Ponte Giratória

 

 

O casal — e com isso quero dizer apenas que eram um homem e uma mulher, pois não estavam de mãos dadas — conversava durante a travessia da Ponte Giratória há muito imóvel e àquela hora erma. Ele a segurou e tentou beijá-la. Ela resistiu. De repente se engalfinharam e ele a empurrou por sobre a amurada. Longos segundos. Como chovera muito nos últimos dias, o Capibaribe estava caudaloso. Ainda caía do céu toldado um chuvisco persistente que mal se distinguia, a não ser contra a luz acobreada dos postes altos, esparsos. Nem uma estrela viu. Ela afundou como chumbo. Provavelmente se exauriu em movimentos desesperados e se esvaziou num grito fútil, mudo e supersônico, antes de tragar a água densa como metal pesado e começar a se contorcer como uma folha de papel queimando em fogo lento, implodindo por dentro até que só um corpo tocasse o fundo pegajoso e fosse envolvido por uma nuvem de sedimentos a dar-lhe efusivas boas-vindas, ansiosos por um efêmero empréstimo de calor e logo retornando à letargia habitual, deixando descortinar, se houvesse alguma testemunha e alguma luminosidade, a aproximação de prestimosos patrulheiros de notável olfato, alguns moles, outros encouraçados, além do próprio cadáver agora integrado à paisagem, os cabelos oscilando com a sincronicidade de algas em oposição à fixidez coralina dos olhos esgazeados, e na carne a transigência da matéria inanimada, sua temperatura se homogeneizando rapidamente à do entorno. Num minuto fora de modelo vivo a natureza morta, não muito longe do alegre casario da Rua da Aurora.

Ele não levou as mãos à cabeça. Enfiou-as nos bolsos e prosseguiu sem mudar o ritmo. Não olhou para os lados. Não olhou para trás. Era insuspeitável. Quando sentiu minha presença no limiar da avenida, já era tarde. Empurrei-o e retrocedi enquanto ele voava na frente do ônibus que fizera a curva a toda velocidade e desovaria na parada alguns metros adiante, rente ao terminal do cais. Girei nos calcanhares e voltei correndo sobre os meus próprios passos, evitando contudo os focos de luz. Nunca esquecerei a sequência de sons às minhas costas: a freada, o choque e a derrapagem, as imprecações indo de uma puta qualquer à mais notória das virgens — ambas mães contra todas as precauções —, o trambolhão, o estilhaçar dos vidros e o ranger da estrutura subitamente transtornada, fragmento do inferno, as vozes em uníssono dissonante como de almas sendo atiradas no lago de enxofre, a acomodação final na lama massuda de mangue, as lamúrias e os uivos, uma roda girando no ar, e quando desacelerei e comecei a voltar o rosto na direção da cena, sem o sangue-frio da minha vítima e mais ou menos no lugar em que ele fizera a sua, a explosão, abrindo um rombo no rosto do tempo e antecipando a eclosão dos ovos da morte. Seguiu-se o silêncio beliscado pelo crepitar das chamas, o clarão refletido nas águas indiferentes, manada de um, segundo útero de muitos. A onda de calor me empurrou para frente, para longe, para sempre.

Prossegui sem mudar o ritmo. Não olhei para os lados. Não olhei para trás. Não olhei para baixo quando deixei cair uma peça solta em meu relato, um pequeno objeto circular que tilintou ao tocar o chão, antes de enfiar nos bolsos as mãos que não levara à cabeça. Era insuspeitável, a não ser pela pira que, fosse aquela uma cena de filme, mal caberia no enquadramento.

Não ousei tomar nenhuma espécie de transporte. Ainda no centro, um homem pulou de debaixo de uma marquise para mostrar as feias cicatrizes nas as costas; haviam arrancado suas asas de anjo. Tive vontade de responder que ele tinha sorte de ter sido a vítima e não o algoz. Caminhei até minha casa. Ao cruzar o bairro de Afogados, lembrei contar-se ter havido ali um paul, um pântano em cuja travessia muitos morreram da forma que lhe rendeu o nome. Não causa espanto em se tratando dessa cidade rã, mal disfarçado arquipélago. Quando mencionei isso a uma ex-namorada, ela se encolheu como um bichinho e confessou não saber nadar, estreitando-se a mim. Eu rira e beijara-lhe os cabelos, ainda mais cativado. Sussurrara ao pé de seu ouvido que qualquer dia lhe ensinaria, acabamos sem ter essa chance. Mea culpa.

