O VIÇO VELOZ DA VERTIGEM

 

 

 

Personagens:

 

1 – Centro do mundo

2 – Minha mulher

3 – Eu pela boca fora

4 – Carro (cinzento)

5 – Remoinho

 

        

1 – De repente o despiste envolve o carro ou a estrada descai movendo-se em vertical de forma que tudo soçobra enrolado em capotamentos intermináveis e quedando-se de pernas ao ar bate contra o centro do mundo.

2 – Matei hoje a minha mulher apesar de ela voltar à vida viva mas do despiste só eu respondo porque assumi em mãos o volante e daí a responsabilidade que haver possa e se o deslize é de morte sou eu que a matei e a vida que possa ter é retirada de meros acasos contidos nas mínimas hipóteses extraídas de todas as outras a mais segura das quais só uma dessas poderia ser.

3 – Em situações análogas o turbilhão de ideias e hipóteses e receios e esperanças e expectativas e conformações e brutezas é de tal ordem que os minutos são séculos e nada cicatriza nem se consolida o eu sai pela boca fora e no final se ainda consciente é um estendal de fracturas que se mantém fracturado a despeito de não haver fracturas físicas só fracturas em ferida é o que te rodeia.

4 – O carro é cinzento era cinzento mas de um cinzento bonito metalizado espelhante agora conspurcado de terra torna-se símbolo de acontecimento cinzento e a cor cola-se dando-se novo tom e nova cor e a cor cinzenta ganhando corpo e  vida de morte próxima.

5 – O acto de despiste é como um rasgar de águas e quando se inicia tem no ventre todas as consequências nefastas ainda que elas não se confirmem de sorte que a posteriori mesmo não havendo consequências físicas ele se reinicia e as consequência retornam potenciais então melhor é desviar a obsessão projectá-la noutros terrenos mas ele bate no cérebro volta a acontecer reinicia-se insiste torna-se teu invólucro invertendo-te não se afugenta e volta e revolta e revolteia e remoinha em círculos de inferno a que nem gritos se podem opor internos e sobretudo o resultado no acto de início insiste em tentar segurar o volante e insiste e insiste permanente intermitente e cria-se grávido e não se escoa nunca o remoinho.

1 – A montanha está inteira engorda verde no outeiro e por isso o carro desgovernado mal se descontrola determina olhos fechados e o escuro é de entranhas da terra  e quando finalmente bate contra o centro do mundo finalmente se queda e aguarda a vinda dos caterpilhers e dos operários para a operação de rasgar a montanha alisando o declive com trampa de alcatrão.

4 - Está no stand exposto cinzento metalizado os clientes passam e circulam e opinam e defrontam um carro parado de princípio que um dia será parado de fim mas por ora está exposto metalizado pode andar mas nem sequer anda ainda está ali parado após a recolha para a construção de seu corpo dos minérios soterrados.

3 – O egoísmo nunca é pusilânime e usa verbos de recuo e porque a dor física em aparência é a mais insuportável por centésimos se intenta a fractura a separação dividida em dois o ser cindir em duas partes tentar refúgio mental nos ares e deixar que o orgânico se despedace sozinho e um dos locais preferidos até porque  condutor de gritos é a boca e o  eu sai  pela boca  intenta sair escapulir-se não tendo nem a noção que a dor o  repesca e que só o invólucro físico se inteiro o poderá inteiro manter.

2 – Está inteira minha mulher de novo inteira como se tivesse renascido agora mesmo do nada possui os pontos todos e a luminosidade neles de estar viva nem um arranhão um dente macerado nada de entorses próteses fisioterapia lamentos sobre o leito hospitalar de cães raivosos babando-se totalmente  íntegra e por matança de animais somos sabedores que o filme vital nunca pode rodar de trás para frente então assim inteira as pernas as coxas dois seios e o meio deles o rosto o todo o todo e no entanto não a procuras não a procuro porque se descolou dela o lado sexual.

5 – Dentro do cérebro se acendeu um calor incinerador estriou uma ferida sempre em carne viva e uma mosca pairante vai tocando com seu dedo espetado o centro da crosta rubra e essa é a imagem recorrente do remoinho e a mão a do pensar sacode a mosca sopra arremete e ela sempre ali e sempre paira e não é mortal.

4 – Coloca-o na estrada que devora quilómetros rodar o volante domar o cavalo com essa rédea nas mãos cavalo ou touro rédea ou cornos e essa sensação permanece e enrijece e torna-se concreta de pedra até que o prédio cai desliza de flanco como barco e as águas são de alcatrão e tudo se inverte em pino toda a segurança se esfumaça e o carro assume o poder e o eu sai pela boca.

