capa da edição nº 17 da série Circuito Atelier da Editora C/Arte, 2002
 
 
 
 
 

 

Lotus Lobo é uma das mais importantes litógrafas e grande referência na arte contemporânea mineira e brasileira. Sua trilha, projetos, diálogos e apropriações caminham pelo viés gráfico e construções a partir da rocha. Uma capacidade cristalina em elaborar imagens através do paciente trabalho artesanal e a relevância da pesquisa, preservação e divulgação de rótulos de estamparias litográficos sobre folhas de flanders de manteigas e vários outros produtos, presentes na memória e história nacional. Realiza um olhar contemporâneo sobre a litografia. O elo? Questionamentos, químicas e convicções — agentes catalizadores — entrecortadas por simetrias movidas pela inquietude e a criatividade. Na realidade, a grande orientação da sua carreira vai ao encontro das palavras do poeta João Cabral de Melo Neto em A Educação pela Pedra, como bem aponta a crítica de arte e editora Marília Andrés Ribeiro, em dezembro de 2006: "Uma educação pela pedra: por lições: / para aprender da pedra, freqüentá-la; / captar sua voz inenfática, impessoal".

 

O poema de João Cabral de Melo Neto é o ponto de partida. Porém uma pedra fica no ar. Uma pergunta objetiva: afinal, o que é a litografia? As tonalidades e esclarecimentos vêm na entrevista da artista a Janaína Melo, presente na edição nr. 16 da série Circuito Atelier (Editora C/Arte, Belo Horizonte, MG, 2001), dedicada a Lotus Lobo:

 

 

"Desenhar na pedra é diferente de desenhar no papel?

 

       A litografia é diferente das outras técnicas de gravura, pois possui uma proximidade com o desenho. No caso da xilogravura, processo de relevo, o que se cava permanece em branco e o que está em relevo é a linha, a forma, a tinta... Na gravura em metal, processo de côncavo ocorre exatamente o inverso, o que recebe a tinta é o sulco e o que está na superfície é o branco.

      Na litografia o processo é planográfico. O desenho é fixado na pedra por meios químicos. Desenhar com o pincel usando a técnica de lavis, tusche e água sobre a pedra litográfica é como aguadas de uma aquarela. Desenhar com crayon num papel poroso lembra-nos o trabalho com crayon numa pedra litográfica.

       Existem pontos que são familiares, mas o que os diferencia é o suporte. A pedra é sólida. Ela oferece uma firmeza diferente e por mais estranho que possa parecer, a pedra, supostamente dura, oferece uma maior flexibilidade ao desenho, pois, permite voltas e correções impossível no papel.

 

 

É importante o artista estar presente em todas as etapas do processo litográfico?

 

   A gravura é constituída por diferentes etapas que devem ser cumpridas. Sou muito operária, gosto de rolar a tinta na pedra e considero que todas as etapas do processo são criativas. A escolha do grão, que será usado pra granitar a pedra é um dos determinantes expressivos da gravura. O artista controla todas as etapas, desde a granitagem, processamento e impressão. Nesse processo ele pode estar acompanhado de pessoas, que o auxiliam e que são técnicos especializados, mas o artista deve estar sempre presente".

 

  

Lotus Lobo, 2001.

Fotografia: Pedro Motta

 

Lotus Amanda Maria Lobo nasceu em Belo Horizonte, MG, no dia 1º de abril de 1943. Filha de Waldomiro Agostinho Lobo (ex-deputado do PTB/MG) e Eugênia Bracher Lobo (cantora lírica, pianista, concertista e professora da Escola de Música da UFMG). O ambiente artístico na família era sólido, animado ainda mais pela presença do tio, o pintor Frederico Bracher, primeiro professor e grande estimulador da carreira de Lotus Lobo.

 

Em 1962, a artista abandona as aulas com seu tio pintor, e começa a freqüentar a Escola do Parque, no Parque Municipal, região central de Belo Horizonte, MG, criada por Alberto da Veiga Guignard e o prefeito Juscelino Kubitschek em 1944, onde estuda técnicas de desenho com Maria Helena Andrés e xilogravura com Yara Tupinambá. No ano seguinte, participa do curso de pintura mural oferecido por Inimá de Paula na Escola Guignard, Belo Horizonte, MG. Também em 1963, em viagem a São João del Rey, conhece o pintor e litógrafo Quaglia. Do encontro, torna-se aluna de Quaglia e o convida para dar um curso na Escola Guignard, inaugurando em definitivo, na contemporaneidade, a história da  litografia em Minas Gerais.