Ligou a televisão um zumbi, um sonâmbulo: o desastre estava sendo exibido, para sua inverossímil perplexidade. A carcaça do ônibus parada a poucos passos do rio – apenas o que o seu nível baixara naquele dia — uma ossada recém-desencavada de cachalote menino, a perícia inspecionando tudo e colhendo amostras como arqueólogos, os cadáveres alinhados múmias exumadas. Nenhum sobrevivente, disse a repórter ao vivo. Olhei para minhas mãos manchadas de sangue. Não sai com água nenhuma. Mas não lembrava que as unhas estivessem tão crescidas e sujas, o que me fez achar ainda mais estranho delas evolar-se um delicado perfume evocativo como só os perfumes sabem ser, superando as paliçadas da memória. Devia ter se entranhado do cheiro dela, o assassino, antes de empurrá-la para o abismo.

No jornal matinal, contemplei com requintado prazer a imagem do seu corpo desalgebrizado, os miolos minando do crânio ova de peixe, tudo propositalmente desfocado, simulando um pudor contraditório, uma cínica consternação. Aquele foi meu desjejum, meu café da manhã, meu comercial de margarina. Ainda não fora identificado. Ao que tudo indica, a julgar pela fama de ousadia e excelência dos punguistas daquela área, alguém visitara o sítio do desastre antes da polícia, já que nada, nem carteira, nem celular, foi encontrado nos bolsos do atropelado. Eles podem ser vistos em ação todo dia depois da meia-noite em pleno terminal do cais, mesmo porque é apenas isso que as pessoas fazem, apontá-los e mostrá-los umas às outras enquanto depenam algum bêbado anestesiado, a realidade um safári.

Dois ou três dias depois a mulher apareceu boiando ao sol convalescente e a caminho do oceano, uma rainha pagã ao largo da Cruz do Patrão, mas ainda a tiracolo a bolsa de tricô dentro da qual, entre muitas outras coisas, acharam um búzio róseo, guardado como uma lembrança ou relíquia de valor sentimental numa caixinha de joia. Certamente tumefacta e cinzenta, grotesca em seu vestido diáfano, garças impolutas servindo-se dela como balsa e bicando-lhe amiúde a barriga, as órbitas vazias povoadas por vermes, as feições esvaziadas, e siris — os mesmos que são pescados do alto das pontes — enredados aos cabelos e dependurados dos lábios carcomidos, deixando à mostra uma dentição graciosa, já sugestiva da invariância da caveira. Quando a foto três por quatro apareceu no centro da tela, senti o coração pesado. Era uma jovem de rosto magro, as faces encovadas até, morenidade suave, olhos assustados. Tive a impressão de já havermos nos cruzado, talvez porque fosse uma daquelas fisionomias que por si só nos parecem familiares. Só então me dei conta de não haver cogitado ajudá-la, eu que nado bem, eu que não sou covarde. Era como se a moça já estivesse perdida e me restasse vingá-la. A família declarou que ultimamente ela andava apreensiva, mencionara várias vezes a sensação de ser perseguida. Desconfiaram de problemas psicológicos, paranoias, manias, quem sabe um começo de síndrome do pânico. Tinha motivos para isso. Passava muito tempo no computador, fechada no quarto, não fazia amigos. Por isso receberam com alívio e expectativa a notícia de que resolvera espairecer, ainda que na companhia de um desconhecido, de um novo conhecido, no dia em que não voltara nunca mais.

A polícia não demorou a divulgar nota informando que um brinco fora encontrado no meio da Ponte Giratória pouco depois do desastre com o ônibus e outro igual na orelha esquerda da afogada. Aventou-se que as duas mortes, a dela e a do atropelado, e por conseguinte todas as outras, poderiam estar relacionadas, numa corrente. A argola era o elo, as impressões digitais em sua superfície, sobrepostas, parciais, confusas. As autópsias atestaram: os óbitos foram virtualmente simultâneos. A mulher terminava de se afogar por volta do mesmo minuto em que o homem respirou pela última vez, e isso não deixava de corroborar a teoria. O exame de DNA, por seu turno, não pôde ser conclusivo a respeito dos restos de pele encontrados sob as unhas dela, devido à ação de micro-organismos enquanto estivera submersa. A reconstituição mais coerente dos fatos, explicava o coronel, apontava para a seguinte sequência: ele a empurrara da Ponte Giratória, no que o brinco caíra, e no afã da fuga se atirara na frente do ônibus, mas suspirei ao ouvir que não havia câmeras no local. A lógica, entretanto, era impecável. Rejeição, o provável motivo, embora alguns vespertinos voltados para donas de casa, cientes da nobre missão de aplacar a monotonia de suas vidas, andassem engendrando, entre uma propaganda de dietéticos e outra de cosméticos, um serial killer que poderia estar por trás de pelo menos outros dois afogamentos de jovens modestas nos últimos meses, chegando a calcular que uma havia sido empurrada da ponte Motocolombó e outra da Capunga. Estendendo o prazo em direção ao passado para alguns anos, a quantidade de contrariadas ninfas logo aumentou para dezessete. O "Maníaco das Pontes" só se teria dado por satisfeito quando para cada uma daquelas da Veneza Brasileira tivesse feito uma vítima, o que segundo eles totalizaria quarenta e nove, um número cabalístico, igual a sete vezes sete. Vários canais começaram a veicular reportagens sobre o perigo das redes sociais, amizades pela internet, sob o álibi da utilidade pública. Para lobos em pele de cordeiro, abutres em plumagem de papagaio.

