O leitor que por acaso
conheça os escritos meus
— esses rabiscos raquíticos,
uns magros riscos plebeus —
sabe: trago sempre viva
a idéia obssessiva
de ver a Face de Deus.

Pois bem, no rol dos ateus
não posso ser incluído.
Vivo qual cego no mundo
a procurá-Lo, aturdido;
ou talvez seja um profeta:
Deus seria a linha reta,
caminho fácil, perdido.

Estará Deus escondido
no fogo, raio ou trovão?
Será Deus talvez um bicho,
águia, serpente ou leão?
Ou será que nos engana
assim com a face humana,
como a nossa, caro irmão?

Falam dele no Corão,
na Bíblia e na Cabala.
Vaca dizem ser na Índia,
imagem pasta na sala;
na Grécia, forças irmãs
travaram guerra, Titãs:
seu poder a terra abala.

Há quem o defenda à bala
ou com Santa Inquisição;
há quem planeje atentados
que botam torres no chão;
e há quem use a guilhotina
para negar sua sina,
mandam Deus pro paredão.

Vivo, leitor, do sertão
viajando para o mar,
lamentando não ser pássaro
pra que pudesse voar;
como dirijo meu carro,
fumo, tusso e até escarro:
é natural me cansar.

Pois bem, vinha a viajar
em noite de Lua Cheia
quando eis que, de repente,
me senti preso na Teia:
não sei se foi a Visão
ou mesmo alucinação,
pois todo doido se alheia.

Eu caprichara na ceia:
pão, sopa, carne, cuscuz.
Ao partir em viagem
fizera o Sinal da Cruz;
andam monstros pela estrada,
quis por segurança a guarda
do sempre fiel Jesus.

Parei o carro: uma Luz
acendeu-se à minha frente.
Num rapto intergaláctico
eu quis pensar de repente;
mas eis que tomei um susto:
ouvi falar um arbusto
que usava voz de gente:

— "O meu menino inocente
cansou de buscar o Cão?
Tem medo das ameaças
que lhe fez Frei Damião?
Cansou de rezar pra Ciço?
Desça e acabe o serviço,
só não toque em minha mão!".

Leitor, o meu coração
talvez seja de cristal,
ou então se partiria
sofrendo descarga tal
que tive de adrenalina:
pois vejo, se descortina
um ser sobrenatural.

Além do Bem e do Mal,
eis que Deus pra mim sorria;
tudo cala nesse instante,
nem mesmo o vento eu ouvia;
param as folhas das plantas,
o ser mais se agiganta:
— "Já esperava esse dia?

Foi se meter com Poesia,
esta a arte mais sagrada;
chegue pra perto de Mim,
temos noite e madrugada;
vamos conversar um pouco,
na mente de quem é louco
Deus sempre teve morada".

Pois bem, desci na estrada
pra falar com a Criatura,
homem alto, iluminado
talhado com formosura;
na fala há musica e luz,
diz ser o Pai de Jesus,
contente e séria a Figura.

— "Eu criei toda a Natura
só pra combater o Tédio.
Acredita que sou Deus,
o Arquiteto do Prédio?
Acho bom responder logo,
do contrário mando fogo
e aí não tem mais remédio...".

Para o Grande Pai Eterno
não tenho rima à altura;
ó ser espiritual
talhado na carnadura,
por acaso serei digno
de ter o nobre destino
de ver a Tua Figura?".

O Criador Criatura
passa a falar por imagens,
de repente entendo o Todo,
faço todas as viagens,
luas estrelas, cometas,
europas, ásias, planetas,
ondas de medo e coragem.

Amanhã será selvagem
o hoje civilizado,
o ciclo de ordem e caos
é todo sincronizado.
No mundo não estou só,
pois quando voltar ao pó
estaremos irmanados.

Estive em outros estados,
fui pedra e flor, e fui luas;
eu deslizei sobre a seda,
perfumadas peles nuas;
vi Morte e vi Esperança,
fui esqueleto e criança,
águas invadindo as ruas.

Mas a mente tem das suas,
e eis que então perguntei:
— "Bom Pai, já não mais precisa
dizer quem É, pois já sei.
Mas como explica o Imundo,
aquele ser vagabundo,
o Opositor do Rei?".

Ah, leitor: pra quê falei?
Tudo então se transformou.
Vi flores virando espinhos,
e o perfume, fedor;
e todo o prazer que tinha,
a felicidade minha,
vi se transformar em dor.

Chicotadas de rancor
me dava o amigo vento;
o pacato e feliz Deus
tornou-se um ser violento:
com setecentas adagas
ele ria, abrindo chagas
no meu pobre pensamento.

E pois foi nesse momento
que a Face se revelou;
eu vi a Face de Deus,
pode acreditar, leitor;
e lhe conto sem engano:
tem duas caras, o Jano
que a Grécia já nos contou.

E de novo Ele falou:
— "Tá com medo, Zé Mulher?
Depois disso, atrevidinho,
vai de novo em Mim ter fé?
Eu digo, a ninguém iludo:
sim, Eu sou o Pai de tudo,
de Jesus e Lucifé!".

Leitor, eu corri a pé
e sei que quase me acabo;
porém, de ter visto Deus
eu até hoje me gabo.
E lhe digo, corajoso,
que o Todo-Poderoso
quando se zanga, é o Diabo!

Antônio Adriano de Medeiros nasceu em Santa Luzia, na Paraíba, e vive em Natal, Rio Grande do Norte. É médico, formado em João Pessoa, com especialização em Psiquiatria, feita no Rio de Janeiro. Publicou o "Soneto Para O Diabo", na revista holandesa Sur, em 1995; os "7 Sonetos de Um Amor Muito Safado", na Antologia Eros (São Paulo: Editora Poesia Diária, 1999) e o livro Zoológico Fantástico (Rio de Janeiro: Editora Papel Virtual, 2000). Tem um livro no prelo e muito poema espalhado pela Internet. "Eu sou um bicho exótico que pegou a Transamazônica e foi até o mar".