No romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, o discurso literário está, evidentemente, marcado pelo intertexto bíblico, uma vez que ele recorre às instruções já consagrados da Bíblia, a fim de melhor persuadir seu interlocutor (leitor). O intertexto bíblico, presente na obra, marca, exclusivamente, o Discurso Religioso do narrador-personagem Bentinho.  

O narrador apodera-se da palavra, assumindo o papel de locutor e instaura seu ouvinte, ou seja, o leitor, na função de alocutário, mas não de simples leitor, porque o narrador estabelece com ele um diálogo estreito, confidencial e retórico, apesar de ser persuasivo e utilizar de um discurso autoritário, qual seja, o religioso. De fato, o discurso do narrador de Dom Casmurro é característico das suas duas formações escolares, quais sejam, a de seminarista (Discurso Religioso) e a de bacharel de Direito (Discurso do Direito). É intenção do narrador provar a possível traição de Capitu com seu amigo, atenuada pelo ceticismo e pessimismo de Bentinho:

 

E bem, qualquer que seja a solução, uma cousa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me... (ASSIS, 2003, p. 128).

 

 

         Quando nos reportamos ao discurso literário, percebemos que, no romance brasileiro, desde a produção realista do século XIX, com a obra de Dom Casmurro, é bastante frequente a presença da ironia e da paródia. Além do Discurso do Direito, percebemos o Discurso Religioso, que traz uma ideologia patriarcal, cujo objetivo é manter a mulher como inferior, sem direito a voz, a defesa, e subalterna ao homem. Nesse sentido, o romance faz uso da alusão, da paródia e do intertexto bíblico, marcadamente presente pelas citações.

         Percebemos, por exemplo, no desfecho do livro, que a interpretação da citação bíblica, transcrita do livro do Eclesiástico, capítulo IX, versículo 1, torna-se ambígua. Observamos, pois: "Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti". É bom lembrar que, neste livro bíblico, há outros versículos que advertem quanto à beleza carnal e a devassidão feminina, cujo corpo é concebido como sede dos pecados e tentações. Este livro bíblico é um livro canônico apenas na Bíblia católica, porquanto Bentinho tinha se formado de acordo com a doutrina do catolicismo. Na linguagem patriarcal da bíblica, a mulher é culpada pelo pecado original e por todos os males que assolam a humanidade, porque, segundo o texto bíblico, "Foi pela mulher que começou o pecado, e é por causa dela que todos morremos" (Eclo. 25, 33).

  A nosso ver, o narrador escolheu apenas um versículo do capítulo IX do Eclesiástico, cuja temática versa sobre os ciúmes, a fim de legitimar o seu discurso de homem traído. Ora, o narrador, ao confirmar a mensagem bíblica, que afirma a traição da mulher por conta dos ciúmes do marido, ao mesmo tempo nega outro aspecto importante do texto bíblico, qual seja: a traição da mulher está condicionada aos ciúmes do marido Bentinho. Entretanto, o narrador, buscando cumplicidade com o leitor, utiliza o conectivo adversativo, comprovando a traição não com provas evidentes, concretas, mas se baseando na mera desconfiança e intuição pessoal, cuja afirmação é de que Capitu tinha dupla personalidade: (...) "Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca" (ASSIS, 2003, p. 128, grifos nossos).

No Discurso Religioso, há uma articulação entre o homem e Deus" (ORLANDI, 1996, p. 250), fazendo com que o agente portador da mensagem (sagradas escrituras) assuma o papel de sujeito que se apodera da palavra divina, isto é, o mediador do plano temporal para o mundo espiritual. Aqui, evidencia-se a dimensão da fé, tanto pessoal, quanto institucional, porque através da fé o indivíduo alcança a salvação divina. Ademais, a fé não é uma condição humana, mas é uma graça enviada por Deus. Ele em sua majestade e glória nos concede este "sentimento", "desejo", "confiança", se assim o podemos chamar para que possamos ser salvos, pois como diz as Escrituras Sagradas para os Cristãos: todo aquele que Nele crer (ou seja, tiver fé) será salvo. A fé, segundo Orlandi (1996), é um fator que comprova a não-reversibilidade, isto é, a ilusão da reversibilidade do Discurso Religioso.

