©josh sommers
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Ana Cecília assobiava o corpo

balançava os cachos

sorria a rua

 

Ana Cecília saboreava madrugadas

mordiscava pescoços

sorria a rua

 

Ana Cecília estupidificava o cinza

zombava de mesquinhez

sonhava de mares e trovões coloridos

pensava em desejos tantos transcorridos

enquanto dava o sinal para o ônibus do trabalho

e

ninguém dava sinal para o ônibus como Ana Cecília

 

Soltava o peito, gritava vida, trepava fogo

tomava meu corpo como seu, dona de dentro

e brincávamos até latejarmos vulcões ardentes em uníssono

e perdermos a respiração em uníssono

para nossas peles nunca mais desgrudarmos, nunca, nunca mais, até o fim dos tempos

 

Deliciava-se Ana Cecília de recuperar o fôlego lentamente

pausadamente

Fazia parte do seu sentido

Pois, dizia, fumegantes vulcões ardentes

demoram a recuperar o fôlego

 

E eu, o idiota, eu, o imbecil, a deixei partir

Demorei a compreender que aquele respirar

o esfriamento e o fôlego

o aquietamento

também faziam parte da comunhão

 

Ana Cecília assobiava e balançava

sorria a rua

Ah, mas faz muito tempo.

 

 

respiro de Ana Cecília

 

*

 

 

 

 

 

 

quando o mundo fosse doce

talvez despíssemos nossas peles,

navegaríamos mais leves do que nossas capas

por sobre nossas almas

seríamos uno

estaríamos vivos

você estaria junto

estaríamos vivos

eu estaria por completo

estaríamos vivos

não passaríamos somente de um lado para o outro

de uma pessoa para outra

de um momento oco para outro

estaríamos juntos

eu seria feliz

estaríamos vivos

 

quando vivos

 

*

 

 

 

 

 

 

Muito tempo atrás, dois milésimos de segundos atrás, o corpo poderia não ter saltado, os pés poderiam não ter perdido contato, a respiração ainda estaria contida. O certo, porém, não haveria soluções, não haveria expectativas inesperadas, desagradabilidades impressionantes, recompensas ultrajantes. O salto poderia não ter sido dado, a visão continuaria baixa, subcutânea.

 

O ser está no ar agora, dois milésimos de segundos depois, infinitamente à procura do ar. E o que parece ser um voo, na realidade é o prenúncio da queda, é a condição da queda.

 

Mas, dois milésimos de segundos de voo podem bem valer o salto.

 

dois milésimos

 

*

 

 

 

 

 

 

que do teu ser terno

deixarás rastros;

porém, que do teu amor soturno,

levarei a memória.

 

 

rastros

 

*

ainda há muitas cicatrizes para serem feridas

ainda para serem vividas

tantos amores para serem sufocados

sofreguidões a serem desbragadas

lembranças magoadas

cervejas bebidas

torresminhos pururucas

devidamente apreciados

 

No entanto

por enquanto

quedo-me aqui

 

quedar-se

 

*

 

 

 

 

 

 

Descemos a Augusta, nem bêbados

Eu e Ele

Ríamos de piadas velhas,

cochichávamos segredos falsos,

mijávamos em esquinas escuras,

xingávamos quem nos proibia de fumar em bares

(cá sabemos bem o tipo).

Suspirávamos e lembrávamos de amigos passados

que já não desciam a Augusta

e de Maria Auxiliadora que nunca teve pena de nós

e não satisfez nossa libido juvenil

na época quando ainda tínhamos libido

e bebíamos Sangue de Boi tinto doce em garrafões de cinco litros.

 

Eu e Ele trocamos um abraço, satisfeitos com uma noite

que poderia ser pior

Estávamos vivos

Podia ser pior

 

Observei-o se afastar pela madrugada,

com a perna meio ruim mancando-o de leve.

Teve tempo de se virar, soltar um Cuide-se e dar uma risada sem fôlego,

antes de voltar para não sei onde.

 

eu ele, ainda vivos

 

*

 

 

 

 

 

 

Natural, vez por outra, tentarem agarrar o tempo

(como se pudera encaixotar o Fluido).

Isso já não é mais possível

pois carrego eu o tempo,

dentro de mim.

Sopro-o pelas narinas e rugas.

