Francisco Faria. Impenetrável I, 1999. Grafite sobre lençol de chumbo, 130x100 cm

 

 

 

 

Abordar o percurso poético de Josely Vianna Baptista permite identificar algumas constantes qualidades simultâneas. Uma precisão imagética, que pode ser a filigrana ou a amplidão da paisagem, que se alterna do móvel ao estático. Há também uma loucura do olhar1, um êxtase das imagens, em que se convoca o corpo para a leitura. Através desse convite às sensações, sua poesia configura-se num gesto de corporificação e erotização da linguagem.

Com meticulosa tessitura acústica, seria de surpreender per se pela beleza plástica, mas essa textura é trama de linhas vocais, trama oral, intrínseca às palavras que desencadeiam a imagem. Figuras acústicas despertando imagens mentais: está aqui, em semente, o processo essencial da comunicação na linguagem verbal. Os poemas de Josely Vianna Baptista conclamam o ouvido a refundar esse liame, essa liga: que se esteja mais atento para o corpo da voz, para as imagens que comunica, entre fluxos e silêncios, e que o olhar possa se demorar no instante de cada poema.

Sua poética também está impregnada pelo ofício de tradutora prolífica, que exerce com afinco e esmero, com ênfase objetiva na literatura hispano-americana do século XX. São mais de cem obras traduzidas neste percurso-projeto, obra em andamento que vem sendo contemplada com prêmios e recepção crítica positiva. Outro projeto desenvolvido são suas traduções de lendas e cantos cosmogônicos dos Mbyá-Guarani, que vivem em tribos remanescentes na fronteira entre o Paraná e o Paraguai.

Na dedicatória de seu primeiro livro, Ar (1991), lemos: "à liga da palavra-alma dos Guarani — ñe'eng — e a seus suicidas". A despeito da metafísica indígena que aqui instiga a poeta, a liga proposta é mais substancial. Trata-se de uma liga entre arrojado arranjo acústico, uma disposição gráfica experimental e original e um amplo espectro de imagens, em que as palavras são experimentadas em suas potências simbólicas e metafóricas.

Em primeiro, esse extrato acústico está todo marcado pela artesania verbal, seja no nível fonológico-lexical das figuras sonoras das rimas, assonâncias, aliterações, em inusitadas e surpreendentes paronomásias. O cuidado fonológico microscópico é audível até quando chega ao plano sintagmático, com seus paralelismos rimados. Recorro aqui à melhor crítica a Lucrécio, para indicar a riqueza de sua "imaginação auditiva"2, expressão sinestésica apropriada para as sinestesias também presentes nos poemas, naquele veio neobarroco.

Sobre o livro Ar, podemos assim repetir Néstor Perlongher: "barroconcreto", neobarroco e concretista, pois, o projeto naquele momento. Desse mote, uma glosa: o elemento neobarroco, relacionado às traduções de literatura hispano-americana, está presente na linguagem enviesada e sugestiva de sua imagética extática, explorada suas cargas simbólicas.  Por fim, o experimento gráfico destes poemas "aerados" (termo da autora) estão sob influência sutil da poesia concreta, no sentido de tratar o poema como objeto gráfico em que a sintaxe visual contribui de forma orgânica para a expressão.

Nestes poemas o branco por vezes torna móveis as fronteiras de palavras e linhas-versos e de novo convidam a experimentar um ritmo de leitura oral-silenciosa que ritmicamente condiga com aquela configuração gráfica. Como ocupam a página com mancha gráfica em bloco, geométrica, chega-se a uma "estrofação sensível, em que a dispersão das letras quer desautomatizar o olhar e trazer o fôlego do leitor ao centro mesmo do poema"3.

Em Corpografia (1992) a autora mantém os poemas aerados, seu "idioleto verbo-visual"4, agora num projeto híbrido entre palavra e imagem, em parceria com o artista visual Francisco Faria.

 

O "método" era, na verdade, a interpenetração de texto e imagem, elaborados de maneira independente um do outro e organizados em grandes conjuntos, ou séries, de imagens e poemas. Em Corpografia, Josely continuou sua experiência com a aeração dos textos radicalizando-a em grandes retângulos de letras que ocuparam todo o espaço das páginas5.

