A dona do nada

 

 

A dona cuida de tudo é chamada dona de que de quem por quê

Dizem dona de casa mulher de fulano

Bem no íntimo sabe que não é dona de nada nem dela mesma

Passa a vida se dedicando à limpeza à cozinha tudo do melhor jeito

Sempre disponível aos íntimos desejos

Agora que escreve este verso está numa ampola cheia de remédios

O amortecimento da raiva da desforra deve ser detido a borracha tem que ser passada

Como?

Nela aqui sem vida com dor

Os cabelos como fios de arame sem cor naquele branco encardido

As rugas se amontoando num rosto que foi belo

Nada além de olhos estranhos e mente enrolada

Perguntam ou dão conselhos

Marido bom trabalhador casa arrumada

O que mais vai querer

 

 

 

 

 

 

Olhar na Escuridão

 

 

Na escuridão daquela noite sem estrelas

Vi teus olhos a brilhar.

O brilho dos teus olhos brilhou nos meus.

Meus olhos se tornaram os teus.

Hoje vejo com teus olhos

Que sempre foram os meus

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Uma casa simples

Apenas o necessário

Surpreende a outra

Carregada de objetos

Adquiridos com

Sacrifício e discórdia.

 

 

 

 

 

*

 

 

Única e complexa a vida

Resultado de infinita espera

Acaso governando o acerto

Criação de ordem na grande desordem

 

 

 

 

 

 

Arrepio de estar viva / 1970

 

 

O tempo que tive ao me olhar e onde me encontrava

Foram frestas de luz quando o sol se move

Pisava em areia movediça

Homens soltos e ensanguentados pelo corredor

Ninguém se olhava se falava

Urinava e defecava com uma metralhadora apontada

Com os olhos do soldado pousados sobre mim

 

 

 

 

 

 

Ainda me encontro no confinamento

 

 

Nunca saí da prisão

Na nave do maternal corpo

No berço nos braços nos beijos

No silêncio nos movimentos

No choro riso saciado ou faminto

Membro novo da raça

Costumes cultura hábitos...

Da terra onde nasceste.

 

Difícil e feroz exercício... flexibilidade

Boneco doando novas habilidades

Em jardins bosques e florestas

 

A princípio horizontal após um tempo

O meio assento

Engatinha como o animal

Inicia movimentos verticais

Levanta os braços pega objetos

O bebê está um azougue

 

Na seguinte primavera onde tudo floresce

As folhas não caem... firmes brilhantes doam luz energia

Força ao bebê amedrontado pois muito já se feriu

 

De pé o novo habitante

Erguido para o céu sabe que confinado está à vida

Caminhará entre florestas na prisão vertical

Mas sabe que ser pássaro é para sempre

Ter ninho passageiro no horizonte horizontal

Verbo.

 

 

 
 
 

Aí,  o que me dizes de ser mulher?

 

 

A noivinha branca com a ponta da cauda negra vendo

o gelo cair do céu e matar o curinga.

Sentada na borda-do-campo com um jardim inteiro florido

vive em culturas

Uma matando a outra

Excluída nua ou vestida sempre aquele objeto de desejo

Amada ou apedrejada

 

Aí, o que me dizes de ser mulher?

Movida levada pelo tempo maduro

Chegança apertada alma extravasada

Corpo adormecido nos nervos já de plásticos

Sentimentos múltiplos e humilhação guardada na alma furada.

Quimera és o tempo todo

Soltamos fogo pelas ventas que ardem de indignação

 

O pudor e fraqueza que ainda temos nas mãos

Guardam o odor das espécies

Entendem bem agora as lutas travadas

 

Maria Madalena confessa

Não houve brilho houve sim um pesar forte e cortante

Como o trovão prevê o raio!

Maria sabe pouca opção ter

Acata e silencia a dor com o coração aflito

Em canteiro inteiro brotado!

 

Nos olhos do mar mira, sabe que será invertida

Pois é assim que o abuso religioso o faz

Excluída como nós o fomos por séculos

 

Arrastadas ao inferno por ser mulher

Agora... O gozo último a gargalhada afinal

Afinal sabes o que é ser mulher

 

 

 

 

 

 

Completas

 

 

Tem folia todo dia bem aqui na capital

Ao cair da noite ele sabia — o outro também

Só nós não entendemos "Que navegar é preciso!"

Existe areia em nossos olhos, mas não somos míopes!

 

O corpo com prazer igual como fera que não sabe que é fera.

Pobres cavalos, com a emoção perturbada galopam as forças?

Ainda vais correr muito. Só a vaidade te exaspera?

 

Mundano nesse espaço lotado de informações desalmadas?

Com esses hábitos embrutecidos?

Esqueces que passageiros são os cabelos e os lagos.

Como mudar a tela do murmurante que se diz mutante?

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Vigorando cor, verde viço e frescor.

Rimos da noite prateando a terra com sua luz singular.

Certeza alguma. Nada!

Nem bem sonho e nunca lembro

Espelho molhado embaça certeza.

Poupe-me!

Qual é repolho, sorrindo?

Verde calmo em mar de verduras.

 

 

 

 

 

 

 

*

 

 

No íntimo do poder

O terror implodia

Em lugares tenebrosos

Muitos viveram

Vendo a face oculta

Do homem lobisomem

 

 

31, março, 2014

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Acredito nos sonhos

Milagres escondidos

Em nós mesmos.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Muitos medos nascem da fadiga e solidão

Calor subindo ao peito por querer gostar sem medo

O bambu morto aguarda a mão que vai colocá-lo na fogueira

Amor é segredo devaneio pueril e sutil ao sentir imaginar

Ânsia do homem ao desentendimento de existir

 

 

 

[imagens ©neuza ladeira ]

 
 
 
 

Neuza Ladeira (Belo Horizonte/MG, 1950). Poeta e artista plástica, passou a infância na zona da mata, interior de Minas Gerais. Adolescente, voltou a Belo Horizonte, onde começou a militar nos movimentos politicos. Entrou para a clandestinidade, andando pelo mundo de São Paulo e do Rio de Janeiro, pasárgada de origem de sua tortura como prisioneira politica na ditadura militar. Sua experiência de vida acaba por revelar uma pessoa em busca de uma liberdade somente encontrada na poesia e na pintura. Publicou, entre outros, Opúsculos (Belo Horizonte: Anome Livros, 2003), 212 páginas grafadas de imagens e letras. Fez capas para muitos livros de poesia e de ficção, além de exposições nos mais diferentes lugares. Alguns deles: Assembleia Legislativa de Minas Gerais, Prefeitura de Belo Horizonte e Teatro da Cidade (BH). Mais informações: www.neuzaladeira.com.br | neuzaladeirapinturas.blogspot.com.br.

 

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