©Thomas Nola-Rion & Frank Molinsky
 
 
 
 
 
 
 
 

Uma rápida passada d’olhos sobre a relação das epígrafes com os poemas de T. S.  Eliot bastaria para se afirmar que tradição era assunto caro para o poeta. Em Four Quartets, dois fragmentos do "obscuro" Heráclito (c. 340 a.C.) não só preludiam o conjunto, como ecoam nos primeiros três versos do quarteto inicial: "time present and time past/are both perhaps present in time future/and time future contained in time past" glosam a filosófica reflexão greco-espacial: o(do\j a)/nw ka/tw mi/a kai\ w(uth1. No célebre The Waste Land (1922), as palavras de Trimalquião, em seu opulento banquete, dirigidas a Agamêmnon, são resgatadas do Satyricon de Petrônio para emoldurar uma incessante busca pela morte, retratada na clássica figura da Sibila, desejosa por morrer — o que remete às cenas pintadas pelo poema, bem como ao "l’entre deux guerres" de sua escritura. Em The Love Song of J. Alfred Prufrock, o conde Guido da Montefeltro principia a estranha canção de amor — como quem responde ao próprio Dante, na oitava vala infernal — com um breve preâmbulo à própria divagação do poema: se minha resposta fosse a alguém que retornasse ao mundo, jamais diria uma só palavra; mas, como deste inferno nunca voltou vivo algum, sem medo da infâmia, assim te respondo…


Pois, sem medo da infâmia ou difamação, não mais temeroso de seus ouvintes e interlocutores (como nosso defunto-autor Brás Cubas), o eu-poético reinstaura, logo na primeira estrofe, uma nova caminhada, mais precisamente uma visita (Let us go and make our visit) — não mais de Dante e Virgílio pelos círculos infernais, mas agora do leitor e da voz poética (you and I) por ruas semi-desertas (through certain halfdeserted streets) em direção a uma questão esmagadora (overwhelming question) — e que paira eternamente no poema — de rumo aparentemente  imprevisível.


Mulheres começam a falar de Michelangelo. O ambiente, com suas janelas e poças, é percorrido pela fumaça amarela em plena noite de outubro. Que loucura é esta? Para onde foi o eu-poético nestes versos? Isto é poesia — vocabulário simples, em sintaxe clara e direta? Essa tal modernidade…
Passemos então ao tempo, and ideed there will be time.


O tempo — tema tão importante nas reflexões do poeta – parece custar caro nesta canção de amor pouco usual. Ainda que se repita continuamente there will be time, ecos do Eclesiastes (cap. 3) que se interferem com um trecho de Andrew Marvell ("Had we but world enough and time..."), a certeza do tempo sem fim não encoraja — ao contrário, traz dúvida e faz titubear (and time yet for a hundred indecisions). Tolhido pelas impressões alheias da aparência na sociedade que o circunda (to prepare a face to meet the faces that you meet), o custo final do tempo perdido pelo poeta é uma velhice incômoda e caduca, uma das poucas constatações clara, repetida e reticente, já próximo ao fim do texto (I grow old…
I grow old...). E o aparente vazio social não fica apenas na repetição da rima pomposa das mulheres que conversam sobre Michelangelo; o mesmo pin, que tão modestamente lhe ajusta o nó da gravata (my necktie rich and modest, but asserted by a simple pin), parece fixar o poeta, sempre preso às impressões, como um inseto em análises ou coleções, frente aos olhos que o enquadram em frases feitas (when I am pinned and wriggling from the wall). Curioso como este vão "temps perdu" se une tão bem ao proustiano toast and tea, mergulhado em centenas de decisions and revisions which a minute will reverse, na toada de um lirismo aparentemente descompromissado. O tempo parece ter já passado, o tempo de "ousar perturbar o universo", mas que nunca sabe ao certo quando começar (and how should I begin?) e parece sempre duvidar de si mesmo (should I, …, have the strength to force the moment to its crisis?). Entre o cogitar e o agir há o peso constante de uma incômoda questão — ainda que pré-anunciada.


