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Chicago, 10 de novembro de 2014.

 

 

         Em 1954, assim falou o escritor polonês Witold Gombrowicz em seus Diários:

         "The most important, most extreme, and most incurable dispute is that waged in us by two of our most basic strivings: the one that desires form, shape, definition and the other, which protests against shape, and does not want form. Humanity is constructed in such a way that it must define itself and then escape its own definitions. Reality is not something that allows itself to be completely contained in form. Form is not in harmony with the essence of life, but all thought which tries to describe this imperfection also becomes form and thereby confirms only our striving for it.

         "That entire philosophical and ethical dialectic of ours takes place against the background of an immensity, which is called shapelessness, which is neither darkness nor light, but exactly a mixture of everything: ferment, disorder, impurity, and accident".

         Imaginem um cristão ávido por oferecer a outra face — em uma sociedade como a nossa, trata-se de alguém que, necessariamente, será arremessado contra si mesmo a cada instante.

         Fiódor Dostoiévski compôs o Príncipe Míchkin, protagonista de O Idiota, como uma fusão inconsútil entre Jesus Cristo e Dom Quixote de La Mancha.

         Míckhin não é apenas a proposição da bondade. Míckhin é a realização da pureza como expressão da entrega em todas e cada uma de suas ações. É como se a personagem só se configurasse com a mão estendida para a amizade.

         O processo de composição do Príncipe Míckhin, como não poderia deixar de ser, trouxe a Dostoiévski profundas dificuldades. Como narrar a bondade mais genuína em meio ao choro e ranger de dentes?

         Como vivenciar a bondade para além da norma? (O Novo para além do Velho Testamento, a Boa Nova para além do Deuteronômio, Cristo para além de Moisés, a Outra Face para além de Talião.) Como vivenciar a bondade para além da forma?

         "Não julgueis que vim abolir a lei ou os profetas. Não vim para os abolir, mas sim para levá-los à perfeição" (Mateus: 5-17).

         Míchkin, desde a primeira cena de O Idiota, torna-se amigo de Rogójin.

         Rogójin, desde a primeira cena de O Idiota, declara seu pendor por Nastácia Filíppovna, quiçá a mulher mais pungente da obra de Dostoiévski.

         Rogójin, desde a primeira cena de O Idiota, declara que seu furor por Nastácia poderia levá-lo a assassiná-la.

         Desde tenra idade, Nastácia já dava indícios da beldade em que viria a se tornar. Assim, para bem separar o trigo do joio, o aristocrata e lascivo Tótski a leva como sua cativa para o Chalé das Delícias, um refúgio campestre onde o nobre catequizaria a então donzela com a filosofia da alcova.

         Consta que a modernidade ajoelha homens e mulheres diante do altar do prazer. "Push me and then just touch me, 'till I can get my satisfaction!" Tudo o mais deve ser preterido.

         Ocorre, no entanto, que a busca inequívoca pelo prazer não se dá senão entre muito choro e ranger de dentes.

         O prazer, não poucas vezes, volta-se contra si mesmo: o prazer da dor de dentes, o prazer da hierarquia, o prazer sádico daquele que manda, o prazer masoquista daquele que obedece, o prazer sadomasoquista daquele que repassa o arbítrio para os demais — o marido contra a esposa, a namorada contra o namorado, os pais contra os filhos. O prazer se confunde com a (auto)flagelação.

         Nastácia foi catequizada pelo prazer como (auto)desprezo. A razão utilitária — o cálculo moderno por excelência — reza que Nastácia deve separar o trigo do joio, ela deve esquecer o cárcere lascivo de Tótski, ela deve, a partir de agora, viver apenas as delícias que o Chalé lhe proporcionou. Ocorre que, para a dostoievskiana Nastácia Filíppovna, o gozo realiza a dialética que o gozo, em francês, chama de petite mort: Para Nastácia, gozar também é agonizar, gozar é se lembrar — mais: gozar é não conseguir se esquecer. O ressentimento tem uma dinâmica recalcitrante que surpreende a candura utilitária: o prisioneiro começa a se afeiçoar por seu cárcere, o prisioneiro se revolta se alguém lhe oferece algo para além de seu cárcere — a dor já o drena de tal forma que, como uma segunda natureza, a dor afere prazer a partir de cada uma de suas feridas. Sorrir equivale a decair — decair ainda mais, decair sempre. Desconfiar de cada gesto, de cada trejeito, dissecar intenções ocultas, julgar os outros por si mesma, ver Tótski em cada um dos demais, ver Tótski em si mesma. (As memórias de Nastácia não narram o subsolo de nosso cotidiano?)