 

Na interlocução com o olhar do artista visual, os poemas tratam com o traço de um desenho obsessivo, entre o racional-hiper-realista e o delírio da paisagem inventada. Quanto mais o olhar se perde na filigrana quase hiper-realista, mais fabular e fabulosa nos parece a paisagem. Suas imagens estão empertigadas na distinção táctil de tudo, cada coisa com sua textura, uma autópsia fotográfica do detalhe, nas réstias de sombras dos dorsos e dos troncos, ou então mirando a paisagem como fosse um corpo, flagrando furtivos gestos eróticos da paisagem nua, a céu aberto. É tarefa do leitor e leitura extremamente prazerosa o cotejo dos elementos verbal e visual nestes trabalhos híbridos de palavra e imago.

Erotismo: o corpo visto como continente fabular, território do simbólico, redescoberto e por descobrir. Os trabalhos compondo-se híbridos entre poemas e fotografias, desenhos e intervenções gráficas, podem conduzir, como escreve Eduardo Subirats, a uma "(...) reflexão alternativa sobre o corpo: o cuidado erótico do corpo dos amantes ou o cuidado simbólico e expressivo do corpo poético"6.

Está enfeixado no livro o belíssimo poema Os Poros Flóridos, que se desdobra como projeto híbrido palavra-imagem, mantendo a parceria com Faria, em exposições, entre Havana e Curitiba, em publicações de fragmentos no Brasil e no exterior, até ter duas edições, uma bilíngue publicada no México (2002) e a tradução Florid Pores nos EUA (2006). De Ar até Os Poros Flóridos, sua produção está reunida desde 2007 em Sol sobre nuvens.

 

 

Francisco Faria. Quatro vezes tempo, 1999. Imagem digital a partir de foto e desenho

 

 

Ler-olhar, palavra-imagem: detenho-me no marco de confluência, o conjunto de diferenças, observo, sigo o fluxo. O processo metafórico entre o texto poético e a imagem de Faria: uma linha reta, a sombra de uma espinha dorsal, um corpo deitado, sua espinha divide planos, divide umas águas de um céu, mas este céu já é corpo, nublado de espádua, em músculos articulada, o volume, uma sombra, um ponto preto esfumado, um sol negro sobre a nuvem espádua cinza pálido. A sombra da espádua reflete-se como rastro de luz nas águas turvas do leito7. Distinguir no sussurro desse discurso poético, beirando os limites do encantamento metafísico, tamanha a beleza da música de seus sons, discernir o eco dessa imagem: "Loas, lírios para o sol / cego em sua brancura de fogo, / (...) em sua arte de arestas / (...) na defesa insensata da beleza"; e "um corpo inverte sua sombra / na superfície violeta". A espinha dorsal, no horizonte, ossifica a paisagem.

Então, em Os Poros Flóridos é orgânico o imbricar entre poema e imagem, entre corpo e paisagem, por meio de gestos dialógicos e mútuas porosidades. Ou como colocou Lúcia Santaella, "(...) o movimento das passagens incessantes de imagens em fusão e corte podem muito bem ser o movimento próprio do ato amoroso". Segue depoimento da autora à semioticista:

 

Faço, por exemplo, analogia entre imagens diversas, como num surto febril: a Ofélia shakespeariana, semi-submersa num regato por Sir John Everett Millais, com as mãos abertas e cercadas de flores, entoando até a morte os seus letzte lieder, vai ecoar nos ‘ramos floridos’, o rakã poty dos Guarani que, no vocabulário religioso, nomeia os dedos e as unhas de tatachina rupa (que significa literalmente leito de neblinas, e refere-se ao côncavo da palma das mãos que guarda a neblina vivificante — que, por sua vez, confere sabedoria e o poder de conjurar malefícios, infundindo vitalidade aos seres), e vai mesclar-se às flores do deserto, redivivas rosas-de-jericó (que rolam secas pelo deserto, aparentemente mortas, e, com a chuva, abre-se em fruto. Perpassa o poema uma reverberação nebulosa, que encontra o olhar opaco e cego da Aurora de Rodin, extática como a Ofélia pincelada por Rimbaud, que viu sem ver (com seus olhos de um azul quase transparente) suas ‘incríveis Flóridas’ — assim como o sujeito híbrido, mestiço, ubíquo do poema".