Subitamente nauseado, pela primeira vez — tendo assistido de cambulhada toda sorte de filme, novela e programa de auditório, mas sempre aos pedaços, sem parar de zapear – ergui-me da poltrona cujo revestimento de couro sintético emite rangidos ao menor movimento, que dirá se não estivesse rasgado em vários pontos. A dor nas articulações e a inevitável vertigem me obrigaram a apoiar-me nela, e como um legítimo ingrato vomitei toda minha bile no assento que tão bem me suportara. Estava fraco, tremia por dentro. Que eu lembrasse, não havia tomado nem um copo d'água. Entretanto, não foi até a geladeira e sim para o banheiro que cambaleei. Precisava ficar uma hora debaixo d'água, pensei, e de passagem não reconheci o rosto no espelho. Vi um cara esquálido e imundo, de cabelo desgrenhado e pele macilenta cosida aos ossos, lábios ressecados e dentes amarelos, cariados, alguns faltantes, as olheiras como halos escuros ao redor de olhos demenciais, e um reticulado de rugas quando os apertei à procura de uma centelha lúcida. A barba por fazer não era surpresa, mas quando aqueles fios brancos tinham aparecido? Era anos mais velho do que eu, o desconhecido. Lembrei do mendigo que me interpelara. Só as suas costas haviam se apresentado à luz. Pensava nas estórias de bruxos que trocam de corpos com as vítimas mais jovens ou saudáveis, bastando tocá-las ao cabo de rituais específicos. Azazel também era um anjo caído.

Onde eu conhecera um homem eminentemente culto, leitor de filósofos e romancistas, que dizia sermos os demônios que tememos e abominamos? Em meio a minhas divagações, ouvi a voz já conhecida da repórter que fazia a cobertura do caso. A afogada tivera na vida apenas um namorado, que, aliás, nunca aceitara o fim do relacionamento, surtara com a irreversibilidade da decisão, fora internado num hospital psiquiátrico. Ouviu-se então a voz embargada da mãe, dizendo que a filha nunca se recuperara, e ela mesma nunca imaginara lamentar tanto o rompimento com o rapaz. Estavam quase noivos quando ele, até então dócil, começou a ficar esquisito, o ciúme exorbitante. Primeiro acusou-a de trocar olhares e sorrisos com estranhos, depois de receber homens em casa na calada da noite, no meio da tarde! Quisera proibi-la de usar joias e maquiagem, afastá-la da sogra, aquela cafetina, corruptora da própria progênie. Era estudioso, humilde e esforçado, promissor na área do direito, apesar de um perdoável pendor para poemas e fantasias, veleidades que passariam. Mas ele é que sempre estava disposto a perdoá-la pela fraqueza, pela baixeza, e ela aceitava o perdão com lágrimas, perdoando-o. Só percebi que uma correra de meu olho por causa do ardor no rosto. Afastando os pelos, vi no espelho marcas de unha, feridas já secas, eu que nado bem, eu que não sou covarde. Não sei se foi comigo ou com o pretendente — tentou fugir em vez de ajudá-la — que ela falou, mas essa foi a última palavra. Covarde.

 

 

 

 

 

Nossa Senhora dos Ratos

 

 

