Não havia em seu corpo nenhum indício da enfermidade da moda, nem de nenhuma outra tendência dos tempos modernos. O jeito tímido e humilde de lidar com a vida era simbolicamente exposto no que vestia: um conjunto cinza degrade, composto por moletom e calça rasgada, meia fina, óculos redondos de garrafa e uma velha e boa sandália grega de couro, daquelas que, com o tempo, acabam se tornando de estimação. Era terça-feira, o dia estava nublado e havia um clamor de trovões escuros acima dos montes e favos de pinheiros no horizonte. Mal havia saído do portão branco pontiagudo de flechas brancas, que dá entrada ao jardim de sua casa, e o experiente senhor italiano, de olhos fundos e melancólicos, começava com simplicidade seu período de sesta. Observando a tempestade distante, o luthier Antônio Bittencourt, de 81 anos, se sentava sozinho à beira da calçada, fingindo ler um livro à sombra da única árvore da ladeira, um flamboyant antigo e robusto.

 

A vinte passos da rua, subindo por uma mirrada escada bamba de madeira, avistava-se uma porta áspera e enferrujada, por onde, todo ano, chegam violinos, violões, rabecas, cavaquinhos, bandolins e banjos em busca de reparos. Alguns, aos frangalhos, deslizam para as mãos velhas e enrugadas do luthier, em busca de seus cuidados. Outros, desenhados pelo próprio artista, surgem novinhos e brilhantes em sua mesa, construídos sob medida para atender aos pedidos dos clientes. Da janela do modesto atelier, construído em cimento e tijolo nu, avista-se um pequeno bosque, cujas árvores, assim como as histórias de Antônio, exalam preciosidades.

 

No espaço apertado e úmido, ferramentas, quadros e entulhos aglomeravam-se e se misturavam próximos à longa mesa de cedrinho, onde, há 50 anos, são criados instrumentos musicais, caixas e peões que seguem por todo o Brasil, mas que, em épocas de ouro, também alcançaram países da Europa. Sentado em frente à mesa de trabalho, Antônio se curva para contar algumas de suas histórias e, por breves momentos, sinto dissipar a tristeza em seus olhos de vidro. Relembra a história peculiar de um senhor polonês, que veio à sua oficina para consertar um violino e nunca mais retornou. Morreu de derrame. Aquele conceituado instrumento, inspirado em Stradivarius, músico que, no início do século 18, aperfeiçoou as qualidades dos instrumentos fabricados na Europa, foi a referência maior de seu trabalho. Anos depois, uma menina esbelta de cabelos longos e rosados apareceu com um instrumento semelhante, pedindo ajuda ao luthier: queria consertá-lo para tocar para uma senhora doente. Coincidentemente, era a esposa do violinista polonês. Com suas mãos grandes de veias soltadas, Antônio pôs uma caixa sob a mesa, abriu o cadeado e levantou a tampa. Naquele momento, finalmente se despedia do seu instrumento favorito. As medidas perfeitas, todas anotadas, ainda permanecem guardadas a sete chaves em alguma de suas gavetas e, sua história, segue perpetuada em sua memória.

 

Foi com histórias como essa que o atelier, aos poucos, transformou-se em um santuário dos instrumentos musicais e Antônio Bittencourt virou alma milagreira. Em meio a algazarra criativa que borda as superfícies do casebre, o artista puxa e segura, com cuidado, um pinho entre as pernas. Embora não toque ou saiba fazer música, o luthier não se vê desprovido dos versos de arabescos. Ali, percebo que sua vida está inteiramente interligada às bugigangas que conserta, sendo o próprio Antônio criador de toda a poesia penetrante e bela, materializada nas formas de música, madeira e verniz. Deve ser por isso que seus clientes demonstram tanta gratidão.

 

Nas paredes mordidas e castigadas por épocas passadas, foram pendurados escritos de agradecimentos pelos favores recebidos, matérias publicadas em impressos locais e do exterior, orações e fotografias de artistas renomados. Todos os escritos eram reciclados e resumidos na fonte de sua arte enxuta, crível e sensível. Seja com lápis e papel, impressões ou presentes, cada um daqueles músicos profissionais e amadores tinha encontrado sua maneira perfeita de dizer ao luthier: muito obrigado.

 

 

Agronômica, Florianópolis/SC