Vênus em fúria

 

 

De tempos em tempos sou pega por uma febre. Atravesso aqueles vídeos cassetes jamais vistos outra vez, dancinhas da titia e pudim na casa do Méier, algumas duas ou três capitais provinciais, um colégio experimental e outro praticamente militar, se houvesse militares. Volto a um bairrismo caloroso nos pormenores dos assaltos à mão armada, onde as empregadas e os porteiros são aqueles que presenciam a chegada triunfal das jovenzinhas, bêbadas de sua noite, sem guardar as estórias sórdidas que, em fragmentos, gritam em tropeços na saída do taxi algo que se promete. De um vívido charme bertoluccioano, devo dizer, mas vovó não gostava e até hoje teima numa estória sobre o dia em que, saída do banho, andei pelada por seu corredor. Adoro essa versão. Mas gosto ainda mais de outra.

Frequentei uma escola burguesa onde as crianças tinham que cantar juntas o hino nacional às segundas-feiras. Lá estava a diretora, entre as filas seriadas por ordem de tamanho — eu sempre era a primeira ou a segunda — ao lado de sua fiel escudeira, a enfermeira, fiscalizando cada meia que não combinasse com os uniformes, cada mascada de chiclete que se achasse muito esperta, cada ombro torto de má vontade. Retalhos sem muita importância que adoram transformar em piadas prontas no natal, anedotas para chamarem de suas. Tão pequeno e tão entranhado. O olhar à espreita, bengala, a ajudante de branco e o laquê tão Margareth Thatcher.  E algo que prepara, através de nós e sem perder de vista a aposentaria, o seu grande revide. Quando meus pais diziam para não ir muito além da beira, deixando-me hesitante pelo excesso de zelo entre a areia e o horizonte, decidia por catar as conchas que me lembrassem de um lugar aonde nunca fui. Hoje tenho uma gaveta destas. Um mar de perguntas sobre aquilo que não podia tocar. Os gêneros esquecidos, junto de tudo o que ainda não existia. Assisto às imagens da super 8 e percebo a confusão.

Certa vez, li a citação de um filósofo: o beijo dos amantes destrói a sociedade. Quando beijei Celine pela primeira vez não conhecia esta frase, mas senti que aquilo não poderia ser destruído por ninguém. Estávamos numa festa de tema balcânico, ela usava uma cor azul. O salão esvaziava. Éramos sobreviventes. Estimulada por aqueles instrumentos a soar por nossos corpos molhados de cerveja, fui até ela, estava dançando lentamente, magnética, rondando a própria órbita. A trupe de músicos fazia do momento uma decisão expressiva: talvez fosse o oboé, ou o coração na mão arrancado e exposto diante do necessário chamado. Chegou a hora. A última nuvem de gelo seco infestava a pista, nos faria beijar entre névoas. Percorria suas costas, seus braços e sua cintura, numa abordagem sorrateira; tentando, apenas tentando, enquanto cada aspecto já se sabia uma memória: de fato estranho aquele espanto, dar-se conta de como a estória que ainda está sendo vivida seria aquilo que tu nunca iria esquecer; um insólito permanente na insistência em me marcar, e tudo se revestia de uma marcha instrumental.

Celine e eu estudávamos na mesma faculdade, ela era mais nova. Naquela época nossa relação, completamente sublimada, fazia-se por medíocres fagulhas: à distância admirava suas sardas, o olhar de quem não consegue enxergar pelos ângulos exigidos (tudo barulhento demais), o andar concentrado, sempre desacelerando meu tempo, e como se observasse um passarinho em extinção acompanhava a preguiça, a morosidade de sua virada de rosto, tão didática, tirava um décimo de minha existência. Um dread em meio aos cabelos desbotados. Aluna exemplar. Gaguejava febrilmente quando encarada por alguém muito sedutor. Seu riso de nervoso me devastava. Era Vênus em fúria.

Tínhamos combinado de levar um vinho para sua casa. Naquela noite tomaríamos a garrafa e depois tiraríamos fotos lúdicas e tremidas da minha analógica, pela qual a pesquisaria em tons laranjas, azuis e rosas. Ela estava bem à vontade, havia se remendado por muitos anos entre a neutralidade das tapeçarias. A casa possuía um tom grave, aristocrático. Desde a infância daqueles retratos ficava evidente como um tanto desencaixada, mas não se obstinava, o barato da coisa era me levar para o meio de sua filosofia sem forma retida naquele lar tão devoto, solitário, bege; de mensagens lúgubres entre castiçais. Podia ouvir o tilintar da prataria guardada. Celine poderia ser um clichê, mas era o pretexto para algo de fantástico.

De brechó rasgado, me pegando para longe daqueles objetos e na onipresente ameaça daqueles tons, conduzia-me numa tranquilidade irresistível. As paredes viam que estávamos embriagadas e engraçadinhas. Olhava o espaço grandioso de viagens pela Europa em seu quarto na minha mais nova e rasa pretensão de guardar cada detalhe de sua estante de livros, mas ela não deixava. O riso, a pele macia, mãos que seguravam firmes a minha nuca. Foi se desnudando até com um certo cuidado, não precisando fazer nenhum convite. Ao primeiro gesto foi feita a justiça: devassamo-nos.