Não restava dúvida de que a menina não esfregara o piso do box direito. Não restava dúvida de que quebrara o fêmur. Não restava dúvida de que estava sozinha e ninguém a visitaria — a menina só vinha na quarta, quando não faltava. Não restava dúvida de que não conseguiria levantar sem ajuda. Não restava dúvida de que a dor pioraria e pioraria. Não restava dúvida de que recomendara à menina que esfregasse até o cantinho, onde começava a aparecer lodo. Não restava dúvida de que sua posição era incômoda e logo, cansada de apoiar-se nos braços — já começavam a tremer —, seria obrigada a deitar, só o teto com infiltrações, os ladrilhos monótonos a não ser pelas rachaduras e quebradios, a flor hipócrita do vaso sanitário e no máximo a cortina mofada encolhida para olhar. Não restava dúvida de que logo sentiria fome e sede, assim como vontade de fazer suas necessidades, e que tanto ceder quanto resistir representaria um suplício. Não restava dúvida de que seria vergonhoso ser encontrada em meio aos seus dejetos, não bastasse ser uma velha e estar nua, os seios sacos engelhados — existia coisa mais indecente que os persistentes pelos pubianos de uma velha, não de todo descoloridos? —, quem sabe já começando a apodrecer, ou em avançado estado de putrefação, as pernas esfaceladas, a fratura já exposta, na água estagnada por causa do ralo entupido — assim pelo menos supunha que nenhum escorpião apareceria dali —, o torso e o rosto, principalmente o rosto, carcomidos pelos ratos, os inexauríveis ratos nos quais não conseguia dar vencimento, com tanto terreno baldio, tanto monturo de lixo, tanto esgoto estourado. Ouvia-os no telhado à noite, ou panelas que se mexiam na cozinha; como a casa não tinha forro, pela manhã encontrava as fezes e a urina, às vezes um filhote pelado, róseo, parecido com gente, ou seria um feto? Às vezes acordava sobressaltada sentindo um deles roçar sua pele, sem saber se fora um pesadelo, um sonho, mas uma oportunidade tivera a nítida sensação de ver um volume gordo e espantosamente serelepe saltar da cama para o chão e subir, ou era pelo armário ou era pela parede, uma senhora ratazana. Parece que tinham o pelo muito macio, macio e fininho, e o bigode fazia cócegas, e o rabo, além de comprido, era peralta. Todo o rato era um pincel, devia ser com pelos de rato que se faziam pincéis, pelo menos os finos, e depois diziam que era de outro bicho que ninguém conhecia, só existia em outros países, em figuras bonitas. Às vezes tinha a impressão de vê-los ao seu redor no escuro, nas frestas do telhado, em cima do armário, nos cantos das paredes, com os olhos brilhando, não vermelhos como nas estórias terroríficas, meio azuis, olhando para ela e confabulando com seus focinhos ligeiros, ligeiros eles, e se sentia levemente ameaçada e intensamente reconfortada, como uma criança que sabe velado o seu sono, embora não pudesse reconhecê-lo. Uma vez, num auge de fúria, em pleno transporte etnocida, dera-se conta de que eram sua única companhia, sua família postiça, e que se desaparecessem, se a abandonassem, também eles, sua vida perderia o sentido. Eram, por assim dizer, seus arqui-inimigos e seus filhos bem-amados. Uma vez em que se esqueceram de mandar o dinheiro, a despensa vazia, fritou um grande que matara a paulada, quando ainda era mais forte. A carne não era ruim. Carne de caça, como quando em pequena o pai trazia, um gosto de liberdade e aventura, o prêmio do perigo. E nada cria um vínculo maior entre duas espécies do que uma comer a outra, essa é a simbiose perfeita. Além do mais, carne é carne. Não restava dúvida de que sangrava por dentro, o que acrescentava ao problema de sangrar um segundo problema. Como estava com uma parte dos glúteos definhantes por cima do rodapezinho de alumínio, não restava dúvida de que a coluna logo reclamaria. Não restava dúvida de que a água nas pernas logo começaria a deixá-la com frio, ela que quase não tinha mais gordura. Não restava dúvida de que o seu corpo voltara a se parecer com o de quando era menina, antes mesmo de ficar moça. Não restava dúvida de que então ele era tenro, tênsil, e agora frouxo, lasso. Não restava dúvida de que aquela era a magreza da infância encruada que ainda desabrocharia, essa, a da senilidade decadente que logo se desagregará. Não restava dúvida de que aquele corpo gerara muitos filhos, servira a um homem sua vida inteira. Não restava dúvida de que antes seus cabelos eram bem pretos, e agora, ainda que ainda longos, nem bem brancos, de um tom amarelento. Fraca como sua voz estava, não restava dúvida de que só os ratos a escutariam quando começasse a gritar, e apenas dariam guinchos de aviso aos seus companheiros, "terreno livre!", esses ingratos. Mas os vizinhos não escutariam, desconfiava que pelo menos fariam questão de não escutar. Sequer sabiam seu nome, sequer sabia seus nomes, a não ser o de um menino, o de um menino que às vezes botava a cabeça por cima do murinho do quintal — de um branco encardido e descascado como o da fachada —, o quintal que só tinha mato e um pezinho de araçá, e ficava espiando, com medo e curioso. Como era o nome dele mesmo? Ainda ontem aparecera. Mas hoje era domingo, devia ter saído com os pais. Lembrava que em menina ela ia com os seus para a missa, mas começava a duvidar de que Deus se lembrasse disso. Recriminava-se por essa dúvida, mas essa dúvida recriminava a credulidade da recriminação. Fé e fel não se bicavam, o segundo estragara o gosto da alma para devoções. Não restava dúvida, portanto, de que seria um alívio abreviar seu sofrimento. Não restava dúvida de que a única forma de consegui-lo seria alcançar o veneno dos ratos embaixo do móvel da sala, tomar o veneno dos ratos. Não restava dúvida de que isso demandaria colocar-se de bruços e rastejar como um soldado, um soldado recém-mutilado, com a ajuda de uma perna e o estorvo da outra, e que isso significaria uma pequena mas longa via crucis em que a cruz seriam os ossos que empalavam seu próprio corpo, constantemente caído. Não restava dúvida de que era uma morte sumamente desconfortável — já vira muitos ratos morrerem assim, às vezes ficava de tocaia na penumbra para flagrar o momento, ouvir o vulto guinchar e se debater e imobilizar —, mas ainda assim mais rápida, especialmente se tomasse todas as bolinhas de uma vez. Melhor seria se abrisse a portinhola do armário e entornasse o saquinho que esperava lá dentro. Não restava dúvida de que apenas continuava, e ninguém sentiria sua falta, os filhos com suas famílias constituídas, morando longe, distantes, os netos desconhecidos, semi-imaginários, as noras com vergonha dos seus dentes ruins e faltantes, dos quais tinha vergonha. À exceção dos filhos que tinham subvertido a ordem, se emancipado da vida primeiro, pedaços arrancados seus, que agora a puxavam como bolas de ferro presas aos calcanhares, aos pulsos, aos quadris, àquele fêmur, forcejando para terminar de parti-lo e reparti-lo. Ela deixaria de ser um peso. Não restava dúvida de que se por algum acaso a encontrassem viva chamariam o Samu, a ambulância demoraria para chegar e se ela sobrevivesse à espera ainda haveria o trajeto aos solavancos, o provável trânsito nas avenidas, e se mesmo assim suportasse seria apenas para esperar o fim num corredor da Restauração, ter uma morte gregária, impudica. Mas não, seria rápido, a morte viria colhê-la ávida e desdenhosa como um rato para roubar um resto de comida, por mais que já estivesse empanturrada. É impressionante como um rato permanece ágil e flexível mesmo depois que engorda muito, e como a sua disposição para comer sempre aumenta. Animais que amam roer, não medem as consequências. Não resta dúvida de que sobre o mesmo móvel da sala ao pé do qual foram encontrados apenas seus ossos, cabelos e unhas, mesmo assim com inúmeras marcas de pequenos dentes agudos, os fêmures íntegros, ao seu redor, por cima e dentro dezenas de ratos mortos tingidos de sangue e de todos os tamanhos, inclusive fêmeas prenhes e um desses gabirus cujas proporções os animam a se sentar nas patas traseiras e desafiar o ser humano quando acuados, causando-nos calafrios e ressuscitando velhos sentimentos sobre a malignidade inerente, sobre esse móvel jazia o telefone imóvel, mudo, poeirento, embora tivesse mandado a menina passar o pano.

