Não, não é nada disso. Eu só beijei ele por pena.

Ele disse que eu era interessante na oitava série. Ninguém é interessante na oitava série. Ainda mais eu, que era magrela e nariguda. Ele disse ainda que o tempo passou e eu virei uma mulher linda e muito, bem mais interessante.

Eu disse, natural.

Ele disse, não.

Esperto. Merecia o beijo. Por ser esperto às sete da manhã ou por saber mentir a uma mulher.

Deixei-o na porta de casa, vizinho à minha. Ele veio achando que nós realmente seguiríamos o fluxo natural das coisas entre duas pessoas bêbadas num after hours particular. A minha vontade era judiar, só um pouquinho, dele. Preconceituoso esse verbo, judiar, deve vir do sofrimento dos judeus.

Eu não queria maltratá-lo tanto, só o suficiente. Impulso. Entre um menino e uma mulher de vinte cinco anos parece existir um abismo pronto a ser preenchido por rios de perversidade.

Eu ri. Ele não entendeu.

— É que é muito diferente estar num carro às sete da manhã, bêbada, com alguém da minha idade.

— Diferente de quê?

— Da minha vida, ora.

— Ah, tá.

E ele veio, afoito, afobado, típico, querendo pegar nas minhas coxas.

Eu lhe disse, tira a mão daí. Apontei meu dedo indicador e falei, eu tô de minissaia, você só pode ir até o meu joelho.

— Ahã?

— É que eu sou casada há três anos com um cara 17 anos mais velho que eu.

— Ah.

— Adultério não é mais crime no código penal, não lá em casa.

As pausas entre pessoas com pouca, ou nenhuma, intimidade foram feitas pra ser preenchidas velozmente. Quando não acontece, golfa um constrangimento que a gente segura pra não piorar ainda mais as coisas.

— Eu sou uma pessoa totalmente sem foco. Eu disse.

— Nada. Você é totalmente focada.

— Se eu fosse tão focada não te tirava daquela boate.

— Você me deu uma carona.

— Porque você veio falar comigo numa proximidade, digamos, estimulante.

— Desde a oitava série a sua proximidade é, pra mim, um estímulo.

É muito curioso esse fenômeno de tesão retroativo. São vários meninos do tempo do colégio, da turma da rua, do curso de inglês a idealizarem um encontro mais íntimo com você e que, em algum momento, sentem-se seguros o suficiente pra expressarem isso fora das quatro paredes que protegem o imaginário de um punheteiro. Surgem convites pra trabalhar, desejos atualizados de longínquos projetos de amizade e, até mesmo, as tais propostas mais ousadas.

— Eu achei que ia te encontrar no carnaval. Ele disse.

— Você não me reconheceria. Eu estava sempre fantasiada.

— E eu bêbado.

Aqui imaginei-o num bloco, entre uma marchinha e outra, olhar vago, no instante em que o pierrot procura a colombina. Esperto ele.

— Boa noite. Eu disse.

— Você aprendeu a dispensar alguém tão rápido vendo os filmes do Leone?

— Pra você sonhar que o Velho Oeste é um lugar romântico, te dou um beijo de boa noite.

— Uns?

— Só se você merecer.

 

 

 

Antonia Pellegrino é roteirista, tem contos publicados nas antologias Prosas Cariocas e Paralelos, organizou o volume Lucidez Embriagada, com textos de Helio Pellegrino, edita o blogue Inveja de Gato.