©fernando montiel klimt | o artista
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

 

 

        

ABRAÇÃOBRADOMINICALMOÍDEMCANA

SEGUNDA-FE(I)ROZODURODEROER

TERÇARROCHOCANTEATRONCHOVELOZ

QUARTAPANDEMÔNIOZÔNIURBANDAR

QUINTAMBORRASCALOSIDADEBAR

SEXTALAÇOCOCELULARÁPIOREFRESCO

SÁBADOIDOSEGUIDASUGASTRITORRESMO

 

 

EXAME DE CONSCIÊNCIA

 

1. QUANTAS PALAVRAS HÁ NO TEXTO ACIMA? (  ) 45  (  ) 40  (  ) 39  (  ) 46

 

2. QUAL É O SUJEITO DE "ABRAÇÃO"? 

 

3. ESSE SUJEITO SOFRE DE GASTRITE POR CAUSA DO DOMINGO MOÍDO EM CANA OU DO TORRESMO? OU DE AMBOS?

 

4. A PALAVRA "DEBAR" ESTÁ FORA DE USO? AFINAL: EXISTE PALAVRA QUE NÃO SE PODE USAR? POR QUÊ?

 

5. QUAL A LINHA NARRATIVA QUE TRADUZ PRA VOCÊ SER O TRABALHO UM SOCO NA CARA?

 

6. VOCÊ CONHECE ALGUM ESCRITOR QUE TEM CALO DE TANTO ESCREVER?

 

7. QUE INSTRUMENTO É USADO, CONFORME O TEXTO, PRA MARCAR ENCONTRO?

 

8. POR QUE, NA SUA OPINIÃO, O TRABALHO É UM "TEATRONCHOVELOZ"?

 

9. PROCURE NO DICIONÁRIO O SIGNIFICADO DE "TALAÇO". PROCUROU? AGORA RESPONDA: O TERMO COMBINA NO TEXTO COM O QUÊ?

 

10.  SE VOCÊ DISCORDAR QUE O TEXTO ACIMA SEJA UM ROMANCE, ENTÃO DIGA: EM NÍVEL DE GÊNERO, ELE SERIA O QUE: (   ) UM POEMA PÓS-CONCRETO? (  ) HOMENAGEM BARATA A JAMES JOYCE/IRMÃOS CAMPOS?  (  ) UMA AFRONTA À GRAMÁTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA?  (  ) ELE NÃO SERIA NADA ALÉM DE UM TEXTO?  (  ) UMA PROSA EM PROSA? 

 

11. QUAL SERÁ, NA SUA OPINIÃO, A REAÇÃO DE UM ACADÊMICO AO LER ESSE TEXTO? ( ) ELE TERÁ UM INFARTO  (  ) ELE TERÁ UM ORGASMO METAFÍSICO  (  ) ELE TERÁ "JIRIZA" DO AUTOR  (  )   

 

12. VOCÊ ACHA QUE O POVÃO NÃO LÊ POR QUE: (  ) QUEM TRABALHA MUITO PRA COMPRAR O PÃO DE CADA DIA NÃO TEM DINHEIRO PRA COMPRAR LIVRO, REVISTA, JORNAL  (  ) ELE, O POVÃO, NÃO SABE LER  (  ) LITERATURA NÃO É UM "BISCOITO FINO", COMO QUERIA OSWALD DE ANDRADE  (  ) O ROMANCE DOS DIAS NÃO É UMA OBRA SERTANOJA, NÃO TEM RITMO DE PAGODE E NÃO ENTRA NO CONTEXTO DE NOVELA DA REDE GLOBO (  )  NENHUMA DAS ALTERNATIVAS.

 

 

 

 

 

  

O livro Rio abaixo: vaqueiros e mulheres de muque (Mazza Edições, 2014), de Domingos Diniz, contém simplicidade sábia e lúcida, comovente e convincente, sem qualquer apelação às armadilhas do imaginário ou refúgio na sombra fértil de Guimarães Rosa. Em seus relatos singelos tem-se a materialização linguística e antropológica de pessoas vivenciadas. Há descrições que somente são possíveis graças à vivência in loco, hereditária e prazerosa, com a descoberta do que foi vida e faz falta. Essa vivenciação é fiel às origens do autor, que alia a este fato uma experiência de pelo menos oito décadas na região, onde também nasceu. Por isso ela é sem maquiagem,  trabalho de um vivenciador das situações incisivas, não de um intérprete que só não foi também vaqueiro por lhe faltar "a coragem de enfrentar, olhos nos olhos, o barbatão bravio na labuta diária".