         É assim que Nastácia nega o amor que o Príncipe Míckhin lhe oferece.

         É assim que Nastácia opta pelo amor purulento de Rogójin.

         O leitor e a leitora poderiam se perguntar e me perguntar:

         — Mas Míckhin não sabia que Rogójin tinha efetivo interesse por Nastácia? Ora, ora, então Jesus Míckhin Quixote incorreu em traição para com o amigo Rogójin ao se declarar para Nastácia!

         Caro leitor, cara leitora, Nastácia pôde entrever no Príncipe Míchkin a cura para sua morbidez, a cicatrização de seu espírito. Míckhin a amava precisamente na medida da dor que Nastácia havia sofrido. Para Míckhin, amor e piedade se entrelaçam.

         Antes que o leitor e a leitora nietzscheanos queiram reverter a compaixão de Míchkin em vontade de poder, é preciso fazer uma ponderação.

         A modernidade capitalista, a forjar o mundo à sua imagem e à sua semelhança, tende a deduzir tudo a partir do ego. Assim, o amor que beira a piedade — a paixão que se confunde com a compaixão — não passaria de mais um capítulo da dialética encarniçada envolvendo senhor e escravo. Em nosso caso, o senhor se compadece pelo escravo e mantém a lógica da dominação – a vontade de poder — ao se engrandecer como doador, ao se tornar altivo como um senhor bondoso, como aquele que se compadece. Mesmo em meio à entrega, o senhor continua a ser senhor.

         Ora, Narciso, em sua paranóia, jamais deixa de projetar (e caçar) a própria imagem.

         A egolatria — denominação menos cínica da vontade de poder — age segundo a mesma (pato)lógica que acomete Nastácia. O pendor pelas feridas começa a se transformar em uma revolta — no limite, no ódio mais contumaz — contra quaisquer possibilidades de cicatrização e perdão. Qual o interesse por detrás do amor que Míchkin sente por Nastácia? O amor é reduzido a mais uma demanda. Meios com vista a fins. Jamais o sorriso e a partilha podem ser vividos como fins em si mesmos.

         A depressão, o desamor e a inimizade socialmente reproduzidos e prescritos atestam para os devidos fins que tal filosofia de vida não se restringe a uma mera compreensão de mundo.

         Ocorre que Nastácia descobriu em Míchkin um novo sentido.

         Ocorre que Dostoiévski, a dissecar as aporias de nossos tempos, bem sabe que não é possível reconciliar, imediatamente, as duas bordas da ferida que já se transformaram nas duas margens longínquas do rio de nós mesmos.

         Míchkin estende a mão para Nastácia, Nastácia dá as costas para Míchkin, Nastácia afunda no charco de Rogójin, Rogójin ama Nastácia tresloucadamente — Rogójin mata Nastácia tresloucadamente.

         O fim de O Idiota até hoje é considerado um dos desfechos mais enigmáticos e contraditórios da história da literatura.

         Jesus Míchkin Quixote ama Nastácia.

         Dom Cristo Míchkin é amigo de Rogójin.

         Como conciliar a justiça diante do assassínio com o perdão para aquele que assassinou? Como conciliar Talião com o oferecimento da outra face?

         Ao fim e ao cabo, Míchkin vela o corpo esfaqueado de Nastácia enquanto afaga o assassino Rogójin.

