SOPRO DA MADRUGADA

 

 

Catar plumas

No sopro da madrugada

É como referir-me ao tempo

Sem dizer nada.

 

E falar de você?

 

Nas lágrimas de sêmen

Que salpicam as calçadas

Vão ficando

Uns reflexos de saudade,

Umas antigas vontades

De ainda ter

Um lar

Um bar

Um par

E um dar sem conta

De coxas que se entrelaçam

Em carícias últimas,

Às quais não me dei franquia

Por medo de me acordar,

Assim tão moço

A ainda tão cedo,

Em susto e taquicardia.

 

Mas teu cheiro está

Nas plumas que cato

No sopro das madrugadas,

Perfilado,

Militar

E só.

 

 

 

 

 

 

PÁSSARA

 

 

Cultivei um bosque de cinzas

Na caverna turva das carnes,

No aconchego úmido da lágrima,

Pela armadilha canalha

Que tua sedução concebeu:

 

Fiz-me lebre de tiro,

Pardal de estilingues;

Com a chama vil do malogro

Gravei teu nome nas águas;

 

Saciei no covil dos minerais

A minha secura de gestos;

 

Rascunhei no couro do ventre

O mapa dos teus seios de nata;

 

Dormi minha fadiga de futuros

No útero seco da apatia.

 

(Enquanto tu, destrambelhada,

Acrobata de frenesis e êxtases,

Te expunhas à câmara dos fúteis,

No palco mórbido das gargalhadas)

 

Não devorei sombras em vão

Nesses longos dias fósseis:

 

— Chegaste cansada de luz,

Queimada de brilhos,

Voraz de sossegos —

 

Alimentei-te de alívios

Como a pássara gentil

Ao filhote implume.

 

 

 

 

 

 

TARDE DEMAIS

 

 

Pálpebras foscas

De tanto só se abrirem

Para olhos sem lampejos,

 

Abraços tristes

De tanto só apertarem

Corpos de prantos e mijos,

 

Ouvidos duros

De tanto só se fiarem

Em verbos de homens vãos,

 

Corações roucos

De tanto só repetirem

Orações a deuses vadios;

 

Há um crescer de arrogâncias e

Embustes neurastênicos donde

Brotam crianças lívidas de Sarin

E Clemências decapitadas.

 

E a Morte Masturba-se

No falo Tomahawk dos canalhas

Esporrando destruição e sangue.

 

Num toca-fitas cassete,

Junto ao freezer do boteco,

Roda um hino de bordel:

 

— Tarde demais pra não pedir mais uma!

 

 

 

 

 

 

CHANEL Nº SEU

 

 

O sono quebrou-me na noite

Em lentas quadras de acaso:

 

— As luzes de azuis doídos

Solaram vozes e tubas de blues

Em versos submersos de Orleans;

 

Ventos puseram-se a compor

Tristes Suítes, Suítes Katrinas:

Delírios! Loucos temas de amor;

 

Desassossegos foram convocados

Por guitarras de aço, árias violinas

E um trompete engasgado de horror;

Dos subterrâneos do Vaticano, uns,

Do terror de mãos amargas, outros,

Das esquinas de Brasília, mais alguns.

 

— Vou multiplicar-te de paz!

Na expectativa do gemido em ais

Ressuscitado dos pecados da maçã;

 

— Vou multiplicar-te em voz!

Por longas marginais de lascívia

Em línguas vivas de loucos sonhos;

 

— Vou multiplicar-te de luz!

No manifesto da fêmea farta e bela

Na lúdica foz da tua boca de gula;

 

Vou, e vou sempre, além do breve,

Entre sussurros de deuses libertinos

Cumprindo líquidos desejos de fogo:

 

— Vou multiplicar-te de amor!

No ruir da minha sabedoria

Nas brisas do teu hálito

De Chanel nº Seu.

 

 

 

 

 

 

MULHER

 

 

Teu olhar

É água fértil

E perene

Que germina

Gestos

E solidifica Desejos

 

Na placenta

Ecumênica

Do ar.

 

 

 

 

 

 

CORES DA NOITE

 

 

Uma poesia incerta

Vara um sinal

Vira a esquina

Com a sirene aberta,

 

Como uma ambulância verde

Levando um ferido de amor;

 

Talvez um cavaleiro de azul

Clamando por glórias perdidas;

 

Quem sabe um pintor andaluz

Uivando negras tintas ao luar;

 

Ou uma rádio-patrulha cinza

Carreando roxas dores vadias;

 

Ou ainda uma branca mulher nua

Chorando por se sentir tão pouca.

 

Uma poesia incerta

Varando o sinal

Virando a esquina

Com a sirene aberta

 

Quase sempre nada mais é

Que uma palavra nunca dita

Arrombando o vermelho da boca.

 

 

 

 

 

 

INTEMPÉRIES

 

 

Nos dias

Ela

Convoca

Borbotões de sombras

Para o show dos relâmpagos;

 

Nas tardes

Ela

Convida

Caminhões de silêncios

Para o espetáculo dos trovões;

Nas noites,

Ela,

Necessitada,

Devora pílulas de vazio

Para o concerto das lágrimas.