Domingos Diniz tem o jeito de escrever com máxima simplicidade e integra, nesse ofício, posto que sincera, comoção profunda, sem o simplismo galopante das afetações transigentes que marcam livros feitos para cumprir aventuras existenciais questionáveis.

Um livro bonito na crueza poética de ser digno de sua própria origem barranco-sertaneja, que evoca nomes vivenciados como exemplos sagrados de vida. São relatos cheios de encantamento de quem sempre viveu atordoado pela poesia são-franciscana às margens do sertão do Rio da Unidade Nacional.

Um livro cuja leitura ensina a ser (mais) gente sem se resignar com as perdas e danos, pois reconstrói, com o labor da palavra, a força viva de quem "amansa os oxímoros, como se amansa uma potranca xucra".

Obra que restaura a memória de Minas no fulgor das tradições das fazendas Marambaia, Floresta, Viveiros, Coqueiros, Mangueira, São Domingos e São José. Baiano, Cesário, Chico, Mariano, Elpídio, Heitor, Inácio Veio, Júlio, Manoel Cabrito, Pacífico, Randolfo, Sabininho, Seu Vicente, Topeu, não são personagens fictícios, mas resgatados parceiros de vida do autor em sua infância em Pirapora e no tempo-será da história de cada um, que tem suas performances sertanejas narradas com a nitidez da consciência cristalizada na memória e a brevidade que aprofunda o conhecimento de uma região dividida entre gado e peixe, aboio e lundu, superstições e fetiches, honradez pessoal e desafios dos ofícios, criação de prole e longevidade fértil, lembranças e religiosidade, sabedoria e crendices, com o zelo de viajar em canoa levando-se "um pedaço de fumo pro compadre"; com o Baiano "berrando todo molhado de orvalho" e a "simpatia da formiga-de-onça", com a certeza de que "a gente sai do sertão, mas o sertão não sai de dentro da gente". Nas andanças de cada pessoa-sertão, pessoa-rio, a história inquestionável: homem durão ou mulher parideira e pau-pra-toda-obra, por isso  "de muque", "ali ele/ela plantou a própria vida". E o encanto de cada um(a), nesse rincão de água então fartando a seara ribeirinha e de sol no lombo dos estouros de boiadas, é fazer durar o máximo a existência pelejada felizmente.

As páginas 36 e seguinte são exemplares para se saborear a descrição de filme rural: o autor "assunta" o ofício de vaqueiro com memória fotográfica. Excerto: Só se ouviam o estalar de galhos quebrados e o bater dos cascos de bois e cavalos no chão duro. O mais bravo, um boi de quatro anos, curraleiro pé-duro, cumbuco, com as pontas dos chifres levemente voltadas para trás, peador fino, castanho-estrelo, rompeu debaixo da barba do cavalo de Compadre Mariano, que o seguiu emparelhado. O boi corria roçando o lombo nos paus-terras queimados, sujando-se de carvão. Entrou num mato de pura vaqueta. Compadre Mariano emparelhado com ele. O boi pegou a beira do córrego num tabocal fechado. O vaqueiro encostado nele. Com a vara de ferrão na mão e gritando. Atravessaram o córrego, subiram um barrancão e ganharam um cerrado fechado de tingui, gonçalo, sicupira branca e miroró, na beira da linha, quando passava o trem cargueiro apitando numa curva perigosa. O boi refugou, virou de banda, pra direita, prancheou, batendo com a anca no chão. Consertou o corpo e a carreira foi a mesma. O boi parecia ter asas nos pés, voava.Vaqueiro e cavalo relampagueavam. (...) O vaqueiro cravou as esporas no cavalo e chicoteou-lhe a anca. Cavalo e boi eram dois coriscos no meio da vargem.

Impressiona — uma vez que comovente em todo o livro composto por textos curtos mas arrebatadores — o tom narrativo de mineiridade com destaques visuais e sinestésicos a visgar (de visgo) os sentidos do leitor com descrições telúricas, meteorológicas, paisagísticas, zoológicas e existenciais, que expõem a beleza crua de uma Pirapora (e por extensão aquático-sertaneja, Buritizeiro e Várzea da Palma, Januária e Juazeiro) inteira no tempo e no espaço por um período de no mínimo um século de vivenciações e acontecências em meio à natureza ecológica.

Cantos de aves misturam-se com auroras/entardeceres reluzentes; vacas que dão popetas e trovões soturnos em meio às nuvens; ludicidade infantil dada com verismo e com boi-de-sabuco e boi-de-osso e jandaias de papo sujo cortando o cacho de arroz em voo rasante; com o engolir de piabinhas vivas para se aprender a nadar, antes do desafio "lá no Formoso, no São Domingos". Por exemplo.