Epílogo: disseminado o incidente, houve quem passasse a rezar para a alma da desafortunada velha, e surgiram relatos de graças e bênçãos oriundos daquela que, como ninguém soubesse o seu nome, ficaria conhecida no bairro pelo epíteto de Nossa Senhora dos Ratos.

 

 

 

 

 

XIX, XXI

 

 

Um momento de desequilíbrio e!, todo o café se esparramou pelo chão. Apesar de ter se posto de lado, alguns respingos voaram nos seus pés e seus olhos queimaram. Contemplou desolada a mancha espasmódica, cercada por um arquipélago doutras, diminutas. Veio-lhe à memória uma reportagem dominical sobre um lugar exótico onde o futuro é lido na borra que fica no fundo da xícara. Será que uma daquelas adivinhas que circulavam entre as mesas de um restaurante enxergaria naquela sujeira a cifra de seu destino? Cada besteira, a gente pensa. Nem sequer tirara aquela farda insípida, creme. Apenas livrara-se dos sapatos e improvisara um coque com um lápis passado ao meio. Embora não mais que justos o suficiente para delinear-lhe os contornos, a calça e o blazer atrapalharam-lhe os movimentos, sem mencionar que ficar de cócoras não era a posição mais relaxante depois de mais de uma hora de pé no ônibus — de uma das pontes do Pina, o engarrafamento dera-lhe tempo de observar o azul do céu se condensar até virar negro, sem que muitas estrelas rompessem o véu. Os botões dourados e graúdos tilintavam enquanto forcejava com o rosto vermelho, congestionado. Lá embaixo resfolegava o trânsito do bairro dos Aflitos, uma serpente insone de células rotativas.