         Tanto o funcionamento, quanto os sentidos do Discurso Religioso estão restringidos e salvaguardados pelo magistério superior da Igreja. É ela, pois, a detentora oficial da palavra divina (escrituras sagradas). A única responsável pela sua interpretação, pelos sacramentos (casamento, sacerdócio, e outros), pela indicação e perdão dos pecados. No caso específico do casamento, as escrituras sagradas pregam a fidelidade do casamento heterossexual. No entanto, amparado numa linguagem tradicional, há todo um poder ideológico, cujo discurso bíblico e eclesial dão margens para a inferioridade feminina, principalmente na sua relação com o homem. À época do romance, o discurso religioso é um dos principais reguladores do comportamento ético e moral da sociedade do século XVIII. Podemos perceber que, até a década de 60, muitos leitores de Dom Casmurro acusavam Capitu de ter traído Bentinho. Isso demonstra claramente a visão de mundo da época, bastante influenciada pelo pensamento judaico-cristão. De fato, o Discurso Religioso é um recurso de manipulação utilizada pelo narrador-personagem, ex-seminarista, a fim de convencer o leitor da possível traição de Capitu.

         Em Dom Casmurro, percebe-se que o discurso indireto livre relata o discurso do outro (outrem) por meio da mistura da voz do narrador com a voz da personagem, o ato do enunciado. Bentinho, Bento ou Dom Casmurro é o primeiro actante, ou seja, o sujeito da emissão. Ele se apresenta através de diversos índices dêiticos pronominais, tais como, pronomes pessoais, possessivos, demonstrativos, morfemas verbais e dos indicadores espacial e temporal.

         O Sujeito da recepção, ou seja, o alocutário (leitor), está representado por uma única marca, qual seja, o vocativo — muito utilizado no Discurso Religioso, no propósito de estabelecer comunicação, atrair (chamar) a atenção do interlocutor. Em Dom Casmurro, os vocativos se apresentam de várias formas, tais como: "leitor", "leitora", "leitor amigo", "senhor, meu amigo", "minha amiga", "tu" (ou a partir de formas verbais com sujeito oculto: imagina). Nesse sentido, o vocativo, na narrativa de Dom Casmurro, chama o leitor (alocutário) para o diálogo. Entretanto, apesar de o locutor (narrador) marcar, rigorosamente, seu diálogo com o alocutário (leitor), chamando-o sempre para a interação. O diálogo estabelecido com o leitor não é ingênuo, puramente livre de quaisquer intenções; ele é autoritário. Se, por um lado, o narrador busca convencer o leitor da possível traição de Capitu, por outro, ele deixa dúvidas, incertezas, por não dar voz a personagem, mas promove a interação com  o leitor, a fim de persuadir e convencer seu alocutário (leitor) de que aquele fora traído.

         No capítulo XLV do romance, o narrador dá o título de ABANE A CABEÇA, LEITOR, para cuja evocação utiliza-se, ao mesmo tempo do verbo no imperativo e as expressões vocativas. Essas construções — a princípio, usando tanto o vocativo, a fim de estabelecer o diálogo e, ao mesmo tempo, verbos no imperativo, ambos característicos do Discurso Religioso — estabelecem diálogos e interação e faz uso, em certos momento, da autoridade, buscando estabelecer a aproximação com seu interlocutor e convencê-lo da verdade proclamada, de modo que o início do primeiro parágrafo nada mais é do que o início do título dado:

 

Abane a cabeça leitor, faça todos os gestos de incredulidade. Chegue a deitar fora este livro, se o tédio já o não obrigou a isso antes, tudo e possível. Mas se não o fez antes e só agora, fio que torne a pegar do livro e que o abra na mesma página, sem crer por isso na veracidade do autor (ASSIS, 2003, p. 46, grifo nosso).

 

Nem eu, nem tu, nem ela, nem qualquer outra pessoa desta história poderia responder mais, tão certo é que o destino, como todos os dramaturgos, não anuncia as peripécias nem o desfecho (ASSIS, 2003, p. 70, grifo nosso).