1 – Agora há que rasgar a montanha em duas a corcova em duas desmontar requerer máquinas e operários e dias criar um fundo onde o sol não bata misturar com vários anos de distância requisitar uma seca de inverno e assim produzir gelo puro do que descarrila carros e então este descai e vai contra o centro do mundo já descarnado sem trevas de entranhas à luz diária do social pronto preparado e  requentado para a  reportiridade que só  se encolhe por ausência de mortes evidentes.

3 – O meu tio está deitado frio às vezes avistava-o nunca o conheci nem cumprimentei de modo que o genro diz aos comparsas este também é da família e ficamos na sala aguardando algo o silêncio escorre gordo resguardemos este local para ficar próximo do acidente somando-lhe mais de vinte anos e sonegando destarte o tio que entretanto fugiu para o cemitério.

1 – Deslocada a mira afixada aqui tudo enlouquece em locais menos próximos e os porcos da matança programada escorrem pelos quintais abaixo são alvo não de procura nem de protecção dos povos avistadores mas da cobiça destes e devido às várias precipitações a do terreno de garganta prevalece e esbarram os porcos atropelados nos barrancos e suas funduras fracturando as patas e permanecendo e dando azo ao comentário dos aproveitadores de carne de suíno à solta sem asas que os arrastam foi pena  ter-se  estragado assim um presunto.

3 – Quando bateu houve um estrondo e agora que nisso penso salta desvairada de campainhas uma perdiz na minha colina preferida porque o centro vive dos arredores e do ricochete.

1 – Agora retrocedes e quedas cristalizado no frio vítima de todos os olhares com ardências em todos os poros vinagre borrando o corpo desde a nuca vómitos vísceras e mesmo assim fulcro animal exótico cena erótica abencerragem.

5 – Nossas águas corriam próximas ou unidas numa só por vezes faziam remoinho agora por força da queda de água nossas águas separam-se fractura como uma pedra que se abre em dose destruída de pólvora caminho sem saída o meu para ti ou ao invés isto te escrevo frontal de vez adeus.

1 – Escrevo-te para anunciar que deves querer subir comigo ao sopé de um monte que conheço aonde te abraçarei no interior de teu carro porque o frio ataca a erva e quando a escuridão se acender de sons que a contêm rumaremos ao hotel onde depois de aqueceres tuas paredes com ementas e vinho subiremos à suite para que possas desembaraçar-te das roupas também as mentais que tens recusado despir conseguirás brunir carvões no meu olhar e nas pontas dos dedos e puxando-me e  atraindo-me possas afastar a montanha as duas e descobrir o regaço sob a pele e o centro de vulcão em teu ventre que começa no meio das coxas sua fímbria e nele parecem surdir os gemidos que decerto são vibrados por lábios e dentes mancomunados.

         4 – Primeiro haverá noutra estrada um teste de gelo dois anos antes mais tranquilo mas mais barulhento de vozes quando derrapa e bate nos rails porque na auto-estrada a mais de cem a descida dirige-se ao inferno eventual e o grito coalha cola na garganta e não sai.

5 – Os pianos começaram a despedaçar-se arremessando teclas as negras os pinhais desabam de estrondo os cães arrombam as coleiras com ganidos sob a vaga as águas tornam-se rochedo as vísceras rodopiam sobre ti como cobras enroladas o cheiro é bola de chumbo no estômago as facas em multidão acorrem e cercam não distinguir entre o fino e o amplo não distinguir.

2 – Há laços que a ligação conjugal perfura e cerze outros que torna conflituantes pequenas alegrias renovam paixão e enleio ou a gratidão e a derivada moral e este gesto é uma corda de sediela e grossa de roda de tractor quando a viagem da capotação enfim pára diz homem estás bem?

3 – Há ideias que é força deitar fora ou no papel da mesma forma que a vontade de urinar ou tirar leite até doer não o leite nem as tetas mas as mãos mas para as ideias não há casa-de-banho mantêm-se ali como um tumor doendo na vontade de urinar ou de estraçalhar as tetas da cabra.   

4 – Agora tem outra função manter defeso o interior torná-lo invólucro expugnável amolgar ferir só as dele costas e pernas e baixo ventre e o focinho conter as entranhas limpas e inteiras seu ar todo fixar o cinto mas sem esganar colar o estofo dos assentos mas sem perfurar nenhum órgão preservar dois corpos ouves bem os dois durante a rotação lunar de poço fundo.

2 – Depois que o carro vira tudo vira escuro talvez a defesa seja o gesto do feto o corpo contraído de joelhos ao encontro do peito a boca contra os pés e a escuridão viscosa como água de piranhas ainda lampeja quando sais dos destroços para a luz e a companheira te diz muito mais tarde sobre esse  momento nunca te vi tão branco.