Ao se erguer, além de um esperado repuxo na coluna, sentiu uma leve e mal-pressaga tontura. Precisava ir ao médico. Passara o dia com aquele gosto de fel na boca. Desvencilhando-se do blazer num rompante, como se assim se recriminasse por não ter feito isso logo, retomou o ritual. Coar o café à velha maneira era um dos seus hábitos. O vapor cheiroso envolveu-lhe o rosto como uma carícia de criança, abrandando-o. Gostava do murmúrio do líquido negro caindo garrafa térmica adentro, preso entre espelhos. Sentiu os mamilos desabrocharem sob o sutiã que a blusa fina deixava entrever e sabia sem precisar olhar que era possível reconhecer-lhes o relevo. Se ele estivesse presente, talvez os confrangesse com os dedos, eriçando-os ainda mais, ou fizesse insinuações, o que teria o mesmo efeito, e levaria ao mesmo desfecho. Súbito a solidão deu-lhe o seu beijo gélido ali mesmo, à beira do balcão inox. Ergueu os olhos para o relógio de parede plástico, branco, redondo. Era a hora em que as famílias se congregavam ao redor da mesa. Lembrou que uma tia-bisavó tomara veneno depois que um forasteiro pelo qual se apaixonara — não havia consenso sobre ter chegado a fazer-lhe mal ou não — fugiu sozinho em lugar de raptá-la antes da meia-noite como prometera. Outra época. Hoje em dia as pessoas só se matam por elas mesmas, pensou depondo a garrafa e se dirigindo ao banheiro. Ninguém mais se matava em represália a outrem, ainda mais se o destinatário do ato pudesse nem chegar a saber. Os fundamentalistas islâmicos se explodiam na multidão sob a promessa das virgens do paraíso. Devia ser por isso que não havia homens-bomba do lado de cá do mundo. O paraíso ocidental era andrógino, de uma monotonia proverbial. Entretanto, lera no jornal que um carroceiro de vinte e poucos anos tomara chumbinho por dor de cotovelo. Fora encontrado pela manhã no barraco onde morava sozinho. Esse fugira do inferno. Junto havia uma notícia sobre uma artesã chamada Carmen Miranda, moradora do Alto da Felicidade, uma comunidade carente sem abastecimento d'água, que morrera num deslizamento de encosta no último temporal. Fora soterrada pela própria matéria-prima, e junto a ela, que também parecia uma estátua de barro na foto, jazia sua última peça, representando a homônima ilustre usando não os adereços de frutas e sim os de uma passista de frevo, segurando a sombrinha colorida acima da cabeça, mas com os braços e mãos naqueles ângulos característicos, o sorriso largo, as sobrancelhas arqueadas, uma perna reta e outra flexionada, na ponta do pé.

Ao baixar a calcinha, reparando na marca profunda que deixara em sua carne, teve dois pensamentos simultâneos, um recorrente e outro inédito: estava acima do peso e havia um bom tempo nenhum homem tinha oportunidade de constatá-lo. Deparou-se com seu corpo no espelho. Atraente. Rija, apenas generosa. Não precisava do truque de erguer os braços para que os seios parecessem firmes, embora o fato de serem de médios para pequenos contribuísse. Tudo tem um lado bom. Mesmo assim ergueu-os e olhou-se sob vários ângulos, inclinando o tronco. Acabou por dar a volta completa em si e contemplando-se por cima do ombro, descendo do vale da coluna, passando entre as covinhas no aclive das costas, até o rego dos glúteos. Duas ou três celulites, estria nenhuma. Rebolou discretamente. Quedou-se no próprio feitiço até que o pescoço doesse.

