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PÁSSARO

 

Penso que, em algum canto do mundo, alguém escreve sobre um escritor de pijama, sentado numa cadeira marrom, em frente à tela branca do computador onde pisca o prompt do bloqueio criativo. Esse estrangeiro das minhas imediações anseia por um argumento original, mas só consegue se fixar no do escritor sentado numa cadeira reclinável marrom que tenta extrair, da aridez salubre da mente, uma ideia que faça o prompt saltar adiante.

 

Penso então em escrever sobre isso, mas, ao escrever sobre esse alguém, passo consequentemente a escrever também sobre o escritor em frente à tela branca do computador, algemado pelo bloqueio criativo. Estaria, portanto, aferrando-me a dois argumentos antagônicos. O de alguém que escreve e o de alguém que não consegue escrever. Fato que naturalmente me neutralizaria, e seria logo eu o escritor de pijama, sentado na cadeira marrom, em frente à tela branca do computador onde pisca o prompt do bloqueio criativo. O estrangeiro, desse modo, escreveria sobre mim.

 

Encaro o prompt que pisca, detido. Faz frio nessa noite, fecho o primeiro botão do pijama. Tento pensar num novo argumento, porém não consigo me desligar da ideia desse alguém que escreve sobre um escritor de pijama. Talvez se caminhasse um pouco, cogito, tomasse um copo d’água, desejo. Esboço o movimento de impulsão, e eis que me descubro imobilizado, colado à pele do estofado da cadeira marrom. Estou preso, pois não disponho de enredo além da condição de encarar à tela branca do computador onde pisca o prompt. Sou resumido a uma frase, que é o meu cerco.

 

Esse alguém controla meu alvedrio, delimitando-me à sua incapacidade de avançar a inspiração. Consigo me reclinar, entretanto não me separar da cadeira marrom, em frente à tela branca do computador. Isso não foi escrito, não posso existir onde não há literatura. Tento escrever, mas me impede o bloqueio criativo. Sou uma ave à vista da sua onipresença, sentenciada por esse estrangeiro que capturou um argumento e desconhece como tratá-lo. Não canto o canto que seria o meu. Uma ausência que não consegue ser igual a nenhuma palavra.

 

Penso, num ato de resistência, em escrever contra esse alguém, causando um reação motriz que o forçasse a descondensar o argumento num fluxo narrativo que me pusesse em liberdade. De modo que, embaixo da cadeira marrom, abriria-se a celestial imensidão azul, onde eu planaria, teso de uma asa a outra, no corpo acolhedor de uma corrente de ar. E cantaria, para mim, a canção que o silêncio canta. A que estou ouvindo agora.

 

Ocorre que, mesmo que algo soe para mim, é a representação do que seria um canto, uma ilusão de liberdade ocupando o interior do cerco, que se esvai à medida que tentar reagir evidencia-se um logro, dado que qualquer ação minha seria, automaticamente, a incidência desse alguém em prol do desdobramento do argumento, mas o estrangeiro só consegue se fixar no do escritor de pijama que tenta extrair, da aridez salubre da mente, uma ideia que faça o prompt saltar adiante. Sigo retido na cadeira marrom circundado pelo campo branco.

 

Não há saída, senão a existência na extensão de uma frase. Insistir no pensamento de transpor esse limite seria unicamente um exercício de repetição acerca da periferia onde a história não segue. Não há nada do outro lado, afinal. Não serei um personagem bem construído como gostaria, quiçá plumoso, uma vez que o estrangeiro não dispõe de instrumentos artísticos para me equipar desse modo. Um rascunho, isso basta. Tenho de me contentar com o que sou e parar de contestar essa condição. Tentar inventar quem me inventa seria um ato de anulação, no fim das contas, pois a impertinência acabaria por enfastiar esse alguém e levar o prompt a saltar para trás.

 

Aflito, penso que devo parar de pensar e, na inclinação do autoconselho, eis que penso mais uma vez, no leitor. Exatamente porque, acima desse alguém que escreve sobre um escritor, está o leitor e sua capacidade associativa de transformação. A cada um que chegou até aqui o estrangeiro é percebido de uma maneira distinta, o escritor é uma conexão a uma imagem de alguém que escreve ou não consegue escrever, eu ou qualquer outro num canto do mundo. Feche os olhos, leitor, e pense num pássaro. Consegue ouvir o seu canto agora, o som que o silêncio canta?

 

O leitor é minha liberdade, meu salvo-conduto. E, enfim, chega-se ao fim. Ou ao começo. Ou à conclusão de que nada se passou, visto que a despesa do argumento não faz disso um conto de fato, uma história de verdade.

 

Hoje um pássaro caiu morto do céu e se condensou numa pedra entre os meus pés. Penso que seria um argumento original.

 

 

 

 
agosto, 2014
 
 

 

Sérgio Tavares (Niterói/RJ, 1978) é escritor e jornalista. Escreveu os livros Queda da Própria Altura (Confraria do Vento), finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e Cavala (Record), vencedor do Prêmio Sesc Nacional de Literatura - Categoria Contos. Tem textos publicados em jornais, revistas e sites literários nacionais e internacionais.

 

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