Há uma sensação de luta vã e infinda ao fim do poema. O questionamento instigante "do I dare disturb the universe" do início da canção mitiga-se num insosso "do I dare to eat a peach" — cotidiano e banal. Na parábola do rico e do mendigo2, a conclusão de Abraão na porta do céu ("tão pouco se deixarão persuadir, ainda que ressucite alguém dentre os mortos") parece se repetir ao final da estrofe em que Lázaro é invocado, desta vez em tom mais resignado e melancólico, mesmo que abafado e insatisfeito: this is not it, at all  não há, pois, porque tentar sequer, pela simples contrariedade das alternativas. Nada foi feito, nada realizado, sequer tentado, pois só há negativas (como ao fim da história do defunto-autor) que se resvalam velhas, caducas (I shall wear the bottoms of my trousers rolled) e "demodé" (I shall wear white flannel trousers), vazias e incapazes. Guido da Montefeltro tentara trocar a carreira militar pela religiosa vida franciscana, a fim de lhe salvar os "accorgimenti" e a vida de pecador — como relata o canto XXVII do Inferno — e acabou envolvido na cauda de Minós, frustrando-se com a lógica de seus próprios passos. O poeta de "The Love Song of J. Alfred Prufrock" não parece ver como ou por quê fugir e, mesmo ao canto das sereias (um dia já fonte de tentações), renuncia, com o leitor, afogado nas próprias vozes dos homens — nebulosa de sua indecisão.


A questão da tradição literária ressoa na poesia de T. S. Eliot, e não deixa de ecoar em "The Love Song…". Do incipit com a commedia ao epílogo com as sereias, passando por João Batista, Lázaro, Hamlet, vêem-se passar personagens, cenas e outros ecos literários que variam segundo a bagagem do leitor — e a devida associação, quando articulada. Segundo sua concepção de clássico, Eliot apropria-se da tradição a fim de rearranjá-la, mesclando-a com criatividade a seu cotidiano circundante3 — e na "Canção de Amor de Prufrock" o balanço deste rearranjo é patente. Neste tênue equilíbrio murmuram vozes, ao mesmo tempo, distantes e familiares, cujas impressões são fortes ainda que o motivo incerto. Os "correlatos objetivos"4 teorizados por Eliot podem explicar como uma emoção é evocada e confrontada na poesia, mas não elucida a força da mistura de nossas impressões ante o texto.


Por fim, não é preciso dar crédito algum às epígrafes dos poemas.
Como diz Elitot ao término de seus quartetos, every phrase and every sentence is an end and a beginning. Dizer, pois, que as citações que os encabeçam solucionam tais poemas é um grande engano — talvez, como ignorá-las por completo. Estas citações ora fornecem instigantes chaves de leitura, ora nos confundem e atordoam ainda mais nas releituras do texto. Entretanto, elas explicitam, de antemão, que o poema (e, por conseqüência, o poeta) está atento às vozes da tradição, como um aviso prévio, caso ouçamos na canção os ecos do passado — e a constatação que pisamos em ombros de um "novo" gigante.

 

 

 

 

___________________

Bibliografia básica


Para os poemas de T. S. Eliot citados no texto, foi utilizado o volume T. S. Eliot — The Complete Poems and Plays, Faber & Faber, London.

 

 



__________________________ 

Notas


1
 Caminho para cima (e) para baixo (é) um só e (o) mesmo.

 

2  Lucas, XVI, 19 – 31.

 

3 The persistence of literary creativeness in any people, accordingly, consists in the maintenance of an unconscious balance between tradition  in the larger sense — the collective personality, so to speak, realized in the literature of the past — and the originality of the living generation. (What is a Classic in Selected Prose of T. S. Eliot, Faber & Faber, p. 119, 120).

 

4  Hamlet in op. cit., p. 48

 

 

 

 

O texto, publicado em uma das edições de SEPEG (Seminários de Pesquisas da Graduação),  publicação de circulação interna do IEL (Instituto de Estudos da Linguagem, da Unicamp), foi indicado pelo Prof. Paulo Franchetti para publicação em Germina.

 

 

 

 

agosto, 2005

 

 

 

 

 

Alexandre Prudente Piccolo é estudante de Letras na Unicamp. Mais aqui.