Largada às ínfimas intuições, como se na piscina pela primeira vez sem boias, estava em desengonçada embreagem. Mas isso já tinha sido deixado na curva em velocidade. Consegui confiar, no abismo; essa concha rosada na língua. Naquela madrugada, gozei enquanto ia o mais fundo possível, fascinada pela imensidão de sua carne, de seus sucos. Sua boceta, gorda, tinha um gosto férrico e era profunda, minha boca a comia, e as mordidas procuravam alucinadamente por aspectos em suas dobras como se gavetas em mim escondessem, de um jeito insuportável, coisas deixadas sem respostas. O momento tinha precisamente o sentido de um acerto de contas e o de uma 'nova fronteira', expressão outro dia lida em algum biscoito da sorte chinês ou sachê de açúcar. Recebi o trêmulo recado de minhas vísceras amorosas. Fomos, fui. E depois da incerteza sobre ela ter gemido, não sabia o que fazer com a minha sorte chinesa.

Disso eu me lembro, não chovia, era quase verão e esticamos a hora de acordar feito duas gatas siamesas, na mesma posição arcada, com as pontas dos narizes. Dormimos, poucos momentos abraçadas, o sono ainda não era de reconciliação. Amanhecemos afagando os cabelos uma da outra, e nisso tentei até me colocar fora da cena, dizendo a mim mesma: nada pode ser tão raro. Ela acolheu esse meu hesitante olhar visto da areia, desconhecendo meus pensamentos envolvendo sachês, conchas, hinos e dívidas com as gavetas. Eram já umas onze horas. Quando levantei, vivi uma sensação maravilhosa: como se tivesse atravessado aquele abismo da beira da praia, me inebriava com a beleza de tocar os seios do horizonte marítimo. Entre cereais e mel, Celine me nutria com um prazer silencioso, fiquei escutando sobre seus estudos védicos. Ela comentava algo sobre a granola enquanto nosso estado de felicidade era provisoriamente imaculado pelo café da manhã. Por um segundo se percebeu cercado. A mesa da cozinha, onde comíamos, não era mais a mesma. A garrafa de vinho não estava mais lá.

Aquela coisa de recolher rapidamente as pistas. Havia algo, talvez a mãe dela passando para me cumprimentar. Esse vulto, essa juíza. Esses olhos castrados e tristes dos adultos. Não sei muito bem como aconteceu mas, em algum momento, constatei que nosso romance havia chegado ao fim. Estávamos vulneráveis. No vazio da sala de estar de Celine, neutro e de paredes conspiratórias, estavam todos lá, os herdeiros, as diretoras, os Domingos, as bengalas. Todos arrumaram aquários como aquele que jazia agora sob uma madeira opaca ao lado dos retratos, fazendo lembrar um poema sobre uns peixinhos dourados que — ainda procuro a referência mas desconfio ser um Bukowski — por serem bonitos demais, nossos pais os mataram. Todas as casas têm um aquário ao lado dos retratos. Ali morríamos, prematuras. Ela tomava um iogurte desnatado, e apenas eu sabia.

Celine foi para a Índia. Escreveu uma carta antes, selada com um adesivo em formato de folha seca. Parecia perguntar a qual mundo estávamos sobrevivendo. Essa pergunta jamais foi respondida. Ela havia me ligado da fronteira com o Himalaia no meu aniversário, ocasião em que chorei ao sentir que, exatamente do salão daquela festa, há um ano atrás, já estava vivendo aquela ligação. De um lugar intocável eu sentia tudo, em exílio. Ela dançava de azul, sem aviso, revidando o mundo como um sinal de farol. Sua fantasmagoria me acena de um oceano. Nele não há tempestades. Ela apenas está longe.

Nunca se está preparado para um último dito de pouca e suficiente coragem. Nossa sobrevivência foi até bastante tolerante com a miserável aprendizagem da juventude. Durante um encontro casual num bar, depois de sua volta, ela disse em tom de revelação "sabe, eu te amei de verdade", mas aquilo não me parecia tão incrivelmente inédito. Também não era como se tivéssemos transcendido alguma coisa. Não é para ser grande coisa. Talvez seja o amor reivindicando estranhas sortes, quando ao fim o biscoito é comido e o sachê rasgado. Resto de papel ao vento. Imagem distante. Toda vez que sou tomada pela febre, esse gaguejar no estilo de Celine, esse prelúdio entre espumas, reencontro essa Vênus em terra à vista. Nado para voltar, mas ela desaparece. Uma miragem num deserto de areia. Hoje entendo o que aqueles seus doces tentáculos não me avisaram. Entre a beira e o fundo tudo é linha, uma imensa e temerosa linha sem chegada, e o mundo não está preparado para nossas tentativas. Mas apesar de tudo, veja essa impossibilidade lógica. De bengalas não despejariam um oceano num aquário. Ainda não me capturariam, pelo menos não desta vez: estava foragida em um riso furioso que apenas eu conhecia. E ali eu corri, em direção ao tempo; pelada por um corredor, jogando sachês de açúcar para o alto. Terminariam as coisas com um som de concha.

 

 

 

 

[imagens ©ashkan honarvar]

 

 
 
Livia Valle é carioca e decidiu seguir enfim o tortuoso caminho da literatura. Formada em psicologia na UFRJ, tem um mestrado na UFF, onde atualmente faz doutorado enquanto tenta publicar escritas, entre contos e o primeiro romance, previsto para algum momento em breve ou nunca mais.