Apesar dessa autoaprovação, ao se sentar no vaso sanitário relanceou preocupada as dobras que se formaram na barriga, ouvindo quase ao mesmo tempo o tamborilar da urina, muito mais urgente que o do café na garrafa térmica. Pouco antes que um bloco sólido a abandonasse e mergulhasse sem estrondo, observou o braço quase sem pelos arrepiar-se, e então deu uma sacudidela involuntária. Há quantos meses aquele era o seu orgasmo? Antes do último namorado, masturbava-se a intervalos. Agora o sexo permanecia árido e os olhos se inundavam. Não que lhe faltassem pretendentes, palavra que soava ultrapassada. Admiradores, palavra que soava ingênua — faltam palavras. Mas eles pareciam ter um pouco de medo, antes cumprir uma obrigação moral que realmente cobiçá-la. Aproximavam-se mais obsequiosos que sequiosos, a boca seca de ansiedade e não de sede, quase apresentando suas condolências pelo transtorno e oferecendo como compensação a garantia de que não voltariam a importuná-la, já que ela não se interessaria por eles. Abreviado o constrangimento, retornavam abrasados pela vergonha e abraçados aos destroços de seu orgulho como náufragos de uma embarcação deliberadamente atirada contra os rochedos. Deviam ser bem mais arrojados na solitude dos próprios banheiros, no claustro das imaginações harênicas. Aquele rapaz de gel no cabelo e fones de ouvido parecia enfrentar um dilema toda manhã sobre cumprimentá-la ou passar direto, mas acabava fazendo-o alternadamente, dia sim, dia não, como um reloginho, sempre de longe, sem nunca ensaiar uma aproximação. Às vezes achava que ele era meio perturbado, embora sua timidez fosse um pouco cativante. Uma vez disseram que ele foi trabalhar em pleno domingo, mas quem estava lá para saber? Quanto aos levianos, talvez a maioria, indo do pedreiro rude que berrava baixezas do alto da construção ao empresário galante que baixava o vidro para sibilar comentários sacanas, esses nem sequer mereciam sua atenção.

O que a atraía num homem era a serena ferocidade de caçador que fazia o enlace parecer o único desenlace possível. O que lhe dava calafrios era um certo sentimento fatalista de inevitabilidade que ninguém suscitara nela desde que terminara o namoro. Podia-se dizer que terminara? Ele provocara o ocaso, covarde como todos os outros. Pouco menos de um mês depois avistara-o com outra mulher, essa alta, magra e sofisticada. Teve a impressão de reconhecê-la, depois lembrou. Um progresso e tanto para ele. Começou a tomar os remédios. O psiquiatra a advertiu sobre possíveis efeitos colaterais, como alucinações hipnagógicas, onirismo — de que até então nunca ouvira falar —, confusão, sonambulismo e até epilepsia, no caso de sobredose. Recomendara inclusive que deixasse o frasco longe da cama. Interrompera o tratamento na última consulta e dera instruções determinantes para que se livrasse: estava no limiar da dependência.

Antes de apagar a luz, contudo, chegou a entreabrir a portinhola do armarinho, mas tornou a fechá-la sem olhar para dentro. Tomar banho no escuro era outra de suas idiossincrasias. Era como se estivesse numa bica no meio da mata e a tênue cintilação que atravessava o vidro fosco da janela basculante viesse das estrelas e não da vizinhança. Quando a torrente a engolfava e os cabelos aderiam às espáduas, sentia-se concentrada, inconsútil. Às vezes elevava os braços, sem que nem assim resvalassem no chuveiro, e movia-se sinuosamente como uma serpente nadando rio acima. Desde que mantivesse os olhos fechados, a ilusão de distanciar-se era perfeita e logo estava longe, muito longe da própria vida, da própria sina. Uma vez dançara assim para ele, sabendo que a observava impassível da mesma cama em que ela dormiria logo mais. Quando as suas coxas se tocavam, sentia nelas a umidade que minava do recôncavo, como um arroio que nasce numa gruta. Como podia ter durado tão pouco? Era a maior parte de sua vida. Mesmo o deserto de agora era mais vasto que o cipoal dos dias anteriores.

Quando tornou a acender a luz, espantou-se com o que o espelho refletia: os olhos também molhados. Como para repelir-se, abriu com violência a portinhola do armarinho, que se chocou com a parede, e deparou-se com as pílulas repousando cândidas no interior do frasco. Rodopio parado, breu ofuscante. Apoiou-se na pia, bebeu água na concha da mão livre. Sem ânimo para tomar o próprio café, que coara antes do banho para ter a sensação de que outra pessoa lhe fizera um mimo ao encontrá-lo pronto, vestiu apenas a camisola — ele teria preferido encontrar por baixo o baluarte da calcinha — e cambaleou até a cama, apagando-se.

Acordou com o estrépito de badaladas. Não lembrava de ter deixado luz acesa. Ademais, era amarelada feito a de uma lâmpada incandescente e não branca à maneira de suas fluorescentes econômicas. Para dizer a verdade, parecia até um pouco oscilante. Percebeu-o pela sombra do corpo estranho plantado no meio da sala: uma moça cujos traços julgou familiares a despeito do rendilhado que pendia de seu chapéu curioso preso ao rosto por uma fita. Envergava um vestido armado que afilava-lhe a cintura e suspendia-lhe os seios de uma forma quase dolorosa, não bastasse o prolongamento artificial das nádegas que deixaria os tornozelos à mostra não fosse a extensão da saia igualmente descomunal, tudo, inclusive os sapatinhos que mal surdiam, num tom azul-profundo, sereno e dramático, de tarde moribunda.