 

O poeta Horácio Costa, ao tratar de Os Poros Flóridos, vincula a questão corporal à "problematização metalinguística no texto literário, balizada desde seu princípio pela abertura mallarmeana"8: "(...) o poeta trabalha com seu corpo: já não escreve mais sobre algo exterior, mas debruça-se sobre o imediato de sua fisicalidade (...) como produtor e simultâneo receptor do texto". Assim, faz remeter ao pensamento neobarroco de Severo Sarduy, para quem a escritura é vista como proliferação corporal. Nessa mirada, o poema foi embebido em duas águas: uma, a de Rimbaud, no "Barco Bêbado" e a das "Galáxias", de Haroldo de Campos. Outra água seria o barroco proliferantemente metafórico de José Lezama Lima.

 

 

Francisco Faria. Laminares III, 1992. Acrílica, aguada e grafite sobre foto e laca, 40x200 cm

 

 

A visada é especial também por trazer uma imago rimbaudiana num fluxo mallarmaico, o que nos obriga a ter o simbolismo francês como formante no repertório da autora, por processo e não por elementos, quer dizer: o status do simbólico no tratamento com as imagens. Esgarçado e esfumado o referencial, essas imagens terão sempre como imantação uma pulsante simbólica, ativada pela articulação sutil da camada fônica. Lembre-se aqui a crua assertiva de Drummond, para quem não ter "o ouvido sutil de Mallarmé" é condição do poeta: a poesia da Josely interroga a assertiva, e eu me lembro de que a obra de João Cabral é toda uma resposta à tamanha crueza drummondiana. O ouvido da poeta é cabralino, e tende sim ao mallarmaico. Mesmo o de Drummond já era um tanto aguçado.

Roça Barroca (2012), em sua primeira parte, traz à língua portuguesa três cantos cosmogônicos dos Mbyá-Guarani. Tais cantos integram o Aivu Rapyta, cantares míticos, revelados pelo cacique Pablo Vera ao pesquisador León Cadogan. Ao entoá-lo, o aedo rememora e celebra o momento em que o Pai Ñamandu iluminou a "fonte da fala", divinizando a linguagem. Para o romancista paraguaio Augusto Roa Bastos (1917-2005), "na cosmogonia desses cantos a linguagem é uma manifestação do amor divino, surgida de sua reflexão como forma de compartilhar com todas as criaturas uma porção da divindade"9.

Esse Pai Ñamandu "de si foi aflorando a fonte do amor", isto antes de criar a terra: "primeiro cria o amor e depois a terra onde cultivá-lo. Nestes tempos duros, de relativização de valores, faz bem lançar um olhar a essas culturas antiquíssimas que a civilização silenciou, talvez sem querer, como parte da estridência de nossos avanços"10, diz Roa Bastos. Temos aqui as palavras da tradutora sobre seu processo:

 

Primeiramente, fiz uma tradução ultraliteral dos cantos. Em seguida, atenta aos elementos formais do original, o texto foi retraduzido em busca de compensações possíveis para a eficácia poética em nossa língua. Além do texto base original, Teodoro Tupã Alves (importante liderança indígena, ex-cacique, professor na aldeia de Ocoy, Em São Miguel do Iguaçu, Paraná) entoou-me os cantos em mbyá e eu os gravei para melhor perceber suas modulações e tessituras sonoras11.

 

Contígua à tradução, completa o livro a série Moradas Nômades, em que os poemas, tendo em vista (e no ouvido) as texturas sonoras mbyá, quem sabe também dotados de ecos daquele "sussurro ancestral" da fala-alma. Apesar de estar agora mais marcada a temática, e daí o interesse nos ritos de iniciação indígenas, que a autora não intenciona exorcizar, a leitura é de tal modo afeita à materialidade de imagens e até histórica, que os poemas podem ser lidos em uma voltagem de etnopoesia, em que "um ocidental moderno não pode ler nela senão poesia", agnóstica, como quer o poeta Luis Dolhnikoff, na apresentação do livro.