         De alfa a ômega, do princípio ao fim, Rogójin cumpre a promessa que fizera — se um dia vier a amar Nastácia, se um dia vier a possuí-la, vou matá-la.

         O fim de O Idiota cumpre a via crucis que já estava inscrita desde o seu mais tenro princípio, isto é, desde seu título: Míchkin se torna um idiota, Míchkin enlouquece.

         Para conciliar a justiça diante do assassínio com o perdão para aquele que assassinou, para conciliar Talião com o oferecimento da outra face, Míchkin se oferece em holocausto. Em termos cristãos, a crucificação de Míchkin pela loucura passa a ser a saída mais sensata diante dos tumores e aporias da modernidade.

         A forma dostoievskiana não se aparta do caos do mundo.

         A forma dostoievskiana transforma o caos do mundo em sua própria arquitetura.

         Os escombros de Míchkin não conseguem nos fornecer abrigo — o caos da forma nos desespera com a forma do caos. Mas, ainda assim, os escombros de Míchkin — a arquitetura da nossa destruição — não deixam de constituir um norte.

         Antes de se oferecer em holocausto, antes de caminhar até o Gólgota da compaixão, Míchkin discorre sobre a síntese que envolve Dom Quixote e Jesus Cristo.

         Quixote não é apenas um tolo ensandecido que duela com moinhos de ventos como se eles fossem a reencarnação de Golias. Quixote não quer apenas o retorno vão dos valores nobres que a modernidade vai solapando. Ele não quer apenas fazer com que a roda da história retroceda.

         Quixote sonha de olhos abertos, é bem verdade, ele não quer ouvir Sancho quando o fiel escudeiro lhe adverte que a (suposta) donzela Dulcinéia não passa de uma cortesã vulgar.

         Mas Míchkin afirma que a nobreza de Quixote é bem mais refinada do que o mero delírio.

         Quixote sonha, sim, mas a Utópolis quixotesca, segundo Míchkin, tem o papel de resguardar um sonho ainda mais onírico, um sonho ainda mais elevado, um sonho ainda mais submerso: Utopólis é a salvaguarda de Atlântida, a nobreza de Quixote quer proteger, na verdade, o ideal profundo que lhe subjaz, a ideia da transcendência, a existência de Deus, a quintessência da bondade.

         O sonho profundo de Quixote, então, é como um baú do tesouro dentro da Caixa de Pandora, é o ideal de perfeição e redenção para o qual precisaríamos caminhar, o ideal de caminho que se configuraria sempre como o nosso norte.

         O leitor e a leitora, provavelmente desconfiados como Nietzsche e Nastácia Filíppovna, diriam que tal ideal, além de ser inexistente, é, na verdade, inalcançável.

         Ao que o Príncipe Míchkin, secundado por Jesus Quixote, diria que não se trata, apenas, de alcançar o ideal — se é que, de fato, se trata de alcançá-lo. Trata-se de haver o ideal, trata-se de caminhar até o ideal, de senti-lo como a medida de todas as coisas.

         Quem já sofreu em demasia sabe o que significa a mão que a amizade estende.

         Quem já sofreu em demasia sabe o que significa um telefonema providencial no momento mais crucial.

         A vontade de poder não é apenas um conjunto de ideias — ela encarna e reproduz a indiferença, o desprezo, o isolamento, a desconfiança, o ódio, o rancor. O aspecto dialético e redentor é que, a despeito do que se toma como vontade de poder, o niilista tende a sofrer não apenas por encarnar as ideias em que acredita, mas também por estar embebido por uma tradição histórica que ainda comporta um ideal moral e social para além do atual estado de coisas. (O ainda pressupõe o até quando...)

         A vontade de poder sofre porque, contra si mesma, também quer viver algo para além de si mesma. É isso que Míchkin chama de sonho resguardado dentro de um sonho — a nobreza que protege um ideal ainda mais nobre.

         "Ora bolas!", exclamam o leitor e a leitora mais encarniçadamente maquiavélicos, "tudo isso não passa de sentimentalismo e melodrama, a existência é, sim, uma sucessão de tragédias. A existência só faz beirar a desistência".

