O coveiro não tem aquela necessidade de falar sobre a dureza da morte. A aura marcante de Vilmar Leonel Vieira se atenta a saudar aos mortos com rezas rotineiras, pois afinal é preciso que alguém olhe por eles. No exercício cotidiano, abre a bíblia antiga e lê em voz alta algumas passagens em frente às miniaturas de Expedito, Paulina e outras santidades coladas e expostas no pequeno escritório erguido por ele, nos fundos da Capela São Sebastião, símbolo do catolicismo no Campeche e Patrimônio Histórico, Artístico e Arquitetônico do município. Aquele cômodo estreito de paredes cimentadas, construído para ter um descanso das covas costumeiras, guarda de tudo um pouco: seus trajes alaranjados, as luvas e máscaras para sepultamentos, a enxada leve e especialista em arrancar acúmulos de pasto por entre os túmulos, facas para jardinagem de todos os tamanhos e objetivos.

 

Hoje veio com a medalha de cidadão honorário da prefeitura de Florianópolis, um reconhecimento para quem há mais de quatro décadas vem servindo à cidade. Os dizeres "Sou mané, graças a Deus" em uma das faces, ilustra o objeto que acompanha o coveiro, nativo da Trindade, pela caminhada em seu local de trabalho, o cemitério da Capela — ou Igrejinha do Campeche. Também porta um chapéu de palha, uma referência aos antepassados cujo prestígio se nota na fala. Veio nos trilhos do avô, o saudoso Valdomiro Militão Vieira, administrador de obras da prefeitura até servir ao filho, Leonel Valdomiro Vieira, o posto de encarregado de obras. Vilmar seguiu a profissão herdada pelo pai, após passar em concurso da prefeitura no início dos anos 70. Atualmente, além de coveiro, é pedreiro da Intendência do Distrito do Campeche.

 

"O senhor Vilmar é um funcionário que vai muito além do que lhe é proposto, pois não só executa seu trabalho com exímio profissionalismo, como também não reclama do trabalho em horários extraordinários no que se refere às exumações, abertura da casa mortuária para velórios, enterros, etc. Parabéns Vilmar Leonel Vieira! Que bom seria se todos os funcionários públicos tivesse a sua honradez, comprometimento e integridade". Assim se encerra o documento assinado pela Intendência do Campeche, em junho de 2013, e que o coveiro exibe orgulhosamente em uma das mãos.

 

A manutenção dos treze cemitérios municipais é feita por pessoas como Vilmar, funcionários de plantão, dispostos a atender familiares de falecidos mesmo em horários de pouso. "Aqui não tem horário. Duas, três da manhã, com chuva ou vento, eu venho para abrir a casa mortuária", revela. Todos os cemitérios de Florianópolis estão com as necrópoles esgotadas. Quem perder um ente querido, na atual conjuntura, ou desembolsa até 13 mil reais em cemitérios particulares e crematórios, ou deve enterrar nas "gavetas", espaços gratuitos de enterro provisório, pelo período máximo de quatro anos. O maior, de nome São Francisco de Assis, no bairro Itacorubi, abriga quase 63 mil mortos. No Campeche, mesmo com a ampliação que quase duplicou a área do cemitério, em 2014, a situação é a mesma: não há mais espaço. Em 2011, Vilmar tinha uma rotina de nove a dez sepultamentos mensais. Hoje quase não lembra a última inumação que tenha feito. "Agora só se enterra quem é da família, pois aí se usa o mesmo túmulo", explica.

 

Ao caminhar pelo cemitério, Vilmar se vangloria do conhecimento que adquiriu do terreno e de todos que repousam por lá. Quando comenta do ajudante que o auxilia no ofício, reitera a necessidade do rapaz em entender cada metro quadrado do local. "Aonde é o túmulo do coveiro antigo, Brito josé das Chagas? Ele não vai nem saber. Então tem que saber explicar", argumenta. Quando passa por um túmulo comum, situado em uma das divisas do terreno, revela, entusiasmado, o local em que será enterrado: "A minha casa já tá pronta, essa aqui vai ser minha morada!". No dormitório de Vilmar já estão enterrados dois de seus amigos. Carlo, mais abaixo, era carpinteiro e natural de Nova Trento. O coveiro conseguiu retirar o corpo do IML, após o comunicado que não havia lugar para enterrá-lo. "Pessoa muito boa, me arrumava o serrote quando eu precisava. Sempre me ajudou", conta. Quem dorme em cima é Jorge, aposentado de São Bonifácio e comerciante de queijos e vinhos. A falta de um cemitério para o enterro também fez Vilmar trazer seu corpo para o Campeche. "Enquanto eu tiver nessa terra, ninguém me impede de fazer nada aqui. Quando eu morrer tudo bem", finaliza.

 

O ar imponente, pelo qual o coveiro nutre a relação com aquele local de almas vagantes, abastece uma sensação de deslumbramento quase que indispensável para sua caminhada. De apaixonante, o cemitério da Igrejinha, construído em torno de 1876, por alguma família devota da localidade, tem túmulos floridos com vista para o mar. Há de se ver também a grande duna vestida de vegetação rasteira, alguns pés de alecrim e pitanga pelas vielas confusas, raros exemplares de aranhas e lagartos invasores, vasos cheios de água da chuva, e por fim, a Ilha rupestre junto ao horizonte. A presença daquela ilha amiga, quase que no fim do campo de visão, aparentemente, se dá justo para mostrar que se está no Campeche, terra de Deca Rafael, Seu Chico, Lurdes, Aparício, Dona Chica, Seu Sérgio, Pedro, Emília, Hernesto, Vilmar e outros tantos filhos da terra.

 

 

Campeche, Florianópolis/SC