3 – Porque me queriam matar eles todos eles e os que encontro alguns porque se tornam cretinos amigos abútreos porque se pode acertar mil vezes e falhar nem uma porque permanece ardência de inchaço os palpos dos olhos porque se transita para fora do espaço a que distância fica a morte? ante o risco da amálgama física eis que se levanta a montanha de perguntas.     

5– A nuvem ténue que esvoaça a água que traz de novo o frio à mão a petinga a pingar gordura que se junta ao beiço a espuma acre do vinho o cheiro de rabo de coelho da serra o berbequim do sol o fumo que se esgota para o alto das panelas o aperto de mão a frase amável os olhos chocados e o abraço bordado em cabelos loiros tudo tudo ressurge renasce renova nasce de novo como um bónus de primeira numa  vida segunda.

 

  O CONTADOR

 

Poeta sentimental, agia por impulsos sazonais, fazendo suceder às marés-cheias as vazas, em regra colando textos glosantes de filão.

Recontros ou desencontros de relações difíceis, forçaram-no à elaboração de escritos híbridos, próximos do poema em prosa. Porque no que a prosas se refere tinha a noção absoluta de suas incapacidades, não dispondo da paciência das horas de textos longos, galeriais, exigindo manejo de caneta até à dor da polpa dos dedos. Mesmo os mais curtos o defraudavam: porque ou os despejava no papel de forma torrencial ou, tendo-os interrompido não mais reavia o fio ou a unidade intrínseca, deixando-os a todos incompletos.

Por outro lado, não conseguia sequer encostar ao prosaico, ao objectivo, lidar com diversidades de personagens, concatenar espaços e acções temporais. Era de água a argamassa que possuía. Todas as tentativas se revelavam inúteis, pintando as frases em tons de melaço e moldes de algodão, notando-se, mesmo em leitura desatenta, o respirar lúbrico do fumo do lirismo por entre as frestas exaladas das palavras.

Mas, ou porque o poema que debitava ruía nos interlocutores por demasiado inexpressivo ou exigente, ou fosse por lhe ter dado braço o dealbar das construções adstringentes ao narrativo, várias vozes se inclinaram a tributar à sua prosa valia superior à do verso.

Terreno resvaladiço era ele, ademais rasgando sulcos esfacelado por elogios emocionais ou emocionados que lhe foram chegando. E, permitindo que a noite se aproximasse funda de seus poemas, nas costas desse sono outros contos foi alicerçando e adicionando aos poucos que antes escrevera.

Até que, instigado por desafio, foi quase forçado a inventariar novas ideias, a amadurecer outras e a concretizar algumas.

 

Outras dificuldades se somaram às que sempre tivera. Em primeiro lugar, as várias ideias debatiam-se em sua mente convulsionadas e em conflito. Difícil proferir a selecção de uma delas. Mais difícil ainda definir a conjuntura para se sentar e plasmá-la no papel. Ameaçador de branco.   

Em pouco tempo, de testa soerguida e franzida, pôde inventariar a sinopse de várias ideias novas. E, ou todas se lhe impunham ou todas se esquivavam. Depois, era quase alucinante pensar em esticar aquelas três linhas em três ou mais páginas.

Acrescia que não lograva obter decisão sobre a prevalência ou não das várias dimensões equacionadas ou acumuláveis para urdir o conto. Deveria dar preponderância à história ou à sua omissão? Impor um molde narrativo permeado por técnicas estilísticas ou ignorar uma das estratégias ou ambas? Como encenar e contracenar as personagens “tempo” e “espaço”? Evanescer o traçado linear ou optar por um fio de meada solta, quase acasional?

 

De forma que, quase em violência, se enfronhava numa das ideias. Aguardando que os momentos de ponderação lhe atribuíssem os caibros do edifício a erguer bem como as frases ou fases ou ideias que, reluzindo de súbito, pudessem encastoar o texto. E isso se iria larvarmente, progressivamente dele possuindo, até que os germes entrosados ou entrançados pudessem surtir um esboço minimamente amadurecido. Para depor ou delinear no papel.

E então, à força, quase de raiva, sentava-se e escrevia. De forma fluida e decidida. Incompleto, imperfeito, reles, não importava. Deficiente ou não, quando parasse sua mão teria de estar completo o corpus daquele entrecho.

E outras perplexidades o acometiam. Se em regra a escrita deslizava  fluente, por vezes a caneta estacava e não obedecia. À procura do vocábulo que faltava. Noutras ocasiões, o rio da escrita esquivava-se ao programa previamente projectado. Enveredava afoito por outros rumos, escamoteava apelos. Se concordava deixava-se ir, quando não ia na mesma, a reboque, de peito espedaçado.

