começo, mas de alguma parte da narrativa que pudesse fisgar o leitor, ou pinçá-lo, como prefere Villa. Pois assim, ficamos ávidos e curiosos em saber o que se passa, ao contrário do mofo fácil de fábula malcontada.

 

O autor da introdução brasileira pontua agora o tempo, objeto das minhas divagações iniciais: "Mallarmé modificaria um detalhe essencial, que é o tempo verbal(...) levou os verbos narrativos habituais do imperfeito para seu sentido pontual, perfectivo, que desfaz a impressão de estarmos diante de uma lenda, ou uma fábula, do 'era uma vez'". Citando Dhainault: "Mallarmé não se orienta pela cronologia linear (...) várias vezes deixa de respeitar a ordem sucessiva dos eventos". Mais adiante, diz que "aquilo que ela (Mary Summer) conjuga em tempos compostos, ele transpõe para tempos simples, o que ela exilara no passado ele integra ao presente (...)". Engenhoso, acrescento.

 

Como ensinado nas páginas introdutórias, não desvelo  as narrativas. Deixo ao leitor a tarefa de descobri-las. E advogo que não é o caso também de queimarmos na fogueira a pobre Summer. Sem ela, talvez, não estaria eu aqui, recomendando a leitura destes quatro contos, lançados, numa outra inversão temporal, anos após a morte do autor. Uma obra que exige leitura minuciosa e atenta, mas que proporciona quase difícil prazer. Contra a mediocridade com a qual a Índia é muitas vezes tratada, resumida a incensos e roupas típicas que nenhum indiano de verdade usaria, este livro é um belo presente para quem quer estar um pouco além do óbvio. Estar além do visível e do tangível, eis a base de quase toda a filosofia indiana.

 

 

 

MALLARMÉ, S. Contos Indianos. São Paulo: Hedra, 2006
Tradução de Dorothée de Bruchard | Introdução de Dirceu Villa
www.hedra.com.br

 

 

 

 

 

novembro/dezembro, 2006