VIA LÁCTEA

 

 

Há um gato no avesso da noite.
Me incorporo ao bigode
de estrelas
que compõe 
o seu rastro insone.

Seu suspiro
é um pesar inquieto
como a cauda 
de um cometa
em chamas.

Há um gato no avesso da noite.
Seu miado revela a malícia
dos que, há muito,
não dormem, nem comem,
sob a pedagogia do corpo.

Nos seus olhos 
dois sóis se equilibram
farejam e se impacientam,
aos prazeres da sombra
no húmus.

Há um gato no avesso da noite.
Espelhado na luz que o incendeia,
a tigela em que ele reflete,
constitui a sua via láctea.

 

 

 

 

 

 

SÃO JOÃO

 

 

Ao calor das horas baixas
um palhaço se estilhaça
no sorriso empobrecido.
Não há cor em sua roupa
só piada amarrotada
e adereço démodé.
Hoje é dia de São João.
Um balão desbota ao longe
e um Zeppelin vigia a praça.

 

 

 

 

 

 

EM DEFESA DO LÍRIO

 

 

                   Poema que dedico à poeta Líria Porto e a todos

                   os tipos de censuras covardes contra a poesia! 

 

Há um lírio no poema
exposto
em um vaso
de caos
e vaidade.

O estrume
é sua matéria-prima
mas renegam-lhe 
a propriedade
de ser ele, profundo
e profano.

De sua boca ser cu
e saudade.
Há uma pátria
na terra em adubo
que impele o poeta
ao fracasso.

 

 

 

 

 

 

PERDOEM O POETA

 

 

Se o calo pesar muito mais que a mão
ou quem sabe 
diluir seu olho
em pedra.

Se a doença do instante
que aprisiona
cada alma
a sua última esperança

Ou

se a imagem amadurecer

no pensamento
por um verso
sui generis
ou bamba,
que lhe invoque
alguma pureza
ou inocência,

por favor, então

perdoem o poeta!

 

 

 

 

 

 

DECORAR

 

 

Se aprender uma coisa de cor
é mostrar ao nosso coração
o que vale a pena e a lida
não se aprende de cor
por inteiro.

Só se aprende de cor
com o tempo
que transforma
Na lida, a palavra,
decorando 
a nossa experiência.

 

 

 

 

 

 

ROTINA

 

 

O poeta acorda às seis horas
Logo lê um jornal salpicado
De cinzas e melancolia.

Ele mora em uma casa apertada
Onde mal lhe cabem as ideias.

Não há rima que engorde-lhe o prato
Nem amacie seu sono intranquilo.
Mesmo assim não lhe falta trabalho…

O poeta concorre com o dia
Esticando sua vida impossível
Em um caixa de supermercado.

A maquininha do caixa 
A cada produto em comércio
Responde um "sim" às suas vendas
E mais um "não" aos seus versos.

Quando enfim chega a noite em despacho
Ruminando a lavoura do tempo
Incorpora a imensidão do ômega
E não há um minuto sequer
Que não seja o carrasco e o oprimido.

Sua matéria desmancha aos desvelos
De um beco, dourado e soturno.
Sua energia é uma infiltração 
Que nos cega a certeza dos olhos.

Mais um dia se vai e a poesia,
em rotina, consome-lhe a carne
E seu coração em brasa só almeja
que as pessoas falem: "meu bem…".

 

 

 

 

 

 

ÁTOMO

 

 

A tinta abriu um buraco
no peito branco
de papel.

O mundo cresceu
uns dez metros
com seus pulmões
de esfinge.

 

 

 

 

 

 

O SILÊNCIO DAS SEREIAS

 

 

Ela caiu, feito pedra, no meu dilúvio
Resistiu, feito mastro, aos meus escombros
Guiou-me, em veredas, no fim de julho,
Calou os maremotos do som, em fúria.

Teceu no silêncio de cada instante
As douradas cordas de sua lira
Como as flores d'uma árvore, pelos campos,
Permeiam os amores das alvas ninfas.

Furou no concreto de sua hora
A hora que espera pelo concreto
Caiu feito pedra, mas sem demora
Como o ar que rodeia todo concerto.

 

 

 

 

 

 

MARÉ BAIXA

 

 

Eu tenho medo do mar!

Eu tenho medo das águas

contra as solidões esparsas

lapidando as horas no tempo.

 

Eu tenho medo da força

tempestuosa de sua ira

e da sugestão exata

de sua melancolia.

 

Eu tenho medo do mar

porque o mar não cabe em si

e cada onda que sangra

ata-nos à existência.

 

Tenho medo do mar pois,

logo eu, fadado a poeta,

de olho manso às imensidões,

tremo, aos menores sinais

de nossas incompletudes.

 

 

 

 

 

 

CONSTRUÇÃO

 

 

Há mais do que pó e concreto

sobre o rosto daquela cidade.

 

A usina que me pari o advento,

sobrevoa-me as flores

do lácio.

 

Aprende-se então com o tempo

ao falar sobre as coisas de fato.

 

Limito-me ao que aparenta

ser a coisa por trás da imagem.

 

 

 

 

 

 

DOMINGO

 

 

O dia se despe

Na cortina velha

Que balança os móveis.

 

A tarde engatinha

Pelo gelo inquieto

Na dose de gim.

 

O homem chacoalha o copo

Mistura as horas e,

Como num passe de mágica

Bebe-as de um gole só.

 

Billie Holiday reclama seu espaço

Ao fundo

No canto esquerdo da sala

Engolida pela sombra

Esparramada na varanda.

I honestly believe that you are bored

You've change.

 

 

 

 

 

 

À MEIA-LUZ

 

 

Beijei-lhe a boca

Em outra roupa,

Em frase solta

E vão cinismo.

 

Despiu-se à luz

Da vela, rouca,

Na hora muda

Em som e vício.

 

Cumpriu sua sina

E a dor jaz pronta,

Na flor que, tonta,

Em nervo expus.

 

E a voz que assombra

A tua recusa

É apenas musa

Em olhos nus.

 

 

 

 

 

  

 

[imagens ©fernanda lemos] 

 

 

Ramon Diego. Poeta e estudante do curso de Letras (Português/Francês) pela Universidade Federal de Sergipe. Seu primeiro livro de poesia, Viagem Rasa, foi publicado em 2013, por meio de orçamento participativo. Participou da antologia Toc140, organizada pela Fliporto. Tem poemas publicados na Revista Blecaute (PB) e Revista Cumbuca (SE), entre outros espaços virtuais.