 

 

 

 

 

 

MEUS DESEJOS

 

 

Negocio a alma

No recesso

Dos meus credos

E compro brincos

Para corromper

Teus medos;

 

Estaciono o tempo

No encanto

Dos teus olhos

E brinco de vida

No recanto

Dos teus braços.

 

Dou-te, e gratos,

Meus desejos

Mais libidinosos

E jogo aos ratos

Meus sobejos

Para o sexo dos invejosos.

 

 

 

 

 

 

SIGILO

 

 

Com o indigno

Embainhado nas veias,

Numa tempestade de visgos,

Num vendaval de farsas,

 

Vim

Em levas de cupins

Empunhando motores.

Tracei planos de intruso,

Estratégias de silêncio,

Batalhões de injúrias,

Cargas de escórias,

Mancheias de répteis

Para um ataque de ceifas

Ao teu coração de colheitas,

Ornamentado com a solicitude

Das primaveras.

 

Predador

Acuso-me

E pago.

 

Hoje

Rezo teu nome em surdez

Com lágrimas de sigilo,

Na catedral dos tristes,

Na missa dos patéticos.

 

 

 

 

 

 

VERTIGO

 

 

Os medos morrem

E desmorrem

No vértice

Dos revelados desejos, 

Os sonhos vivem

E revivem

No vórtice

De delirantes amores;

 

No refúgio dos juntos

Os brilhos se cruzam,

Os tatos se ouvem

No carvão,

No óleo,

No giz

De uma tela de Gica

Ou na surpresa do grito

Entre

O espanto de Só Ser

E o Ser feliz.

 

Justapostos,

Tal uma reza muda,

Silêncio de alvenaria,

Certeza de cimentos,

Audácia sem véus, Mãos e Caos

Sobem aos céus:

 

Pássaro que leu gaiola

Não recusa amplidão,

Arrisca,

Arrisca a maior altura

Desafiando

As beirinhas da solidão.

 

 

 

 

 

 

OS DIAS

 

 

Tão antiquado nos modos

Que num impulso de azia

Disse à companheira

Como quem diz de amor:

 

— Solitário,

Cerco meus pensares

Com o Muro de Jerusalém

E suas fúrias de ódio.

Morro

Por tempo indeterminado

Para assassinar ausências.

 

Ela,

Entre dócil

E apavorada,

Tardou a ouvir

O que nunca entendeu.

Ainda assim, cortês,

Respondeu:

 

— Solidária,

Cubro meus sofreres

Com a Faixa de Gaza

E suas farpas de ódio.

Vivo

Por tempo não definido

Para assimilar distâncias.

 

Os dias são assim:

De dentro pra fora

Roem-nos sem fanfarras.

 

Do resto

Ocupam-se as máscaras.

 

 

 

 

 

 

ANATOMIA DE UMA AUSÊNCIA

 

 

Fui eu

Quem te moveu a língua

Quando tua voz se calou

No coração do silêncio;

 

Fui eu

Quem te abriu os dentes

Quando tua fome se fechou

Na garganta da anorexia;

 

Fui eu

Quem te brincou os seios

Quando teu prazer se ocultou

No cérebro da carência;

 

Fui eu

Quem te moveu as pernas

Quando tua vida se escondeu

Na barriga do pânico;

 

Fui eu

Quem te acionou as trompas

As tripas Quem te fez trapaças e curas

Quando teu corpo já morria

Nas trompas da agonia

Nas tripas da loucura.

 

Hoje

Tua indizível mulheridade

Angustia-me pela ausência

E torço pela tua carne rija

Anulando a minha decência

 

E teu cerne livre em lavas

Jorrando pernas abaixo,

No deflagrar do teu cio

Ante meu olhar perplexo;

 

E já não me atenho tolo

Às lembranças e sacrifícios

De quando o pardo das noites

Disfarçava a inocência

Dos nossos vícios:

 

— O beijo na boca

E o carinho no sexo.

 

 

 

 

 

[imagens ©kamil vojnar] 

 

Wander Porto nasceu a 14 de maio de 1950, em Patos de Minas, Montanhas Geraes. Ainda moço, já se cumpria em pequenos poemas de encanto, canções de maldizer, letras de músicas e alguns artigos nos jornais da cidade. No início dos 70, com amigos, editou o jornal A Bênção, que durou pouco, apenas o bastante para contaminá-lo com a virose crônica das letras. Tem dois livros publicados e esgotados — Muito prazer! — Todo meu! (de contos ligeiros) e Sopro da madrugada (de poemas). Na gaveta, sem chaves: Enquanto a banda tocava um blues (poemas); Almanarquia (contos); Sumiço — arquitetura de uma solidão (romance); Pic nic nas estrelas (teatro infantil) e Ser Humano S/A (teatro adulto).