Ressuscito-o pelas retinas e rusgas,

o tempo me come e regurgita-me todas as manhãs.

Corta-me a carne, com olhares desconfiados;

corta-me a carne, como velhos amigos que somos,

ineludíveis um do outro, como sempre fomos.

 

Natural, vez por outra, que ele pare. O tempo para,

a sussurrar, ansioso:

"Já não se foram todos os dias?

Já não devemos arrotar os volumes de areia?

Já não gozamos o puro e simples?

E se andássemos?"

assim meio acanhado, quase amedrontado.

"E se andássemos?"

 

Eu o carrego, como vêem.

E, sim, quem sabe coubéssemos de andar,

desencaixotássemos o fluido,

desenrugássemos o ser.

 

Haverá a hora, haverá a hora.

 

e tempo

 

*

 

 

 

 

 

 

me vestir de escuridão.

Tomarei do vento o peito.

Conterei lágrima.

Sulcarei a madeira com motivos lindos e vãos,

com desenhos alongados e sutis,

com letras alongadas e pontudas,

e a deixarei de lado.

 

Vou me vestir de escuridão e me refugiarei nas dobras

de uma esquina de areia radioativa submersa.

E beberei da areia.

E cada grão queimará riscos,

correrá do peito queimando riscos,

um grão por um,

um grão por um.

 

Me tornarei quieto.

Muito quieto.

 

Me vestirei de escuridão. Me esconder da dor.

Quem sabe, a dor

esqueça meu nome.

 

escuridão

 

*

 

 

 

 

 

 

saberá o dia em que morra?

saberá o instante-zunido em que,

fumaça por fumaça concreta,

pesará por sobre almas

para sujar sua incontinência?

desejará o dia em que morra?

em que sangue por sangue, detrito por detrito,

aluviarão os corpos inconsistentes,

as consciências deformadas,

os párias acostumados?

suportará o dia das perguntas?

sufocará o enredo das desditas?

se enforcará com o tecido das mentiras?

desprezará a marca de ser humano,

a inconformidade de que, apesar de tudo, é ser humano,

a necessidade de, com tudo, menosprezará ser humano?

jogará com o revide?,

com a chuva ácida, com a luz demonha?

chorará, sim, chorará, pelo menos uma vez,

uma solitária vez?

acompanhará seu dever cumprido e dormirá

em seu travesseiro de pedra e metal?

 

saberá da morte?

 

*

 

 

 

 

 

 

Poesia é a busca permanente

da Dança Primordial,

não importa se versa sobre

a borra de café derramado na pia,

ou do brilho das asas do anjo celestial,

da ânsia do amor perene do dia-a-dia,

da porosidade dos grãos da manteiga de cacau,

ou da melosidade venenosa e enfadonha do seu frias.

 

Poesia pode ser sobre a camiseta verde,

ou sobre o próprio verde da camiseta,

ou sobre o verde deitado no cinza do palestino morto

enquanto procurava outros cadáveres nos escombros,

mais do que nunca seus parentes.

Pode ser do verde sobre rosa

da copa de árvores a encobrir nascer do sol.

 

Não se pode dizer, no entanto, que Poesia não mentiria.

Na verdade, é a Mentira Primordial,

em busca da Dança Suprema.

Enquanto estamos vivos, poetamos.

Você poeta enquanto lê, sonha e deseja.

Nós poetamos, sim, eu e você,

em uma cumplicidade sorrateira

que nem imaginava existir.

Estamos aqui, eu e você, queira ou não,

cúmplices de Vida,

cúmplices de Morte.

Acredite. Pois se é Poesia.

Portanto, Mentira fundamental,

beleza existencial,

Dança exponencial.

Poesia.

 

poesia primordial

 

*

 

 

 

 

 

 

Em primeiro, a faca goza.

Desliza pela pele,

descreve um arco,

desenha um Z retorcido

ou um S medonho,

cutuca um osso.

Os órgãos jorram.

Os fluidos jorram.

O sangue jorra.

Sem problema:

o sangue suja as mãos, o chão, os uniformes;

quase nunca as consciências.

 

Em segundo, a bota goza.

Pisa e retorce,

humilha e reforça,

esmigalha e recomeça.

Com biqueira de aço reforçado, então,

pode-se inclusive treinar o futebol.