Na segunda parte do livro o autor trata de mulheres pelejeiras, aquelas que por uma vida inteira labutam muito, que criam muque, ou seja, enrijecem os músculos e se destacam pela força física em tarefas intermitentes de trabalho duro nas fazendas ou nas cidades onde viviam. Muque é um termo que vigorou no conhecimento público interiorano até mais ou menos a década de 1960, depois "sumiu do mapa", deixou de significar o que hoje em dia se traduziria por "sarado", gozar de boa saúde, ter boa performance corporal. Ter muque era, então, ter (muitos) calos nas mãos e na alma.

As mulheres de muque são conhecidas na região de Pirapora pelo nome de Sá mais alguma coisa: Sá Ana Gorda era a que "sabia muitas histórias dos remeiros, aqueles que empurravam a embarcação com os varejões"; era lavadeira e tinha uma particularidade religiosa interessante: como tinha "de comungar todos os domingos", devota que era da Ordem Terceira Franciscana, mas sem o hábito de pecar, brigava sempre "com o diabo da Merência pra ter o que contar ao padre". Sá Ana Segunda-Feira era uma velha trabalhadeira de quem não se sabia o nome verdadeiro, tampouco o lugar de sua origem. Uma de suas atividades mais identificadas por todos era a de comandar a torrefação de café na casa de dona Umbelina, mãe de Domingos Diniz. Ela dizia: "Se a gente torra café e bebe água ou lava as mãos na água fria, meu fio, a gente estopora. Vira a cara pra trás". Sá Branca ou Tia Branca "era uma mulata forte, rude, alta, gorda", "trabalhava por dois, três homens no eito na roça ou no piloto da canoa rio acima, rio abaixo." Sua história de vida é o trabalho, sentencia o autor. Sá Martinha "era mulher inteligente, espirituosa, tinha resposta para tudo", aquela que nasceu "cuiuda" e morreria "cuiuda", ou seja, sem ser castrada, mas graúda. Sant'ônia Pega ou Sant'ônia Lambança tinha por diferencial saber matar uma galinha, cuja descrição é tipicamente mineira, de um costume doméstico que paulatinamente foi deixando de ser praticado nas casas, substituído pelas facilidades do "frango resfriado", em pedaços ou já assado na "televisão de cachorro", vendido em supermercados ou mercearias de bairro. "Quando alguém a chamava de doida, ela retrucava: — Eu sou doida, mas tenho juízo". Maria Cumprida era "magra, muito comprida, parecendo uma vergôntea de embaúba", morava na beira de uma vereda, que hoje tem seu nome. Seus companheiros eram franguinhos, uma cachorrinha também muito magra, os leitõezinhos, o gado do Sô Fuloriano. "Batia enxada jacaré o dia inteirinho naquela terra dura". Bebia fedegoso adoçado com garapa da cana que ela mesma plantava e batia na pedra. Lumiava a noite com candiero de azeite de mamona. Não gostou de amar, cujo homem escolhido para essa decepção apareceu dispetrechado, sem ter o que priquito roer, dando tapa na lua". Ele era simplesmente "um de-comê-perdido", o porquera. Certo dia o homem "anoiteceu e num amanheceu. Isguaritou serra abaixo. Maria Cumprida não gostava de cidade: "aquele mundão de gente (...) parecendo abelha arapuá".

Após um aboio comovente, no "Arremate" que faz para finalizar o livro Domingos Diniz elenca nomes de dezenas de vaqueiros, cujas lembranças ecoam "dos altos Gerais e das beiradas do São Francisco". Seus cognomes espreitam a intimidade valente, durona, mas cheia de humanismo e sabedoria herdada em meio aos buritizais, caatingas, vargens e "no cerrado fechado dos tempos". Outra nomeação é feita para rememorar as reses pelas bandas do sertão: explica o autor que dava-se o nome à novilha, ao parir pela primeira vez. Que até então, permanecia o nome da vaca/mãe. Os nomes eram escolhidos "ligados às coisas e animais do cotidiano com os quais o vaqueiro labutava", ou por achar bonito o nome, ou pela cor da rês, ou pela conformação dos chifres. Manoel  Cabrito foi a Belo Horizonte e por achar bonito o nome da avenida Afonso Pena, ao chegar à Marambaia deu a uma vaca o nome de Aponsopena. Naquela fazenda viveram a Lamparina, a Papuá, a Boa Sorte, a Pechincha, a Sacacura, a Caiçara, a Leviana, a Argentina, a Maria Canela, a Mimosa, a Zoio Preto, a Fumaça...

