Kafka disse que só devemos ler livros que mordem e arranham. "Se o livro que estamos lendo não nos desperta com um golpe no crânio, por que nos incomodarmos em lê-lo?". Ardiduras (7Letras, 2016) é exatamente isso: um golpe no crânio. Uma obra viva e com dentes afiados. Uma literatura das boas. Em julho de 2015, Priscila me procurou para contar que fazia muitos meses que silenciosamente estava trabalhando em seu segundo livro de poemas. Chegou a me enviar um esboço, porém advertiu: "muita coisa vai mudar, é só uma ideia". Explicou onde queria melhorar, suas dúvidas, seus desejos. Não pediu opiniões nem julgamentos: sem interferências. Mas estava carente de falar de literatura com alguém, e assim foi: durante alguns dias discutimos questões envolvendo criação literária e todos os desdobramentos envolvendo o processo de criar livros, publicá-los, divulgá-los. Confiou em mim suas inseguranças. O livro ainda não tinha título. Comentou que estava muito inspirada nos episódios da série "Chef's Table" da Netflix e que gostaria de dar às palavras o mesmo trato que os chefs dão aos ingredientes. Estava pensando na palavra como matéria-prima e todos os seus possíveis jogos de imagens e de sintaxe. Falava de som e aliterações e da vontade de superar os defeitos de seu primeiro livro. "Quero criar novos defeitos e não repetir os antigos", confessou-me. Estava consciente de que este livro que nascia seria um experimento, pois assim como ser chef de cozinha, escrever é um exercício que demanda comprometimento, lealdade e a afinação constante da ária. Na época, adiantou-me que os poemas não teriam título. Poucas informações sobre ela na minibiografia. Capa mole, um desenho que não chamasse mais atenção do que deveria. Não queria criar distrações entre o leitor e o texto. Gostaria que a palavra fosse a protagonista, e todos os seus erros e acertos, sem maquiagem. Afinal, a escrita é um lugar em que não podemos ser covardes, precisamos enfrentar no peito tudo o que nos despejarão: os tapas e os beijos. Então, Ardiduras pode ser um prelúdio do caminho iniciado em Minimoabismo, seu primeiro livro, publicado pela editora Patuá, em 2014. 

Lembrando de nossas conversas, mais de um ano depois, quando terminei de ler o livro, senti um calafrio. Uma faca percorria minha coluna. A leitura é uma experiência intensa, sem volta, e logo percebi que embarquei em uma das mais alucinadas do ano. Fechei o livro e fiquei calado por um tempo. Conheço Priscila. Conheço sua força. Sua luta. A poesia dela é pura entrega, puríssima; um abraço de espinhos doces, um cuspe contra o status quo, um grito que rompe silêncios brancos. Por isso, a faca bailando pelas minhas costas. O calafrio. Ardiduras é literatura limite, beira do abismo, é a luta de uma poeta que não se rende, que se joga, que usa a linguagem como uma arma feroz.

A poética de Priscila é um quarto apertado contendo "xícaras de agorafobia" e alguns crânios e pássaros. É neste cenário que ela respira, ganha vida (ou morte) e nos traga para um rombo eterno, um sonho sem fim, onde a poeta nos mata com carinho. Todo poeta deve ser um assassino lírico. Ela é.

 

a solidão é pluma na relva

vou arrancá-la como cílios

engolir os sóis do planeta novo

iluminar meu fígado

como um feto desesperado

para nascer em berço

de ouro

 

Solidão, violência, dor, paixões, taras, subversões, lirismo, religião e erotismo, todos esses pontos convergem no universo da autora. É como entrar em um trem sem freio. Sentimo-nos como meros fetos sendo "esfoliados por cactos", inocentes, sem reação, transe fúnebre. Kafka disse que precisamos de livros que nos golpeiam como uma desgraça dolorosa, como a morte de alguém que amamos mais do que nós mesmos: e embora o que deve ser levado é sempre o eu-lírico, é válido dizer que a poeta entende de lutos e privações quase irreversíveis. Portanto, é verdade, caro Kafka. Não há como sairmos intactos do Ardiduras, pois o golpe em nosso peito é consolidado a cada verso devorado.

 

quando se enforcou

na ventarola da antiga porta

arrebentou o intestino

as fezes correram pelo chão

e a língua caiu no peito

 

tórax expandido

cheio de ar

como um sapo-boi

tatuagem dentro do lábio inferior

com buracos de piercings

 

os legistas do iml enrolaram sua língua de qualquer jeito

não tiraram a cueca defecada

 

a necrológica lição: amigos, como petúnias,

podem morrer

 

 A poesia da Priscila em alguns momentos lembra os escritos de Alejandra Pizarnik. Outras vezes, lembra o gênio Lautréamont. Assim como esses poetas, ela nos leva até o inferno e enfia um gancho enferrujado na nossa nuca e puxa até o paraíso. Depois leva ao inferno de novo. E paraíso. E inferno. Ida e volta, volta e ida. Assim vai.

Para mim, a poesia não deve buscar certezas — a boa literatura também não. Ela deve estar sempre no campo da ambiguidade, criando um espaço de questionamento. Deve criar perguntas e não apenas respondê-las. Ardiduras é um livro que questiona, incomoda, nos coloca em um plano de transgressão e beleza constante. Volto a Kafka: "Um livro deve ser o machado que quebra o mar de gelo que há em nós". Deve, de fato, e essa obra é exatamente isso: um machado quente que nos derrete.

 

tenha fé em mim

deposite essas moedas na fenda de meu crânio.

 

Depositei. Teremos fé em você, Priscila. Afinal, é o que resta depois do caos.

 

 

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O livro: Priscila Merizzio. Ardiduras.

Rio de Janeiro: 7Letras, 2016, 88 págs.

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setembro, 2016

 

 

Bruno Ribeiro nasceu em 1989, um mineiro radicado na Paraíba. Escritor, tradutor, roteirista e CEO da banda Creepypasta. Autor do livro de contos Arranhando Paredes (Bartlebee, 2014) traduzido para o espanhol pela editora argentina Outsider. Mestre em Escrita Criativa pela Universidad Nacional de Tres de Febrero, editor da Revista Sexus, foi um dos três vencedores do concurso Brasil em Prosa, promovido pelo jornal O Globo e pela Amazon, e também foi finalista do Prêmio Sesc de Literatura 2016. Edita o blogue: brunoribeiroblog.wordpress.com

 

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