 

Leitor, foi um relâmpago. Tão depressa alumiou a noite, como se esvaiu e a escuridão fez-se mais cerrada, pelo efeito do remorso que me ficou. Não, senhor meu amigo; algum dia, sim, é possível que componha um abreviado do que ali vi e vivi, das pessoas que tratei, dos costumes, de todo o resto. [E continua como uma forma de confissão ao seu interlocutor, num diálogo franco e aberto]. Esta sarna de escrever, quando pega aos cinquentas anos, não despega mais. (ASSIS, 2003, p. 52, excerto nosso).

 

Imagina um relógio que só tivesse pêndulo, sem mostrador, de maneira que não se vissem as horas escritas (ASSI,  2003, p. 94, grifos nossos).

 

Não, meu amigo. Venho explicar-te que tive tais ciúmes pelo que podia estar na cabeça de minha mulher, não fora ou acima dela (ASSIS, 2003, p. 98, grifo nosso).

 

Tudo acaba, leitor; é um velho truísmo, a que se pode acrescentar que nem tudo o que dura, dura muito tempo (ASSIS, 2003, p. 107, grifo nosso).

 

A leitora, que é minha amiga, abriu este livro com o fim de descansar da cavatina de ontem para a valsa de hoje, quer fechá-lo às pressas, ao ver que beiramos um abismo. Não faça isso, querida; eu mudo de rumo (ASSIS, 2003, p . 109, grifos nossos).

 

       O narrador busca com o leitor um dialogo amigo, confiável, complacente, de cumplicidade, a fim de convencê-lo de sua tese, qual seja, da possível traição de Capitu.  No excerto abaixo, ele afirma, num dialogo reiterado e confidencial:

 

Já sabes que a minha alma, por mais lacerada que tenha sido, não ficou aí para um canto como uma flor lívida e solitária (ASSIS, 2003, p. 127, grifos nossos).

 

         No Discurso Religioso, ao contrário de outros discursos, "o processo de comunicação (eu-tu-eu) praticamente desaparece. O tu (narrador) torna-se, muitas vezes, mero receptor, dependendo, é claro, do posicionamento desse receptor (leitor), diante daquilo que lhe é apresentado. Ele, o leitor, poderá intervir e, até mesmo, modificar o que está sendo dito, dependendo, é claro, se este for um "leitor modelo" que se posiciona criticamente frente ao texto. Em outras palavras, o Discurso Religioso é exclusivista, retórico, autoritário, dificilmente aberto a "mediações ou ponderações". Às vezes, ele se apresenta mascarado, no seio familiar, cuja máscara/disfarce esconde-se no nome de conselho; na Igreja, quando o detentor da fala (padre, pastor, etc.), ameaça os pecadores com o fogo do inferno, convertendo-os aos ensinamentos da Igreja (CITELLI, 2004, p. 51-52).

      Na definição de Orlandi (1996), o Discurso Religioso traz, em seus enunciados, uma ideologia, é um discurso autoritário, especificamente o de tradição judaico-cristã. Para esta autora, o Discurso Religioso não possibilita nenhuma troca de papeis na interação, ou seja, não dá lugar à noção de "reversibilidade1", mas de "ilusão de reversibilidade".

O Discurso Religioso se estabelece quando alguém (padre, pastor, pregador ou qualquer representante) "fala a voz de Deus". Ele torna-se, nessa "relação simbólica", o representante de Deus, a própria voz de Deus. Este mecanismo de apropriação faz com que o líder religioso (pregador) exerça autonomia para falar em nome daquele que é divino. Entretanto, "o representante da voz de Deus não pode modificá-la de forma alguma" (ORLANDI, 1996, p. 243-5). Desse modo, os escritos sagrados devem ser interpretados pelas autoridades eclesiásticas, à luz da hermenêutica. Com efeito, o discurso religioso é tendenciosamente nonossêmico, pois, conforme evidencia Orlandi,

 

A interpretação da própria palavra de Deus, é pois, regulada. Os sentidos não podem ser quaisquer sentidos: o discurso religioso tende fortemente para a monossemia. No cristianismo, enquanto religião institucional, a interpretação própria é a da Igreja, o texto próprio é a Bíblia, que é a revelação da palavra de Deus, o lugar próprio para a palavra é determinado segundo as diferentes cerimônias (ORLANDI, 1996, p. 246, grifos nossos).