Há muito mais encanto em Rio abaixo: vaqueiros e mulheres de muque desse autor folclorista e de ampla e vertical cultura mineira, a quem o Estado devia ter mais por uma de suas referências máximas, haja vista uma vida toda ela dedicada aos estudos, pesquisas, registros e legado que torna Minas mais rica, importante e viva para os mineiros e o Brasil. 

 

 

 

 

 

        

O Mar no Vidro é um romance que envolve o leitor como visgo: à leveza da narrativa aliam-se uma elegância autoral rara e descrições bem urdidas; personagens que se constroem por si mesmas com performances cheias de vida; reflexões inteligentes e consentâneas ao contexto, que emana de uma situação bucólico-urbana em que predominam tradições rurais muito mineiras, valores humanos discutidos com profundidade por um autor atento e culto, que pule um "cristal na memória". Ressalte-se a linguagem escorreita, própria de quem conhece muito bem os desafios da língua. Luiz Almeida não tem por objetivo ousar em qualquer aspecto do romance, enquanto gênero, que, por isso, se caracteriza por inserido como de forma tradicional, mas é justo no desenvolvimento do seu teor antes de tudo humanista que o romance se qualifica com estilo possante, leve, incisivo na consistência de seus argumentos. A obra corrobora a certeza de que seu autor não é um simples narrador de acontecimentos, mas um escritor de muito boa cepa que se lança a narrar com transcendência a existência humana posta em desafios de naturezas diversas, como as de injunções psicológicas (sem psicologismo), religiosas, (i)materiais, ideológicas. Por isso, O Mar  no Vidro transcende os meros reflexos subjetivos em relação à vida mesma e à vida das personagens. E se inclui no naipe dos bons lançamentos livrescos atuais, de que este país carece, à parte os suspeitos best-sellers e a enxurrada que goza do poder de marketing do mercado editorial. A seguir, uma conversa com o autor.

 

 

Márcio Almeida – Qual é a sua formação de autor?

 

Luiz Almeida – Talvez o melhor a dizer seja "autor como leitor". Formado em Engenharia Química, não me qualifiquei em termos acadêmicos na área de Letras. Assisti, sim, ao longo de décadas, a palestras de escritores, filósofos, intelectuais em geral, nomes de destaque na cultura brasileira, muitos dos quais já nos deixaram. Apresento-me, então, como leitor de obras literárias, principalmente dos clássicos, portugueses e brasileiros, e também da literatura ocidental. Essa herança cultural que nos perpassa é que nos faz ser e criar, ainda que, como é meu caso, seja um modesto artífice de uma obra singela.

 

 

MA – Que escritores serviram de referência para a produção de O Mar no Vidro?

 

LA – Especificamente, meu romance é tributário dos grandes narradores da nossa literatura ocidental. Seria o caso de citar, por exemplo, D. H. Lawrence e seu romance O Arco-íris; citar inevitavelmente Tolstoi, Proust, Hugo, Balzac, Eça, Camilo, Thomas Mann; citar Afrânio Peixoto, Gilberto Amado, Aníbal Machado, Lúcio Cardoso. De Machado, Euclides, Rosa e Drummond nunca estamos livres quando nos aventuramos na página em branco. O herói, o protagonista, de O Mar no Vidro filia-se a uma tradição literária que nos deu grandes realizações estéticas. É ele o tipo do herói ingênuo, se assim pudermos designá-lo, ingênuo no sentido específico de não compactuar com a ordem vigente no mundo em que transita. Ingênuo, no sentido de uma inocência arraigada na convicção da grandeza da vida humana, inocência apaixonada pela vida. Assim, esse herói, quixotesco sem dúvida, afasta-se em essência do herói épico, vencedor e vitorioso. O herói ingênuo não vence as batalhas seculares, porque rejeita lançar mão das armas que, precipuamente, desacreditam seus ideais. Herói na contramão da sociedade competitiva, erguida sobre valores flexíveis e oportunistas, em que a verdade é argumento anacrônico e passadista. Herói cujas vértebras não são o sucesso, a riqueza, o poder e a glória. Esses valores, tão cobiçados pelo homem contemporâneo, não o representam nem o seduzem. Mas nem por isso, um herói apático, silencioso, misantropo, que se furta à luta. Herói, por fim, que larga na sua trajetória de vida um rastro de luz e esperança: outros seguirão seus passos, empunharão as antigas bandeiras para a conquista de um mundo justo, por mais frágil que venha se mostrando essa utopia ao longo dos séculos.