         Pois Dom Cristo Míchkin quer falar, justamente, com aqueles que (ainda) não se suicidaram.

         Falemos sobre a verdade que antecede o suicídio.

         Há alguns anos — há precisamente 7 anos, a bem dizer —, assisti a uma reportagem da qual nunca mais pude me esquecer.

         Imaginem um carro parado no acostamento da BR-116, a rodovia que liga São Paulo a Curitiba.

         Agora, imaginem que o carro em questão, parado no acostamento, está na contramão do fluxo vertiginoso de veículos.

         A câmera da CET, a Companhia de Engenharia de Tráfego, capta todos e cada um dos momentos.

         Somos todos espectadores — e cúmplices.

         O motorista ainda não arremeteu o carro do acostamento para o suicídio na contramão.

         Os momentos derradeiros são decisivos.

         O motorista não escolheu qualquer tipo de suicídio — ele não quer pôr a cabeça dentro de um forno, ele não quer atirar contra a própria têmpora, ele não quer se jogar de um prédio. Ele quer ter controle até o último instante, ele quer que o suicídio possa, eventualmente, levar alguém junto com ele.

         A meu ver, toda a arte e toda a filosofia precisam descobrir o que dizer para o motorista em questão nos minutos e segundos que antecedem a direção do carro na contramão, os instantes que antecedem o suicídio. É quando a vontade de poder se volta contra si mesma para destruir o sujeito que exerce a vontade de poder, o sujeito que já está cansado de ser uma marionete de Maquiavel, o sujeito que já não suporta o desamor. Se a arte e a filosofia não descobrirem o que dizer para que Rogójin, o motorista em questão, não arremeta o carro do acostamento para a contramão da rodovia Régis Bittencourt, já não há o que fazer. Já não há o que escrever.

         Toda a verdade me parece pulsar nos instantes que antecedem a aceleração do carro. Em que Rogójin pensa? De que ele se lembra? Por que hesista? O que ainda poderia atar Rogójin ao último fio de vida?

         A tragédia transcende a estética. O verdadeiro fundamento da estética é a ética, isto é, tudo aquilo que (ainda?) não conseguimos reconciliar eticamente.

         Se pensássemos em uma reedição do término de O Idiota em face do suicídio iminente de Rogójin na contramão da BR-116, a que fim chegaríamos?

         Diante da arte e da filosofia postas de joelhos — diante do completo embotamento de nossas perguntas —, teríamos que trocar de canal e nos resignar diante de nosso controle remoto? (Ou, ainda pior, talvez assistíssemos ao término do suicídio que acaba por colidir contra um caminhão de carga com o mesmo regozijo masoquista de Nastácia.)

         Ora, o embotamento da existência — o existencialismo mutilado e resignado — não deixa ninguém incólume. O desamor, a brutalidade e a depressão cobram seus preços. (Hoje não é segunda-feira? Ou pior: amanhã não é sempre segunda-feira?)

         O humano está além de qualquer norma e qualquer forma — a deformação é o que há de mais fundamental em nossa constituição. Mas a desistência da norma e da forma como nortes — a perda de algo além como a resignação diante do mero aquém — reduz a vida ao exílio em meio ao exílio. (Eis o reverso do sonho de Cristo dentro do sonho de Quixote, o baú do perdão e da reconciliação dentro da Caixa de Pandora.)

         O que podemos dizer ao motorista Rogójin para que ele abandone o acostamento?

         O holocausto da loucura de Míchkin há muito já não é suficiente.

         (A piedade beira a cumplicidade.)

         O que podemos dizer ao motorista Rogójin para que ele abandone o acostamento?

         Devemos dizer já não haverá desamor?

         Ora, como?

         Onde?

         Quando?

         Com quem?!

         Em verdade, em verdade o motorista Rogójin, antes de acelerar sem mais, bem poderia nos perguntar:

         — O que é que falta para que todos e cada um de vocês venham se sentar ao meu lado?

 

 

dezembro, 2014