 

Mais complicado que tudo o resto, e já não era pouco, se revelava a fuga à história. Sabendo de antemão que tal processo era para muitos analíticos ficção ultrapassada, toda a página que supusesse o recurso a personagens, a nomes das ditas, à decorrência temporal, à decifração, expansão e descrição de espaços físicos ou geográficos, tudo o contrariava. Ferozmente. E dessa luta surdiam alguns desvios, aquém ou além do pretendido e ansiado, que a posteriori não auferia qualquer prazer em corrigir ou emendar.

 

Apanhado na surpresa, outros salteadores o abalroavam, rompentes de determinismo. Alguns dos contos os abandonava já completos no papel, em respiração de alívio ou orgulho, ferido de sentimentos mistos ou ambíguos. Como se fossem fardos que carregava e que era forçoso depor. E em seguida deixar.

Mas noutros casos não. Vivendo uma luta corpo-a-corpo com aquela ideia, com aquele par amoroso, com aquela atmosfera mental, de certa forma se apaixonava por aquele mundo em que, imbuído, vivera. E doloroso se tornava deixá-lo para se introduzir noutro, estranho ainda, hostil, bem diverso ou mesmo antagónico. E essa frase transitória devia custosa, nostálgica, era como se de divórcio violentando-o se tratasse.

E dessa forma repelava a única árvore do quintal que inventara. Colhendo frutos sazonados, outros lhe caindo no chão apodrecidos, e o maior número deles permaneciam nos ramos, verdes, em botão, intragáveis.

 

Urgia então invadir o palco de um novo tema, carrear frases e cenas, reinventar tudo, abordar novas técnicas evasivas, com a convicção condenada de que concluído o conto de novo retornava à estaca-zero. E isso o aboletava de recursos e constrangimentos, usando tácticas regredentes que só aos animais são relevadas, deixando-se seduzir pelo luaceiro mordaz do dia-a-dia e abordar pelas mãos espalmadas do adiamento.

 

E, alvo de reflexões mal deglutidas, deu asas e azo à pressão da morosidade. Porque, entendia, ou queria entender, necessário se tornava, à semelhança do que sucede numa ninhada de pintos, chocar os fermentos e as sementes, abraçar por algum tempo os dados e os dedos do tema equacionado, viver com aquele mundo acordado e com ele dormir. Em suma, proteger a gestação do novo ser embrionário. Proteger sua viagem e metamorfose para a via adulta.

 

Além disso, defensável era que os textos fossem expurgados de parecenças, quer no enredo quer no estilo, de forma a que não redundasse numa exposição, variada ou variável mas repetitiva, de quadros idênticos a que se muda apenas a cor ou o tamanho dos cabelos.

 

Tudo somado, auscultou-o o impasse. E se as decisões, maturadas e determinadas, nem sempre se revelam mais aptas que as indecisões ou o arquivamento, no âmbito da criação menos adequadas se mostravam.

Marginal. Como em muitos outros aspectos na vida fora e era. Produzindo objectos colaterais. Inculcantes do pântano, das correntes do vento, dos gritos luarentos das noites. Debelando ou esculpindo um aprendiz de escritor.

Incapaz de construir a estátua, ou de a penetrar, mas limitando-se a beijocar, flébil de feição, as estátuas dos outros. Incapaz de abrir à força as pernas volúveis da escrita, e, sorvando a esta todas as bocas, com ela fazer amor.

Apenas ousando ao de leve, disfarçadamente, de receio, tactear-lhe a cútis do antebraço, roçar de dedos medrosos os fios de seu cabelo, nalgum encontrão de rua por centésimos sentir a massa de seus seios tapados com roupa.

Preferindo, por destino ou condenação, envergar frias carnes anémicas riscadas de calafrio, vivejar as emoções sem as disseminar, encarnar o actor outro não actuante mas opcional: o voyeur.

 

 

 

 
 
 

Antero Barbosa (Marco de Canavezes, distrito do Porto, 1956). Escritor (poema, ficção, ensaio), licenciado em Estudos Portugueses e dirigente em Escola de Ensino Superior. Publicação dispersa em jornais. "Prémio de Poesia Brétema" com o trabalho "Cenografia", que não chegou a ser publicado. Incluído nas colectâneas de poemas "Poiesis", volume XI, Editorial Minerva, Junho/2004, e "Novíssimos", Editora Ausência, Setembro/2004 (2.ª edição, Outubro/2004). Publicou Contextos (contos), 2005 — Prémio Trindade Coelho — 2.º prémio. Escreve o blogue Poligrafia.