O processo pelo qual a poeta "reencena a ambiência"12 do mito é já tomado por uma autora também atenta aos sussurros da história, mesmo que aos saltos diacrônicos. Neste sentido a poesia de Josely Vianna Baptista vai se aproximando por outros poros da poética de Lezama Lima, tendo em vista os reflexos históricos em sua imago. É preciso lembrar também que aquela dedicatória em Ar se dirige aos indivíduos mbyás que haviam se suicidado, por motivos hoje excessivamente óbvios. De tão óbvios, os temos por naturais.

Ao buscar fazer ecoar em seus poemas o mito e os sussurros da história, imagens e sons mbyás, plenos de história e mito, o faz também com o arcabouço da tradução de Os rios profundos, de José Maria Arguedas, romancista peruano de origem Quéchua. Sua prosa permite associá-lo a um movimento "indianista" da literatura sul-americana. É o mesmo caso da tradução de Vigília do Almirante, de Augusto Roa Bastos, romancista paraguaio, criador de uma ficção "impura, ou mista, oscilante entre a realidade da fábula e a fábula da história".

Retorno aos poros13, em analogia à noção de cosmopolitismo nas notas sociológicas de Fernando Pessoa, e suas ideias sobre o ser português: no "caráter social", o que hoje diríamos na cultura de seu povo estaria o "cosmopolitismo, seu poder de sintetizar em si todas as correntes estrangeiras, como os descobridores"14. Tomemos essas correntes como sendo a invasão da Lusitânia pelos romanos no séc. I a. C. e os oitocentos anos de domínio árabe na península, e está composta a fórmula alquímica: na quimera histórica de Pessoa o português é romano-árabe.

No Gharb-al-Andaluz, no Algarve, o sul de Portugal, foi se arabizando e judaizando todo o arcabouço cultural romano, já cristão, mas não de todo solapado pela igreja católica. Algarve, dominado por muçulmanos, coabitado por cristãos e judeus, onde usufruíam de ampla liberdade de expressão, ainda que somente sob pagamento de tributação. Este sul de Portugal contribuiu para que parte da tradição filosófica e científica dos gregos chegasse ao idioma latino, língua de comunicação do Renascimento, graças a tradutores muçulmanos, judeus e cristãos. Alguns desses cristãos eram árabes cristianizados, e por serem cristãos sabiam grego.

É a partir deste algarve utópico pessoano que saúdo a arte e a porosidade cultural na poética de Josely Vianna Baptista.

 

 

Cabo Frio, 29 de novembro de 2016.

 

 

Notas

 

1O poeta e antropólogo argentino Néstor Perlongher (1949-1992) usa "la folie du voir" remetendo ao título homônimo do livro de Christine Bucci-Glucksman. In: A paisagem dos corpos – BAPTISTA, J. V. Sol sobre nuvens. Coleção Signos, 43. São Paulo: Perspectiva, 2007.

2BOYANCÉ, Pierre. Lucrèce et l'Epicurisme. 1. ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1963. p. 194

3BAPTISTA, J. V. Roça Barroca. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

4Augusto de Campos assim se refere ao procedimento, na apresentação de Sol sobre nuvens (2007).

5FARIA, Francisco. Notas sobre um percurso compartilhado. In: BAPTISTA, 2011.

6SUBIRATS, E. O continente explorado. In: op. cit. BAPTISTA, 2007.

7Refiro-me à lâmina Quatro vezes tempo (1999), e ao fim do fragmento V de Poros Flóridos, a que, por proximidade, a imagem parece dialogar. In BAPTISTA, 2007.

8COSTA, Horácio. Na sombra vermelha. Na sombra roxa. (Sobre um poema de Josely Vianna Baptista). In BAPTISTA, 2007.

9BASTOS, A. R. O catecismo da beleza. In: BAPTISTA, 2011.

10Idem nota 7.

11BAPTISTA, J. V. Nota da autora sobre as palavras azuis celestes. In: BAPTISTA, 2011.

12DOLHNIKOFF, L. Apresentação. BAPTISTA, 2011.

13Refiro-me ao uso do termo por Lúcia Santaella e Augusto de Campos.

14Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1980. p. 42.