[imagem manipulada por silvana g.]
 
 
 
 
 
 

 

A briga era feia antigamente. Hoje podemos entrar num bar e ver gente de todas as tribos trocando brindes e até amassos. Muito diferente do comportamento daquela época, em que cansei de testemunhar a elite emergente da intelectualidade brasileira vaiando, aos berros, os cabeludos da Jovem Guarda. Certa vez, acrescentaram ao preconceito cultural, o racial. Simplesmente gritavam, enraivecidos, no amplo restaurante repleto de frequentadores: "Urubus!". E acrescentavam: "Guarabyra, como você tem coragem de se sentar com urubus?". Tudo porque eu me encontrava em companhia de meus amigos que os músicos apelidam carinhosamente de "Família Golderança", composta pelos irmãos que formam o Trio Esperança e o conjunto The Golden Boys.

Não é preciso dizer que deu confusão. Num dos raros momentos de minha vida em que quase perdi todo o controle, chamei um para a briga. Aproximei-me das pessoas que berravam a ofensa e batia com tanta força na mesa, em especial em frente a um dos integrantes, que, intelectual de esquerda, com sua atitude havia me deixado mais do que decepcionado. Os pratos subiam, giravam, ameaçavam cair. Mas os amigos da Jovem Guarda impediram que o confronto fosse mais grave. Eram de paz e, mesmo sentindo-se agredidos, saíram calmos. Evitam falar no assunto até hoje, mas não guardam rancor do indivíduo ofensivo — que virou ator global de grande sucesso. Outro dia, relembrando o caso, explicaram que, se não estivessem acompanhados de suas namoradas, talvez houvessem revidado. Não consigo ser tão cavalheiro como eles.

A reação do sujeito que eu desafiava foi desviar os olhos para o chão, cabeça baixa, sem dar um pio — o que só serviu para intensificar minha raiva. Felizmente, tudo acabou bem. Mas valeu, inclusive, porque além dele, havia mais pessoas em outras mesas, apoiando o ultraje, que, ao presenciarem minha reação, acharam melhor se calar. Fez-se um enorme silêncio. Só se ouviam meus berros: "Vou fazer picadinho de você!". Embora irado, como vocês podem ver, não tinha perdido totalmente o domínio sobre mim, pois tinha perfeita consciência de que estava em um restaurante. E com muita fome!

No clima de discórdia da época seria impossível juntar, por exemplo, Carlos Imperial e Milton Nascimento num mesmo lugar, ainda que eu fosse amigo de ambos. Nem Nelson Lins de Barros — musicólogo e letrista da Bossa Nova, que foi o anjo da guarda aqui deste anjo rebelde e de toda a tribo da Música Popular Brasileira daquele tempo, que trabalhava com eficiência e discrição pela união de todos — principalmente nos históricos encontros do Bar Cervantes, onde ele imperava — teria conseguido tal façanha. E olha que era um aglutinador profícuo e habilidoso.

Depois que Nelson faleceu e que seu cabelo sempre caindo na testa, e sempre repelido por um gesto de sua mão, não nos distraiu mais, e sua risada e seu rosto alegre, de maçãs vermelhas, não mais nos divertiram, os membros da tribo da MPB, pouco a pouco, foram se afastando — e privando o Cervantes de suas preciosas presenças e do finíssimo fundo musical. Embora o sanduíche e o chope continuassem ótimos.

Talvez por ter sido muito encorajado pelo Nelson, trabalhei seguindo seu exemplo. Administrei departamentos musicais, dirigi alguns dos grandes festivais e fundei com amigos a SOMBRÁS, a primeira sociedade independente de defesa de direitos autorais, sempre acrescentando, aos objetivos principais da empreitada, o de promover amizades e parcerias. Reconheço que não alcancei êxito em todas as ocasiões. Em contrapartida, o destino encarregou-se, algumas vezes, de auxiliar-me nesse intento.

Foi assim que um dia Joyce, a cantora, acordou-me de manhãzinha, dedo insistente na campainha. Espiei pelo olho mágico e a vi chorando. Abri a porta imediatamente. Engasgou-se ao ver-me; quase desmaiou. Amparei-a e, só depois de muita água com açúcar, consegui acalmá-la e ela pôde, enfim, explicar o motivo do pânico: acabara de saber, pelo rádio, que eu sofrera um acidente e havia morrido — mais tarde fui informado de que o morto, um radialista, tinha o mesmo nome que eu.

Dali para a frente foi um não mais acabar de chegar gente. Um velho amigo, ao deparar-se comigo e com meu sorriso ao abrir-lhe a porta, desferiu-me um tremendo soco. Não sei dizer se foi por se decepcionar ao me ver com vida, ou por ter se zangado com o coral de gargalhadas da festa — tinha virado festa. Ao ouvir mais um toque da campainha, todos ficavam em silêncio, dissimulando, para, logo após presenciar o susto do próximo amigo e explodir em gritos e gargalhadas.

Aquele mal-entendido em torno de minha suposta morte proporcionou a imagem de um encontro inesquecível e, naquela época, impensável: às duas da manhã, com o violão mal-ajeitado no joelho, Milton Nascimento, sem nenhuma reserva, mostrava uma canção nova a Carlos Imperial.

Acredito que foram tréguas como essa, que desconfio ter sido misteriosamente criadas por nelsons vários e seus espíritos, que afastaram os verdadeiros urubus do entendimento entre as variadas tribos da MPB, espero que de uma vez por todas. Que continue assim. Sempre nos trará melhores frutos a convivência pacífica e cooperativa entre bossas, jovens ou não, que o conflito boçal entre tendências de qualquer idade.

 

agosto, 2014