 

Diferente do pregador (padre, pastor, etc.), o narrador de Dom Casmurro utiliza-se do texto bíblico à sua defesa, fazendo valer a única voz que deve falar como verdadeira e confiável, a de Deus. Ao fazer uso da alusão ou de versículos bíblicos, o narrador se apropria "da voz de Deus" (ORLANDI, 1996, p. 245), de modo que a voz do representante ou do narrador é apagada, evidenciando a substituição de uma voz pela outra como se uma estivesse no lugar da outra, representando a outra. Com efeito, no momento da enunciação, ao substituir a voz do narrador religioso pelo enunciado bíblico, é a voz de Deus quem fala. E ela não é o sujeito humano, passivo de pecado, mas o próprio Ser Supremo, uma vez que "há um dizer, obscuro, sempre já dito, que se fala para os homens" (ORLANDI, 1996, p. 259).

Eliade (2008) demonstra que o "sagrado" se manifesta, se apresenta, se mostra como algo absolutamente diferente do "profano". Por isso, estas duas entidades se constituem duas modalidades do ser no mundo. Por outro lado, o misticismo, caracterizado por esta autora de "sentimento religioso", não surge apenas nas igrejas, nos templos religiosos, ou nos locais sagrados, mas também se apresenta no cotidiano do ser humano.  ou coisas do tipo, mas está "espalhado pelo cotidiano. Adquire múltiplas formas e acompanha o homem em seu dia-a-dia" (ORLANDI, 1996, p. 255).

No romance Dom Casmurro (2003), há a problematização do discurso ideológico que perpassa todas as relações amorosas, conforme afirma Silviano Santiago (1978), pois a obra contextualizada apresenta o discurso retórico da burguesia, e, por isso, busca

 

[...] desmascarar certos hábitos de raciocínio, certos mecanismos de pensamento, certa benevolência que estão para sempre enraizados na cultura brasileira, na medida em que foi dirigida pelo "bacharelismo", que nada mais é, segundo Fernando de Azevedo, do que "um mecanismo de pensamento a que nos acostumara a forma retórica e livresca do ensino colonial, e pelo ensino religioso (p. 47).

 

 Em Dom Casmurro, o Discurso Religioso apresenta-se argumentativo, persuasivo, forte e inquestionável, e, por isso, autoritário, porque este texto literário apropria-se do texto sagrado, reforçando as ideias e dando maior credibilidade ao seu discurso (tese), qual seja, a traição de Capitu. Vejamos, pois, a apropriação do discurso de Bentinho, a partir do uso de enunciados bíblicos.

 

S. Pedro, que tem as chaves do céu, abriu-nos as portas dele, fez-nos entrar e, depois de tocar-nos com o báculo, recitou alguns versículos da sua primeira epístola: "As mulheres sejam sujeitas a seus maridos... Não seja o adorno delas o efeito dos cabelos eriçados ou a rendas de ouro, mas o homem que está escondido no coração... Do mesmo modo, vós, maridos, coabitai com elas, tratando-as com honra, como a vasos mais fracos e herdeiras convosco da graça da vida... Em seguida, fez sinal aos anjos, e eles entoaram um trecho do Cântico, tão concertadamente, que desmentiriam a hipótese do tenor italiano, se a execução fosse na terra; mas era no céu. [...] Ao cabo, pode ser que tudo fosse um sonho, nada mais natural a um ex-seminarista que ouviu por toda a parte latim e Escritura. A verdade que Capitu, que não sabia Escritura nem latim, decorou algumas palavras, como estas, por exemplo: "Sentei-me à sombra daquele que tanto havia desejado." Quanto às de S. Pedro, disse-me no dia seguinte que estava por tudo, que eu era a única renda e o único enfeite que jamais poria em si. Ao que eu repliquei que a minha esposa teria sempre as mais finas rendas do mundo (ASSIS, 2003, p. 93-4, grifos nossos).

