O título desta segunda antologia de poemas de Tito Leite me lembrou de um famoso trecho da canção "Anthen", do compositor e poeta canadense Leonard Cohen (1934-2016): "Há uma rachadura em tudo. É assim que a luz entra". Neste contexto, Aurora me pareceu uma imagem perfeita para o princípio de luz, ainda incipiente, que antecipa a transformação da noite em dia, trazendo a mudança. O cedro, por sua vez, é um símbolo de força e permanência, inclusive no sentido espiritual. Logo, com Aurora de Cedro completa-se a expressão de uma resistente luz transformadora, irradiada pela arte e cultura, em oposição a todo tipo de obscurantismo.

 

A poesia aqui, na aparente simplicidade dos versos curtos e ritmados, confere sonoridade e sugere imagens poderosas por meio da palavra exata que não parece ter sido obtida em algum momento de inspiração casual, mas sim decorrente de um trabalho paciente e cuidadoso, como no processo de poda de uma delicada árvore bonsai. É de se ressaltar também a erudição do autor, mestre em Filosofia, que fica evidente pela abrangência literária, em época e estilo, das epígrafes no livro, variando de Camões a Jack Kerouac, Maiakovski a Herberto Helder e finalizando com Juan Gelman. Uma citação para cada uma das cinco partes que compõem a antologia, separando os poemas em grupos com uma certa unidade temática.

 

Na parte inicial, "Recreio dos segregados", em uma abordagem mais política, o poeta busca dar voz a uma parcela esquecida da sociedade, como no poema "Discordância": "Não me conformo/ com os atropelos/ da rotina, os ratos/ que se abrigam nas epidermes/ dos bueiros celestes,/ os nomes queimados/ na fogueira da maldade". Em "Showroom" a poesia se transforma em denúncia de injustiça social quando o shopping, sofisticado templo do consumismo, é identificado como um lugar inacessível aos segregados que apodrecem no inverno.

 

 

SHOWROOM

 

 

O shopping era sofisticado:

fedia

a showroom de automóvel.

 

Água suja descida da escória.

Um homem

apodrecia em inverno.

 

Não nadava na direção

contrária:

buscava um lugar no inferno.

 

 

Na segunda parte, "Eu beijaria o caos", o poeta identifica no caos do mundo à sua volta toda a fonte de inspiração e aceita esta influência. Como bem destacado na brilhante introdução de André Luiz Pinto, "o título refere-se ao primeiro livro [Digitais do caos, de 2016], mas guarda algo a mais: estando a frase no futuro do pretérito, quais as condições que fariam o poeta beijar o caos? O que o levaria (e a pergunta é válida porque o poeta escreve explicitamente na primeira pessoa, 'Eu beijaria o caos') a de fato beijar o caos?". O poema "Fugacidade" mostra o desinteresse do poeta pelas estrelas indiferentes e a atração pelo desordenado.

 

 

FUGACIDADE

 

 

Não perco

o poder de fogo

com as estrelas

que me

são indiferentes.

 

Mesmo

que o vento

me cortasse

os lábios,

eu beijaria o caos.

 

Deus me sabe

na moira

das suas mãos.

São voláteis

as minhas preces.

 

 

"A transcendência do fogo" reúne poemas que nos ensinam uma espécie de necessidade de exposição ao risco, de batismo de fogo que somente adquirimos com os sucessivos percalços da vida. Em "Imanência" (termo oposto a transcendência), a prova do doloroso aprendizado: "A vida fere/ até a carne/ ficar macia", contudo, não há garantias: "O medo de que tudo/ dê em nada dói nos ossos". A poesia é a única esperança de liberdade.

 

 

IMANÊNCIA

 

 

Pátria-polida,

 

a sangria nervosa

da alma.

 

Trigo nos dentes das feras.

 

A vida fere

até a carne

ficar macia.

 

O medo de que tudo

dê em nada dói nos ossos.

 

A vontade

de liberdade nos devora:

fogo em afago

o pulo do gato.

 

 

Na minha opinião, os poemas mais ricos de significado estão na parte "O absurdo é delicado", onde não podemos deixar de concordar que o poeta é um "marginal da palavra" como descrito em "Sondareza", um texto que também resume de forma precisa a responsabilidade de todo poeta em ser verdadeiro e, se possível, visceral: "alguns poetas/ falam das coisas/ que lhes faltam,/ outros, dos demônios/ que não partiram", muito lindo não é mesmo?

 

 

SONDAREZA

 

 

No tinteiro

a cor

dos meus olhos.

 

Há poemas sinóticos.

 

Com o mesmo

logos, a mesma

forma, a mesma

errância, mas nunca

no mesmo inferno

de espanto.

 

Não há poetas sinóticos.

 

Todo marginal

da palavra tem

a sua maneira

ínfima ou celeste

de ser visceral:

 

alguns poetas

falam das coisas

que lhes faltam,

outros, dos demônios

que não partiram.

 

 

Na parte final, "As pupilas da tarde", os poemas assumem a força do lirismo e deixam a prudência de lado, a luz vem na forma de amor nas suas diferentes formas como em "Inesperado": "O inesperado/ me abraça, queima/ minha pele e não/ dá explicação.// O inesperado/ é como o primeiro beijo:// lembra o solfejo/ de uma canção/ da Billie Holiday". Em "Anômalo", o poeta não precisa de bom senso, muito menos ser comedido ou respeitoso com a responsabilidade de suas escolhas: "Não quero chão./ Quero nuvens,/ lua ou a queda".

 

 

ANÔMALO

 

 

Não me peça

bom senso,

 

sou do incenso.

 

Nunca comedido

ou respeitoso

com o peso

das escolhas.

 

Não ter medo

de colocar o mundo

em questão

é trilha sonora

de toda estrela bailarina.

 

Não quero chão.

Quero nuvens,

lua ou a queda.

 

 

Chegando ao final desta resenha, julguei interessante informar ao leitor que Cícero Leilton Leite, ou simplesmente Tito Leite, é um monge beneditino. Tive receio de que este dado biográfico, que normalmente é colocado no início do texto, poderia influir de alguma forma na percepção dos poemas pelos leitores. Afinal, a ideia que normalmente fazemos do religioso que assume uma vida monástica, isolada da sociedade, não é condizente com a surpreendente força e independência desses poemas, mas talvez eu não entenda muito dessas coisas.

 

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O livro: Tito Leite. Aurora de Cedro.

Rio de Janeiro: 7Letras, 2019, 88 págs.

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junho, 2019

 

 

Alexandre Kovacs (Rio de Janeiro/RJ) é um engenheiro que adora ler e acumular livros. Edita o blogue O mundo de K, onde escreve sobre livros, literatura, música, arte e cultura. No Facebook, O mundo de K.