 

 

MA – Como explica a metáfora do título do seu romance?

 

LA – O gigantismo do mar preso dentro de um pequeno vidro — uma pequena "amostra" do mar para os que nunca o viram. O infinito, o incomensurável, tantas vezes sentido e pressentido pela alma e abrigado no corpo frágil e efêmero do ser humano. A inquietude inata do ser vivo, mar insone, debatendo-se contra rochedos, avançando sobre as praias, ânsia de sair de si, erguer-se ao céu, mar aéreo; entretanto, sempre acorrentado ao destino de ser mar, de ser hóspede do tempo, enjaulado na própria existência.

 

 

MA – Como classificaria seu romance em nível de gênero?

 

LA – Penso no romance tradicional, uma longa história com um fio narrativo bem consistente, sem maiores experimentações estéticas. Não tenho domínio da moderna teoria literária, mas o conceito de dialogismo — uma multiplicidade de vozes que se enfrentam num texto — se aplicaria à minha narrativa: as diversas personagens que tecem a história de O Mar no Vidro, suas convicções e ilusões, colidem o tempo todo. O próprio tempo histórico em que se desenrola a narrativa não deixa de estar eivado de antagonismos e contradições.

 

 

MA – Na sua opinião, o mistério das duas imagens sagradas é contumazmente resolvido pela narrativa? Que dica daria ao leitor para "perseguir" as perscrutações de que personagem?

 

LA – Penso que sim. Encontra-se, numa velha casa-grande de uma fazenda centenária, uma pequena caixa de madeira onde estão guardadas peças de um presépio. Na base da imagem de Nossa Senhora, foi gravado um "M" e na de São José um "A". São as iniciais dos nomes daqueles cujas histórias de vida, profundamente entrelaçadas, sustentarão todo o romance.

 

 

MA – Se tivesse que comparar, com quem Alonso e Aninha teriam relação de identidade?

 

LA – A escritora Maria Amorim, que me deu a honra de escrever a quarta capa, disse que a relação Alonso-Aninha não tem contornos precisos, oscila entre o fraterno e o amor verdadeiro, algo utópica, como gostaríamos que fossem algumas de nossas relações humanas. Essas palavras me levam a tantos mistérios antigos dos quais me abeirei sem saber o que eram, eram verdadeiros enigmas, relações como essa, ricas, inconsistentes, ambíguas, profundas, verdadeiras árvores que não se abraçaram entre galhos, copas que não vieram a florir entrelaçadas, mas cujas raízes, apaixonadas, se amaram no mais profundo subterrâneo. Aquelas antigas famílias do séc. XIX… quantos conflitos, quantas fatalidades, quantas resignações! Por outro lado, mantive-me fiel a uma convicção nem sempre fácil de declarar: a resistência das mulheres aos infortúnios! São as mulheres as vértebras dessa história que conto, porque assim as compreendi ao longo da vida. Para mim, a fragilidade da mulher, suas lágrimas e emoções tão à flor da pele, têm valor inverso ao que lhes atribuem normalmente os homens.

 

 

MA – Ao afirmar, no desfecho do romance, que "a história da vida pode ser escrita como forma de eternizar a efêmera aventura humana", você faz apologia do neorrealismo com uma cutucada no existencialismo light ou kamuseano?

 

LA – Essa é uma questão de fundo, intrigante e rica de desdobramentos. Estamos sempre diante das graves questões da existência: elas nos inquirem continuamente, nos forçam o pensamento em múltiplas direções de busca de sentido. Há um belo verso de Drummond que diz: "Amor, descoberta de sentido no absurdo de existir". Estamos continuamente diante do absurdo da vida, o homem como Sísifo de que nos fala Camus, incessante esforço de levar ao alto a pedra que voltará a rolar, inevitavelmente, encosta abaixo. Só quando embriagados pelos mistérios do amor, encontramos sentido no mundo. Assim penso que é a luta do protagonista de O Mar no Vidro — a busca de amor, a busca de sentido para a existência. No fim das contas, nossa vida, cada vida, a despeito do imenso esforço na busca da felicidade, não passa de uma narrativa, um pequeno trecho da Grande Narrativa da História. Quando o escritor constrói sua ficção, por mais fantasia de que lance mão, ele não deixa de estar imerso no realismo.

 

 

setembro, 2014

 

 

CORRESPONDÊNCIA PARA ESTA SEÇÃO

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