 

         Trata-se aqui do Discurso Citado, claramente demarcado pelas aspas. Ele "conserva sua autonomia estrutural e semântica sem nem por isso alterar a trama linguística do contexto que o integrou" (2004, 144). O intertexto bíblico, tirado da epístola de São Pedro 3,1-9, cujo texto geralmente é usado na missa Pro Sponsis de celebração do matrimônio, é colocado na boca do próprio São Pedro, sumo pontífice da Igreja, elucidando, não tão somente a superioridade da Igreja na salvaguarda do texto bíblico, mas também como a detentora da interpretação sagrada. Para tanto, o marido tem a tutela da mulher, enquanto esta deve-lhe ser submissa, uma vez que o seu adorno deve ser "o homem que está escondido no coração...". O autor de Dom Casmurro faz uso desse enunciado legítimo do contexto eclesial, reforçando a tese da traição. O discurso do casamento, da união indissolúvel do homem e da mulher, é, portanto, retomado com o livro do Cântico dos Cânticos que, no contexto da Igreja primitiva, recebeu de Orígenes uma nova exegese alegórica, contrária à escrita e interpretação primeva, qual o enlace sexual. Aqui, quem faz uso do discurso citado é Capitu: "Sentei-me à sombra daquele que tanto havia desejado", corroborando o poder e o prestígio do sacramento do matrimônio. 

         O Cântico dos Cânticos, a partir da interpretação da Igreja, apresenta o texto-chave da união mística da alma com o Logos divino, desmistificando a interpretação primeva, onde se valoriza os aspectos físico e sexual do relacionamento de homem e mulher. Na concepção da Igreja, a mulher devia ser receptiva e passiva da alma ao poder fecundante do marido ou, quando não, do divino dentro da cultura celibatária. A personagem Capitu é o avesso dessa figura feminina. Ela tem "olhos oblíquos e dissimulados". Em outras palavras, segundo Bentinho, seus olhares, seus gestos e comportamentos denotam uma "mulher" fora dos padrões sociais exigidos à época. A partir desses pressupostos teóricos, o catolicismo desenvolveu uma teologia que atribuiu à figura masculina o termo "desobediência", em contraposição à figura feminina de "bode expiatório" ou de culpada, a causa do pecado e, consequentemente, da mortalidade. 

         O narrador finaliza o capítulo CIX, intitulado UM FILHO ÚNICO, interagindo, no propósito de persuadir o leitor: "A tudo acudíamos, segundo cumpria e urgia, coisa que não era necessário dizer, mas há leitores tão obtusos, que nada entendem, se lhes não relata tudo e o resto. Vamos ao resto" (ASSIS, 2003, p. 100). Em seguida, inicia o capítulo CX RASGOS DA INFÂNCIA que precede com o enunciado anterior, fazendo uso de processos metaficcionais: "O resto come-me ainda muitos capítulos; há vidas que os têm menos, e fazem-se ainda assim completas e acabadas" (ASSIS, 2003, p. 100).

         No capítulo, CXII, AS IMITAÇÕES DE EZEQUIEL, percebemos a utilização da alusão. Esse recurso torna o discurso religioso não tão obvio no texto, perceptível apenas na ativação do conhecimento prévio de leitura. Na verdade, o narrador faz uma analogia ao nome e à morte do profeta Ezequiel do contexto bíblico. O capítulo refere-se à comparação que o narrador-personagem faz em relação aos gestos e feições imitativas de Ezequiel em relação ao seu suposto pai, Escobar. Podemos observar, no discurso indireto livre que segue: "José Dias pediu para ver o nosso "profetazinho" (assim chamava a Ezequiel) e fez-lhe as festas do costume (p. 106, grifos nossos).

         Mais adiante, no Capítulo CXVI, FILHO DO HOMEM, não está tão clara a parodização de termos bíblicos e, por isso, não é fácil perceber a escolha do nome "Ezequiel" e a alcunha carinhosa de "profetazinho". O autor utiliza-se desta citação bíblica, utilizada no contexto bíblico, no discurso direto de José Dias, a fim de persuadir o leitor de que Ezequiel é — com bases nas "provas" não tão evidentes do narrador, possivelmente — filho de Escobar, ou seja, do "homem" que é preferível não dizer o nome. A  expressão "filho do homem" é encontrada muitas vezes, tanto no Velho como no Novo Testamento. Originalmente, foi usada como sinônimo de "homem".  No livro de Isaías (51, 12), encontramos: "Eu, eu sou aquele que vos consola; quem, pois, és tu, para que temas o homem, que é mortal, ou o filho do homem, que não passa de erva?"2.

