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Coisa de irmão

 

 

Sonha, sonha comigo e vem me contar.

(Reginaldo Rossi)

 

 

Cheguei cansado do primeiro dia de trabalho, o dia todo na rua, envolvido naquele suor pegadiço dos passageiros, as broncas do chefe e todos aqueles prazos, a pressa burocrática que nada resolve, apenas se espreguiça, o barulho dos carros, das impressoras, cheguei em casa e mal comi, engoli qualquer coisa, sequer tomei banho, tombei exausto na cama. Sonhei que era minha irmã, mas também era eu mesmo, os dois num só observando as flores, todas aquelas cores se sobrepondo, se fundindo. Um arco-íris de pétalas e de cheiros, e tudo aquilo precisava ser posto em desenho, vários desenhos, então ela pegou lápis de variadas cores, traçou linhas finas, passou a pintar, pintar desesperada, mas também tranquila, como quem tem toda a vida pela frente. Então já era eu a pintar, a traçar figuras, maquiná-las, não sei porque já fiz uma parada de ônibus, o mastro cinza e o quadrado verde, depois já formei a estrutura do coletivo, os velhinhos espremidos na parte da frente, o resto dos passageiros lá atrás, cheio de sacolas e sem ninguém para colocá-las no colo, eu também estava dentro, agora não era mais desenho, mas algo concreto, corpóreo, eu entre sovacos encharcados, aquela água salgada pingando em mim. Aí voltei para a cena dos desenhos, na verdade, minha irmã que voltou, agora era ela, pintando de novo, correndo com uma bola, jogando para todos os lados, mas aí veio o barulho dos tiros, a polícia perseguindo os bandidos que saíam do banco, eu e ela naquele ônibus, parado no congestionamento, sem proteção e sem espaço para se mexer, a chuva que obrigou a fechar as janelas, tudo abafado, o barulho infernizante das buzinas, vem alguém e pede a atenção de todos os passageiros, pede desculpas por atrapalhar a nossa viagem, mas está com os papeis à mão, para quem quiser ver, está doente, uma das novas doenças transmitidas pelo Aedes (ele não sabe pronunciar o resto do nome), perdeu o emprego, não consegue trabalhar e precisa alimentar a família, se não for incômodo, quer uma ajuda, qualquer trocado serve. Não sei como consegue, ultrapassa entre os quadris, as bolsas, as crianças. De novo o sonho muda, agora voltamos ao jardim e às flores, minha irmã e os desenhos, os traços coloridos, distintos riscos, a nossa família eternizada em giz de cera. Só que muda novamente, não estou mais no ônibus, volto pra parada e estou esperando o ônibus, que nunca vem, uma, duas, três horas a esperar, aí aparece um buldogue grande, tamanho de um cavalo, mas aí ele se transforma numa conta, também gigantesca, a qual não posso pagar com meu mísero salário de funcionário público que nem recebi ainda, ela passa a me perseguir e eu anseio pagá-la, sou bom pagador, não quero meu nome sujo, mas não posso, não tenho dinheiro. Continuo a fugir dos tentáculos da dívida, das suas infinitas patas, minha irmã no meio da feira, atravessando os vendedores e suas promoções, de repente a gente no shopping, estamos num mesmo corpo esperando Natasha em companhia de um casal de amigos, já estamos de mãos dadas com ela, mas continuamos a esperá-la, então ela passa com o namorado e eu percebo que o namorado não sou eu. Só aí me dou conta que ela já está comigo, embora também esteja com o outro. Voltamos para o terraço e as folhas de papel pintadas, nesse momento não são mais brancas, são de todas as cores, minha irmã recortando, colando, fazendo máscaras, bandeirinhas juninas, mas sou eu que estou no shopping, tudo escuro, o gerador não tem força suficiente para iluminar todos os locais, procuro um lugar para me agarrar com Natasha, perco muito tempo nisso e não acho, todos os ambientes ocupados, povoados por cabeças menores que trinta e dois centímetros, penso no possível lote de vacinas vencidas, relembro o homem do Aedes e fico em dúvida, só sei que algo está errado, ou talvez tudo, procuro repelente e do bolso só aparecem contas, feito o lenço infinito dos mágicos, tento apagar, esquecer tudo e já estou nos desenhos, minha irmã com suas tranças a brincar com a bola, com as bonecas, a corda, os carrinhos, os elásticos, com a imaginação, com o sonho, mas novamente eu procurando um lugar para me atracar com Natasha, a gente entra então num banheiro abandonado, cheio de lixo dos fasts foods, bandejas e mosquitos à exaustão, vamos ali, naquela sujeira mesmo, um beijo enorme, babado, a saliva a escorrer pelo peito feito chorume, aí escuto um apito, um apito encorpado ou pancada abafada, não sei direito, que não para, não para, o barulho era desesperado na porta, percebo as batidas em métrica apressada, eu sonolento, mal levanto, então entrevejo minha irmã menor abraçada à pelúcia, dizendo que queria sonhar em paz, que nem em sonho eu deixo ela brincar, que queria apenar se divertir com as flores e os desenhos, passar o tempo, brincar de imaginar, pensar num futuro bom, mas eu sempre me meto e atrapalho ela, que tem medo, que sempre coloco o calor no sono e no sonho dela, venho com os tiros, a imensidão de lixo, os mosquitos, as contas gigantes, as buzinas do engarrafamento, o ônibus apertado, mendigos, crianças com cabeças bem pequenas feito o quadro daquela pintora, trago todos meus monstros, que está cansada disso.

 

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Raul Colaço (Jaboatão dos Guararapes/PE, 1992) é graduado em Licenciatura em Letras pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. Foi quinto colocado no Prêmio VIP de Literatura da A. R. Publisher Editora, na Categoria Poesia, e finalista do IV Prêmio Pernambuco de Literatura.