A briga era
feia antigamente. Hoje podemos entrar num bar e ver gente de todas as
tribos trocando brindes e até amassos. Muito diferente do comportamento
daquela época, em que cansei de testemunhar a elite emergente da
intelectualidade brasileira vaiando, aos berros, os cabeludos da Jovem
Guarda. Certa vez, acrescentaram ao preconceito cultural, o racial.
Simplesmente gritavam, enraivecidos, no amplo restaurante repleto de
frequentadores: "Urubus!". E acrescentavam: "Guarabyra, como você tem
coragem de se sentar com urubus?". Tudo porque eu me encontrava em
companhia de meus amigos que os músicos apelidam carinhosamente de
"Família Golderança", composta pelos irmãos que formam o Trio Esperança
e o conjunto The Golden Boys.
Não é
preciso dizer que deu confusão. Num dos raros momentos de minha vida em
que quase perdi todo o controle, chamei um para a briga. Aproximei-me
das pessoas que berravam a ofensa e batia com tanta força na mesa, em
especial em frente a um dos integrantes, que, intelectual de esquerda,
com sua atitude havia me deixado mais do que decepcionado. Os pratos
subiam, giravam, ameaçavam cair. Mas os amigos da Jovem Guarda impediram
que o confronto fosse mais grave. Eram de paz e, mesmo sentindo-se
agredidos, saíram calmos. Evitam falar no assunto até hoje, mas não
guardam rancor do indivíduo ofensivo — que virou ator global de grande
sucesso. Outro dia, relembrando o caso, explicaram que, se não
estivessem acompanhados de suas namoradas, talvez houvessem revidado.
Não consigo ser tão cavalheiro como eles.
A reação do
sujeito que eu desafiava foi desviar os olhos para o chão, cabeça baixa,
sem dar um pio — o que só serviu para intensificar minha raiva.
Felizmente, tudo acabou bem. Mas valeu, inclusive, porque além dele,
havia mais pessoas em outras mesas, apoiando o ultraje, que, ao
presenciarem minha reação, acharam melhor se calar. Fez-se um enorme
silêncio. Só se ouviam meus berros: "Vou fazer picadinho de você!".
Embora irado, como vocês podem ver, não tinha perdido totalmente o
domínio sobre mim, pois tinha perfeita consciência de que estava em um
restaurante. E com muita fome!
No clima de
discórdia da época seria impossível juntar, por exemplo, Carlos Imperial
e Milton Nascimento num mesmo lugar, ainda que eu fosse amigo de ambos.
Nem Nelson Lins de Barros — musicólogo e letrista da Bossa Nova, que foi
o anjo da guarda aqui deste anjo rebelde e de toda a tribo da Música
Popular Brasileira daquele tempo, que trabalhava com eficiência e
discrição pela união de todos — principalmente nos históricos encontros
do Bar Cervantes, onde ele imperava — teria conseguido tal façanha. E
olha que era um aglutinador profícuo e habilidoso.
Depois que
Nelson faleceu e que seu cabelo sempre caindo na testa, e sempre
repelido por um gesto de sua mão, não nos distraiu mais, e sua risada e
seu rosto alegre, de maçãs vermelhas, não mais nos divertiram, os
membros da tribo da MPB, pouco a pouco, foram se afastando — e privando
o Cervantes de suas preciosas presenças e do finíssimo fundo musical.
Embora o sanduíche e o chope continuassem ótimos.
Talvez por
ter sido muito encorajado pelo Nelson, trabalhei seguindo seu exemplo.
Administrei departamentos musicais, dirigi alguns dos grandes festivais
e fundei com amigos a SOMBRÁS, a primeira sociedade independente de
defesa de direitos autorais, sempre acrescentando, aos objetivos
principais da empreitada, o de promover amizades e parcerias. Reconheço
que não alcancei êxito em todas as ocasiões. Em contrapartida, o destino
encarregou-se, algumas vezes, de auxiliar-me nesse
intento.
Foi assim
que um dia Joyce, a cantora, acordou-me de manhãzinha, dedo insistente
na campainha. Espiei pelo olho mágico e a vi chorando. Abri a porta
imediatamente. Engasgou-se ao ver-me; quase desmaiou. Amparei-a e, só
depois de muita água com açúcar, consegui acalmá-la e ela pôde, enfim,
explicar o motivo do pânico: acabara de saber, pelo rádio, que eu
sofrera um acidente e havia morrido — mais tarde fui informado de que o
morto, um radialista, tinha o mesmo nome que eu.
Dali para a
frente foi um não mais acabar de chegar gente. Um velho amigo, ao
deparar-se comigo e com meu sorriso ao abrir-lhe a porta, desferiu-me um
tremendo soco. Não sei dizer se foi por se decepcionar ao me ver com
vida, ou por ter se zangado com o coral de gargalhadas da festa — tinha
virado festa. Ao ouvir mais um toque da campainha, todos ficavam em
silêncio, dissimulando, para, logo após presenciar o susto do próximo
amigo e explodir em gritos e gargalhadas.
Aquele
mal-entendido em torno de minha suposta morte proporcionou a imagem de
um encontro inesquecível e, naquela época, impensável: às duas da manhã,
com o violão mal-ajeitado no joelho, Milton Nascimento, sem nenhuma
reserva, mostrava uma canção nova a Carlos Imperial.
Acredito
que foram tréguas como essa, que desconfio ter sido misteriosamente
criadas por nelsons vários e seus espíritos, que afastaram os
verdadeiros urubus do entendimento entre as variadas tribos da MPB,
espero que de uma vez por todas. Que continue assim. Sempre nos trará
melhores frutos a convivência pacífica e cooperativa entre bossas,
jovens ou não, que o conflito boçal entre tendências de qualquer
idade.