Tendo nas mãos enluvadas um terço cujas contas passava entre os dedos com a habilidade inconsciente dos inveterados, balbuciava uma oração enquanto olhava com visível ansiedade para um relógio de pêndulo ao mesmo tempo imemorial e evocativo. Acreditava tê-lo visto atirado num quarto de despejo na casa de sua avó, mas então parecia feito em ébano e o mostrador cor de papiro estava manchado, os ponteiros imóveis como lanças num antiquário. Alguém lhe dissera que uma enchente o havia encoberto no começo do século recém-passado. Havia também, então, uma trincadura que ali não se notava. O mais estranho é que mesmo agora, vendo o pêndulo irvirir na sua ronda paranoica e os ponteiros em sua corrida de Aquiles-tartaruga por trás do vidro intacto, e adivinhando mais atrás ainda uma intrincada estrutura de engrenagens, o tímido, quase submerso tique-taque que ouvia só podia ser o de seu modesto relógio, movido por duas pilhas pequenas, na parede da cozinha.

Quando o primeiro minuto da segunda metade da noite foi se extinguindo, a moça vestida de lusco-fusco pôs-se a andar de um lado para o outro na peça antiga com passos mais frenéticos que o voo do pêndulo, causando comoção em cada um dos babados e espalhando ao redor de si um rumor de asas de morcego. Num acesso, soltou um grito medonho em que lhe saíram todas as vísceras da alma e atirou o terço contra o mecanismo que de objeto de sua esperança parecia ter se tornado um artefato odioso, quase macabro. Fazendo isso, parecia também repudiar a velha crença com relação à qual era apenas uma conta de um extenso rosário e romper o contrato segundo o qual deveria deixá-la passar através de si para chegar às novas gerações. O crucifixo atingiu o vidro sem chegar a quebrá-lo, mas ela também não chegou a vê-lo.

Tendo fechado os olhos por instinto, ao abri-los encontrou-se numa cozinha que tinha qualquer coisa de alienígena, onde um relógio de parede branco e redondo, aspecto postiço, acabava de cruzar sem estardalhaço o marco da meia-noite. Não obstante, aquelas batidas nítidas, potentes e sonantes, bem delineadas contra o fundo de silêncio, não poderiam proceder dele; eram idênticas à do relógio que dominava a sala de sua casa. Ao ouvir um vidro delicado se quebrando, abalou na direção do ruído, envolta naquele farfalhar como se suspirasse por todos os poros, e viu uma abstrusa residência deslizar à sua volta até estacar diante de uma jovem de camisola retorcendo-se na cama como uma serpente lançada ao fogo, o rosto oculto pelos cabelos ainda úmidos a não ser pela boca, espumando, espumando. No chão, além dos cacos, algumas pedras pequeninas, brancas, oblongas, homogêneas. Sentindo o ar lhe faltar e a vista escurecer, um gosto amargo na garganta, era como se afundasse num poço. De piche.

E como se afogar-se fosse vir à tona, deparou-se com a moça de azul-quase-negro estendida de lado num tapete, as lágrimas ainda rolando das pálpebras trêmulas como o resto do corpo, num frêmito aflitivo que se transmitia às rendas do vestido longo. A reverberante armação da anquinha parecia agora ainda mais bizarra, um aleijão que a impedia de levantar-se ou um instrumento de castidade-autoflagelo imposto por um pai despótico. Marido, não conheceria. O chapéu havia rolado de sua cabeça revelando-lhe a lividez da face e o negror dos cabelos. Algumas mechas estavam embebidas na pequena poça de uma substância parda e opaca, a mesma que lhe escorria do canto da boca, o recipiente de vidro grosso caído ao lado. Antes que a chama se extinguisse, ouviu o nome de sua tia-bisavó ser invocado por vozes desfiguradas, mas não o seu.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


João Paulo Parisio nasceu em 4 de setembro de 1982, no Recife, Pernambuco. Estreou com Legião Anônima, contos, em 2014. Em 2015, lançou Esculturas Fluidas, poemas. Ambos pela Cepe Editora e incluídos na seleção de melhores livros do ano da Tribuna de Santos, organizada pelo crítico literário Alfredo Monte. Tem textos em veículos como o suplemento Pernambuco, o jornal Rascunho, a revista Gueto, os sites Interpoética e O Recife Assombrado. Participou em 2016 do segundo volume de Ficcionais, coletânea de depoimentos onde "escritores revelam o ato de forjar seus mundos". Publica, em 2018, pela editora Patuá, um novo livro de contos: Homens e outros animais fabulosos.

Site: jpparisio.com.br. Instagram: @jpparisio.