 

Em terceiro, talvez o mais importante,

a História goza.

Esconde a memória.

Invisibiliza o ser.

Desumaniza a pele que fazia parte de um ser.

Embeleza a faca.

Retoca a bota.

Justifica a sujeira espalhada no chão,

de algo que, mais do que reunião de órgãos, sangue e pele,

há muito tempo atrás, em tempos mitológicos, quem sabe?,

era um ser.

 

Os atos não precisam ser necessariamente nesta ordem.

 

a ordem dos atos

 

*

 

 

 

 

 

 

E se sou o leite

que escorre devagar pelo seu queixo

e embranquece momentoso o bico dos seus seios?

E se sou o café que pela sua língua

amortece seu queixo

e anseia chegar no aconchego do seu umbigo?

E se sou o chocolate, quente chocolate,

que pela sua pele quente chocolate

se confunde com os negros fios lácteos do seu sexo?

E se sou eu, pendente de sua boca,

dependente febril do seu sexo,

imiscuindo-me penitente por entre seus seios,

ansiando ser devorado, bebido, tragado?

E se sou eu, tímido, frio e esmilinguido,

esperando ávido agoniado ser fervido

pela quentura esfuziante e efervescente

dos seus lábios?

 

leite quente

 

*

 

 

 

 

 

 

Quero lhe dizer

não, Preciso lhe dizer

— cuidado, deixa o carro passar —,

não pretendo lhe atrasar mais,

porém, é muito importante

— cuidado, deixa a moto passar,

deixa o sinal abrir,

cuidado, deixa meu coração transbordar —,

o pingo da chuva gelada

não acalenta seu rosto:

 

Gostaria de lhe dedicar um poema urbano,

uma trilha de palavras paulistanas

que lhe ajudem a atravessar o dia,

a secar o pingo gelado na testa,

a pisar pelas listras molhadas da faixa de pedestre.

 

Quero que sinta este poema

como o primeiro gole do café da padaria,

como a primeira onda do cheiro da manteiga

do pãozinho na chapa,

como a primeira lembrança morna

de nossos corpos ávidos de calor noturno.

 

E lembre que o primeiro sorriso que lhe acordou

nesta madrugada aturdida de frio paulistano,

o sorriso de uma boca torta ainda sonolenta

já saudosa dos agasalhos insuficientes,

este sorriso que lhe aquecerá durante este dia inteiro

mais do que aqueles agasalhos insuficientes,

aquele meu sorriso, ainda que torto, ainda que meio-frio,

foi a primeira letra do primeiro verso

deste poema urbano que lhe dedico.

 

poema urbano para aquecer chuva

 

*

 

 

 

 

 

 

Há essa pedrinha esquisita, doida, dura,

incômoda. Dentro de mim.

Possui uma nervura que estica, entrelaça, perdura,

machuca. Dentro de mim.

E não quer sair.

E não quer curar.

Durante períodos, consigo abafá-la, retê-la,

enganá-la. (ou engano a mim).

 

É só um curativo, porém. Um desalinho.

Um band-aid mental puído

não pode deter a repugnância da visão

de como vidas, tantas vidas, tantas precoces,

se transformam em sacos de carvão

com tanta facilidade,

o horror da facilidade!,

o horror da simplicidade de transformar

seres em pastas de sangue!,

da indiferença de moer ossos em montes de areia,

de triturar anseios e sonhos em fumaça de napalm.

 

E digo Não quero ver.

Reconheço Não quero saber.

Confesso Não quero sentir!

 

Mas…

não sentir…?!

 

Não me é possível.

Seria como me tornar um assassino por tabela.

Seria como chupar o sangue dos dedos do assassino.

 

Essa pedra dura se mexe,

ferve,

incandesce,

marca como ferro candente,

provoca essa ferida que nunca se cura.

Dentro de mim.

 

pedra incandescente

 

 
 
dezembro, 2014
 
 

 

Claudinei Vieira. Prosador (contista, resenhista, cronista), poeta (em formação), autor participante em algumas antologias (em livros) e em vários sites de literatura e cultura, organizador de eventos literários pela cidade de São Paulo (em calmaria, no momento). Autor de Desconcerto (contos, editora Demônio Negro). 
 
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