 

Em 1965, Lotus Lobo funda juntamente com Eduardo Guimarães, Frei David, Klara Kaiser, Paulo Laender e Roberto Vieira o Grupo Oficina, importante na sua carreira, pelos momentos de reflexão e cursos promovidos. No mesmo ano, gradua-se em artes plásticas na Escola Guignard, passa no concurso e assume o cargo de professora de litografia na mesma escola, ficando de 1966 até o ano de 1993. Entre 1966-1967, seus trabalhos integram as mostras "Desenhistas e Gravadores de Minas Gerais", realizada na reitoria da UFMG e a "Primeira Exposição do Museu de Gravura de Belo Horizonte", no Palácio das Artes. Nessa época, recebe os primeiros prêmios como artista plástica. Com trabalhos da série Transformações/Mutações, participa, em 1968, das mostras "Gravura Contemporânea Internacional", na Galeria Encontro de Brasília, DF; "Três Aspectos Del Grabado Contemporâneo Brasileño", exposição itinerante pelos países da América latina, organizada pelo Itamaraty e "A Gravura Nacional", no Museu Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro, RJ.

 

 

Lotus Lobo, Transformação / Mutação / Transformações — Mutações, 1968

Políptico / Impressão digital sobre papel, 86X564 cm. Foto: Eduardo Eckenfels

Exposição "Marca Registrada" — Lotus Lobo — Palácio das Artes, BH, MG, dez/2006 a mar/2007

 

 

No final da década de 1960, juntamente com Luciano Gusmão e Dilton Araújo realiza happenings e intervenções pela capital mineira. Paralelamente às intervenções, Lotus Lobo inicia uma nova série de pesquisas, que consiste na apropriação de antigos rótulos da litografia industrial, que perdura durante toda a década de 1970. Em 1969, participa da "X Bienal Internacional de São Paulo", quando recebe o Prêmio Itamaraty. No começo da década de 1970, apresenta sua primeira mostra individual na Galeria Guignard, Belo Horizonte, MG, com os trabalhos intitulados Maculaturas, que são apropriações de folhas de flanders usadas na Estamparia Juiz de Fora para acerto da máquina impressora.

 

Lotus Lobo viaja para Paris (Prêmio Itamaraty), onde estuda na École d'Arts Plastiques et Science d'Art da Université de Paris I, realizando cursos de Semiologia e História da Arte. Retorna ao Brasil em 1972 e participa da "8th International Biennial Exhibition of Prints" em Tóquio, Japão e da mostra "Arte/Brasil/Hoje — 50 anos Depois", com curadoria de Roberto Pontual, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, RJ. Em 1976, a artista inicia um trabalho de resgate da memória dos rótulos industriais, em parceria com dois alunos da Escola Guignard, Sônia Labouriau e Ângelo Marzzano. No final da década de 1970, seus trabalhos passam por novas reflexões que culmina com a série Anotações, retrabalhando os rótulos/marcas/matrizes industriais, as quais vão cedendo espaço a novas construções abstratas.

 

Em 1981, Lotus Lobo ganha o Grande Prêmio da "V Bienal del Grabado" em San Juan, Porto Rico. Para a Bienal, a artista realiza um trabalho no qual se apropria de papéis antigos — usados como camas na impressão litográfica — da Estamparia Juiz de Fora. Com essas camas realiza uma série que denomina Maculaturas de Papel. Incentivados por Yves Alves, os artistas Lótus Lobo, Fernando Pitta e Maria José Boaventura inauguram, uma nova experiência de ateliê coletivo, "A Casa de Gravura Largo do Ó" (1984-1990), em Tiradentes, MG, que viabiliza a restauração de todo o acervo de pedras com imagens de rótulos industriais, bem como a publicação contendo gravuras originais, distribuído às escolas de arte, museus e bibliotecas de Belo Horizonte. Em 1988, através de uma parceria entre a Casa de Gravura e os pesquisadores do Museu Mineiro, elabora a mostra "Memória da Litografia em Minas Gerais". Com a curadoria de Lotus Lobo, a exposição contempla a memória da litografia industrial de Juiz de Fora e de Belo Horizonte.

 

 

Lotus Lobo, Maculatura, 150X170 cm, 1970

Da estamparia litográfica sobre folha de flanders

Foto: Eduardo Eckenfels

 

Objetivando promover a gravura brasileira no exterior, Lotus Lobo organiza, em 1986, a conferência sobre a gravura brasileira no Saint John's College, da University of New México, em Santa Fé, EUA. Realiza inúmeras exposições e recebe vários prêmios. As principais exposições do final da década de 1980 foram: "Ninth British International Print Biennale", em Bradford, Inglaterra, (1986); "Gravuras do Largo do Ó", na Galeria da Embaixada da França, em Brasília, DF, (1987) e "Aspectos da Litografia", realizada na Sala Carlos Oswald do Museu Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro, RJ, com curadoria de Antonio Grosso (1987).

 

Em 1990, após o encerramento das atividades da "Casa de Gravura do Largo do Ó", Lotus Lobo retorna a Belo Horizonte onde assume o cargo de professora de litografia da Escola Guignard, o qual exerce até 1993, quando se aposenta. 

 

 

Lotus Lobo, Sem título, Litografia sobre papel, 57X72 cm, 1980

Foto: Eduardo Eckenfels

 

Na década de 1990, seus trabalhos integram várias mostras coletivas, dentre as quais se destacam: "Ícones da Utopia", com curadoria de José Alberto Nemer, realizada no Palácio das Artes, Belo Horizonte, MG (1992); "Bienal Brasil Século XX", coordenada por Nelson Aguilar, no Pavilhão da Bienal de São Paulo, SP (1994); "Pensar Gráfico: a Gravura da Linguagem", realizada no Paço Imperial, Rio de Janeiro, RJ, com curadoria de Rubem Grilo (1998).

