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O Ponto da ternura1, volume de poemas da israelense Tal Nitzán, uma das poetas mais expressivas de sua profícua geração, é dessas obras que nos tiram o chão sob os pés. Nascida em Jafa, filha de pais diplomatas, Nitzán viveu em Buenos Aires, Bogotá e Nova York e vive atualmente em Tel Aviv. Ela estudou história da arte e literatura latino-americana na Universidade Hebraica de Jerusalém e é responsável pela tradução de mais de 70 livros da língua espanhola para o hebraico, de autores como Borges, Neruda, Paz, Lorca e Cervantes. Como poeta, ela já escreveu cinco livros, em parte traduzidos em nove idiomas e já venceu alguns do principais prêmios de poesia de Israel. Essa coletânea agora lançada em português pela  editora Lumme tem os poemas traduzidos do hebraico pelo também poeta Moacir Amâncio (28 textos), acompanhados de poemas adicionais vertidos indiretamente para o português por diversos tradutores do Brasil e Portugal.

Desde Baudelaire a matéria da poesia é composta por nossos choques do cotidiano e pelos paradoxos da vida moderna. Na contemporaneidade ocorreu, no entanto, uma espécie de retirada da poesia em direção seja ao esteticismo formalista, seja ao "íntimo", como último bastião da liberdade. Tal Nitzán, por sua vez, tem uma rara capacidade de fazer ao mesmo tempo uma poesia contemporânea, revisitando a questão da "intimidade", mas mantendo o compromisso "moderno" de dar voz às demandas de seu presente.

Como autora engajada na luta pela paz e pelo fim do domínio de Israel sobre as terras ocupadas pelas guerras, que se estendem  desde 1967, Nitzán incorpora na sua poesia o drama duplo, dos palestinos e dos israelenses, que lutam por essas bandeiras. Sua voz "feminina" abraça o tema do conflito étnico-político buscando descontruir as fronteiras entre o "nós" e os "outros". Sua poesia é pós sionista e pós Holocausto. Na sua geração, o tema do genocídio judaico ocorrido na Europa já deixou de ser o drama que mais exige elaboração literária. As demandas do presente ganham espaço.

O título da coletânea deriva do nome do penúltimo dos 40 poemas reunidos, o qual se abre com uma epígrafe de T.S. Eliot (extraída do belo poema "The Hollow Men") e fala justamente de "um ponto da ternura". Em meio a tanta violência e destruição, esse ponto seria dado pela própria poesia: "Aqui é onde mora a ternura./ Ainda que o coração, em seu silêncio,/ afunde pela cidade feito pedra – / sabe que este é o ponto da ternura."

Esse ponto, no entanto, é ambíguo. Pois ele não é só pausa, reflexão, esquecer-se, mas é também recordação, reiteração da dor. Os poemas aqui, como em Paul Celan, muitas vezes são uma descrição da (frustrada) relação de um "eu" com um "tu", em busca de um "nós", que dificilmente pode ser alcançado. A realidade dura da violência irrompe, esfacelando a vida na esfera privada, fraturando o refúgio e a utopia da intimidade. No primeiro poema da coletânea, lemos: "Estamos frente a frente,/ de costas voltadas às desgraças do mundo./ Atrás de nossos olhos e cortinas fechados/ espalha-se de repente/ a vaga de calor e a guerra./ O calor será o primeiro a apaziguar-se,/ um vento ligeiro/ não trará/ os adolescentes baleados,/ nem esfriará a ira dos vivos./ [...] somos uma pequena multidão/ instigada a morder, a agarrar,/ a barricar-se na cama/ enquanto no ozono/ por cima de nós/ alastra um sorriso zombeteiro". O mesmo se passa no poema "Tesouro": "No inverno os guardas arrancaram o cobertor da/ pele dos habitantes do jardim. Um deles não verá o dia./ Na primavera foram lançadas garrafas cegas/ nas casas assinaladas, que se incendiaram./ À noite busquei refúgio no teu corpo/ como um menino se abriga no pé de morango. [...]"

Já o poema "Coisa silenciosa" apresenta o humor mordaz da autora, ao revelar o nosso gesto matinal de leitura do jornal quase como um ritual canibal. Nos alimentamos da desgraça (dos "outros") com quem mastiga um pão: "Nada mais silencioso/ do que os golpes que se abatem sobre os outros,/ não há ameaça mais inofensiva/ à paz de espírito satisfeito. [...] Que silêncio agradável./ A não ser por um ruído agudo, penetrante,/ que perturba sobretudo pela manhã,/ mas pode-se abafá-lo facilmente/ com o sussurro relaxante das folhas do jornal./ Antes que se amontoem as ruínas sobre eles/ já estarão sepultadas sob o suplemento de variedades,/ a xícara de café pela metade,/ a batida de porta/ em nossa casa,/ que continua em pé."

 

 

Nota

 

1Tradução do hebraico por Moacir Amâncio. Versões adicionais de Maria Teresa Mota, Flavio Britto, Maria João Cantinho, Luiz Gustavo Carvalho, Luca Argel (os dois últimos com participação de Tal Nitzán).

 

 

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O livro: Tal Nitzán. O Ponto da Ternura. São Paulo: Lumme, 2013, 100 págs.

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março, 2014

 

 

 

Márcio Seligmann-Silva. Professor de teoria literária da UNICAMP, é autor, entre outros livros, de O Local da Diferença (Editora 34).