De acordo com o contexto bíblico, a expressão FILHO DO HOMEM fora escrita primeiramente no século sexto a. C., no propósito de identificação do profeta  Ezequiel (Ez 2, 1, 3, 6), a quem Deus o chamou por este termo 93 vezes.  Ao longo do Antigo Testamento, ela aparece duas vezes no livro de Daniel (Dn 8, 17; 7, 13). Nesta última, seu significado refere-se a Cristo. No Novo Testamento, a expressão "FILHO DO HOMEM é utilizada, quando Cristo refere-se a si mesmo (Mt 8, 6 e 9, 20). No evangelho de João, o própria Jesus é quem diz: "Que será, pois, se virdes o Filho do Homem subir para o lugar onde primeiro estava?". Paulo confirma a mesma expressão em Filipenses 2:5-8.

Na narrativa de Dom Casmurro, o autor vai fazer uso desta paráfrase, cuja expressão FILHO DO HOMEM, na opinião de Bentinho, afirmava ser o "homem", Escobar, seu concorrente, e o "filho" desse "homem", Ezequiel. 

         O fato de Ezequiel ser enterrado nas mediações de Jerusalém e a utilização da expressão "Filho do homem", apontam para o contexto bíblico do profeta Ezequiel, cuja morte, segunda a tradição judaico, ocorrera por apedrejamento.

         Em termos comparativos, observamos a epígrafe inscrita no túmulo de Ezequiel. É um intertexto bíblico de Ezequiel 28: "Tu eras perfeito nos teus caminhos, desde o dia da tua criação". Bentinho tinha sido seminarista e, por isso, conhecedor das escrituras, quis dar ao seu filho o nome do profeta. Do mesmo modo, ao consultar o livro de Ezequiel, busca, nele, a inscrição que colocada no túmulo daquele que Bentinho cria não ser seu filho. O texto agora sugere ambiguidade textual, ou seja, o texto bíblico de Ezequiel 28, 15, cujo excerto remete-se a conversa de Deus com o profeta Ezequiel, deixa a dúvida ainda na cabeça do personagem-narrador e, por sua vez, no leitor. Com efeito, o desfecho do romance é assim:

 

Como quisesse verificar o texto, consultei a minha Vulgata, achei que era exato, mas tinha ainda um complemento: "Tu eras perfeito nos teus caminhos, desde o dia da tua criação". Parei e perguntei calado: "Quando seria o dia da criação de Ezequiel?" Ninguém me respondeu. Eis aí mais um mistério para ajuntar aos tantos deste mundo (ASSIS, 2003, p. 127).

 

 

Notas

 

 

1Segundo Orlandi (1996, p. 239), a reversibilidade corresponde como "a troca de papéis na interação que constitui o discurso e que o discurso constitui". Em termos de exemplificações, um determinado sujeito pode ocupar o lugar de outro. Entretanto, a irreversibilidade mantém uma relação de dissimetria entre os sujeitos, neste caso, entre os planos temporal e espiritual.

 

2Nos seguintes excertos bíblicos, também há a expressão "Filho do Homem": Jo 16:21; 25:6; 35:8; Salmos 8:4; 80:17; 144:3; Isaías 56:2).

 

 

 

Referências

 

 

ASSIS, Machado. Dom Casmurro. São Paulo: Ciranda Cultural, 2003. 

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 11. ed. São Paulo: HUCITEC, 2004.

_______________. O discurso no romance. In: _______. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 6. ed. São Paulo: HUCITEC, 2010, p. 71-210.

BÍBLIA – Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.

CITELLI, Adilson. Linguagem e Persuasão. São Paulo: Ática, 2004.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o Profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978.

 

 

setembro, 2015

 

 

 

Celso Kallarrari. Doutor em Ciências da Religião, mestre em Educação, licenciado em Letras e graduado em Teologia, membro do Conselho Editorial e Científico da Revista Mosaicum, membro do Conselho Científico da Revista NUPEX e professor do Curso de Letras da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Autor dos livros A Porta Remendada, 2003 (poesia), As Últimas Horas, 2009 (poesia), As Últimas Palavras, 2013 (poesia), O Ritual dos Chrysântemos, 2013 (romance), Fé e Razão, 2014 (ensaio).