 

Trabalha, em 1998, como pesquisadora do projeto "Memória da Litografia Industrial em Minas Gerais", coordenado pelo professor José Márcio de Barros, visando à organização do acervo de pedras litográficas da Escola Guignard. Em 2000, integra um novo projeto desenvolvido em parceria com Liliane Dardot, Santana Dardot, Augusto Magno e Gustavo Timponi, que visa a divulgação da coleção de antigos rótulos de bebidas do litógrafo Guilherme Rüdiger, através de análise histórica e técnica dos rótulos litografados.

 

Suas gravuras integram significativas coleções particulares de arte e acervos de museus, fundações e universidades do Brasil e exterior. Após mais de quarenta anos dedicados à linguagem litográfica, Lotus Lobo ainda trabalha na organização e catalogação de sua coleção particular de matrizes da litografia industrial com o objetivo de criar um Centro de Memória da Litografia Industrial de Minas Gerais.

 

 

Lotus Lobo, Sem título, litografia sobre papel 3/5, 50X70 cm, 1999.

Foto: Cristiano Quintino

 

Uma das visibilidades da litografia é dar um outro atributo estético à pedra que não seja somente a escultura. Consiste numa complexa mistura de técnicas, cores, artifícios e intervenções químicas — ao transmutar a superfície da rocha — que se cruzam até resplandecer na linha bruta, traços e conexões da matriz mineral transformada em desenhos/impressões/abstrações coloridas ou em preto e branco sobre o papel, que instigam as imaginações das pessoas. Ligadura no laboratório contaminado pela experimentação sempre em movimento de algo estático — a pedra ou a placa metálica — transfigurado em formas possíveis de leituras e interpretações diversas.

 

A linguagem expressiva e a liberdade criativa de Lotus Lobo nos remetem à prudência das escolhas. A tarefa madura encontra o seu lugar ao compor formas, cores e simetrias de uma perspectiva imaginária e caminho a ser seguido até o fim: fruto do discernimento. O resultado é uma espécie de síntese da simplicidade — reflexo da espontaneidade e o rumo consciente —, conteúdo e comprovação do trabalho que inova, fala por si, arrisca sem afetação. Uma sinfonia coesiva aos olhos dos apreciadores da litografia, espaço no qual a valorização do processo faz lembrar o que escreveu Gertrude Stein, "Uma rosa é uma rosa". Que passeia pela mente e o coração dos espectadores, acrescido de algo afetivo. Esplêndido. Interação e sentimento que da pedra e sua natureza pode nascer a beleza predestinada e o cenário em desenhos cheios de vida marcados pelo tempo. A pedra transformada em rosa, a rosa de ouro nos caminhos que se cruzam no horizonte delineado pela luz, pétalas e o trabalho artístico com imagens intensas, num complexo e estimulante sistema de voltas e vindas refletindo sem cessar na memória.

 

 

Capa do catálogo da mostra "Marca Registrada", BH, MG, dez/2006

Capa de João Lobo, jornalista, filho de Lotus Lobo (responsável pelo projeto gráfico,

logomarca e programação visual da exposição)

Lotus Lobo, Anotações, litografia sobre papel, 21x26 cm, 1978

 

A última grande mostra de Lotus Lobo, "Marca Registrada", foi inaugurada no dia 14 de dezembro de 2006 e ficou aberta até 4 de março de 2007, no Palácio das Artes, Belo Horizonte, MG; extensiva, do dia 20 de março a 29 de abril de 2007, na cidade de Ipatinga, MG, no Centro Cultural Usiminas. A retrospectiva — considerada pela crítica uma das melhores exposições de artes plásticas dos anos de 2006/2007 em Minas Gerais — são construções litográficas privilegiadas. Registro da carreira, direcionada para o resgate histórico de uma temática saudosista, que amplia a dimensão proposta com talento e procedimentos da  metalinguagem: "Lotus opera um ato criativo de modo renovadamente crítico, em relação aos signos, situações, lugares e objetos repertoriados; em relação à cultura de que eles participam e, em relação à própria litografia industrial, de que ela se serve para comentar essa cultura", como observa Luciano Gusmão no catálogo bilíngüe (português/inglês) da mostra.

 

A essência da litografia é uma busca constante nos trabalhos apresentados nesta exposição, especialmente a partir das múltiplas configurações procedentes da pedra e do metal, e suas energias, nas mãos hábeis da artista. Trata-se também, antes de qualquer coisa, de um acontecimento importante para despertar as atenções de todos — públicos e privados —, e criar um movimento imediato para a concretização de um projeto mais amplo e antigo de Lotus Lobo, o Centro de Memória da Litografia de Minas Gerais, um local para guardar, preservar, divulgar e pesquisar ainda mais o excepcional acervo da litografia mineira.

 

 

 

setembro, 2007