©jane fulton alt
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Inspirado nos versos de Fernando Pessoa, o título é da lavra de Alípio Cristiano de Freitas, jornalista e ex-padre português que viveu anos no Brasil, tendo exercido o sacerdócio no Maranhão, mas que, sobretudo, foi e continua sendo um revolucionário, depois de comer o pão que o diabo amassou em várias prisões e antros da ditadura militar brasileira.

Releio pela terceira vez a obra Resistir é preciso, publicada pela Record em 1981, não mais para conhecer o que ocorreu naquela época, pois li quase tudo — aproximadamente noventa por cento — do que foi escrito pelos ex-presos políticos. Nessas leituras, aprendi quando e como alguns homens perdem sua condição de homens para se transformarem em chacais, covardes "interrogadores" e torturadores, e sobre o prazer que sentem na destruição física e psicológica de seus semelhantes, sejam idosos ou jovens, alguns mal saídos da adolescência. Seria por doença, maldade, fanatismo político? De tudo um pouco, talvez.

Mas, como afirmei acima, já conhecia — felizmente, só de ouvir contar — as formas de tortura impostas aos presos políticos, o funcionamento da malfadada "cadeira do dragão", do "pau-de-arara", do "telefone", do "corredor polonês", da "roda de caratê" e outras excrescências, filhas diletas do sadismo, da prepotência, da ambição e da sede de poder.

Quando terminei a releitura do livro, percebi que não tinha encontrado o que buscava, pois já estava ciente de grande parte dos fatos. Sabia, inclusive, que meu falecido marido, companheiro de militância política do autor, foi duas vezes citado no decorrer da obra.

Fui inundada por uma sensação de vazio, de frustração por ter caminhado tão pouco no meu processo de descoberta, ou de redescoberta, se quisermos denominar assim esse tipo de "arqueologia" que se faz para compor a imagem de alguém que perdemos, a fim de torná-la mais condizente com a realidade, mais bem lapidada, mais redonda e perfeita dentro de nós.

Senti-me também um tanto envergonhada pela minha ingenuidade ao pensar que alguém o conhecera melhor do que eu e que as respostas poderiam ser encontradas em um livro, ainda que escrito por um autor de grande acurácia e sensibilidade. Afinal de contas, a ótica do autor é política, jornalística, trata-se de um depoimento recheado de fatos, de datas, de nomes, e refere-se a um contexto histórico demarcado, quando a personagem que busco era muito jovem e eu nem sequer sabia de sua existência.

Que coisa mais estranha, a morte. Tão presente e tão distante de cada um de nós, negada a cada minuto. Fico pensando por que nós, ocidentais, a recebemos tão mal, sempre como uma tragédia impensável, (e, contudo, absolutamente previsível) desgraça que sobre nós se abate. E não adianta, para nosso consolo, a repetição de que se trata de algo natural, que todos somos perecíveis, peregrinos, passageiros, mortais. Não queremos saber dela e ponto final.

Só quem perdeu alguém muito querido sabe da terrível aflição que é não ver mais a pessoa de uma hora para outra, como se tivesse sido tragada por um bueiro gigantesco, como se tivesse sido ocultada por um eclipse sem fim ou desaparecido do ar sem a nossa anuência, sem o nosso conhecimento e a nossa permissão.

E queremos respostas, ah, se queremos, queremos que nos prestem contas do que foi mesmo que ocorreu, desejamos de qualquer maneira que nos expliquem o porquê dessa falta que nada é capaz de preencher. E agora? Perguntamos. Como fica? Mesmo sabendo que é impossível, almejamos que o cosmos nos devolva o ser que se foi. Ou, na pior das hipóteses, que nos "pague uma indenização", que faça algo por nós a fim de apaziguar o nosso coração, que retire o gelo e a sensação de incompletude, que refaça a teia esgarçada que antes fora um sofisticado conjunto de fios bem tramados e arrematados.

A cada manhã, a mesma pergunta: onde está ele? O que foi feito do seu riso, das suas maneiras contidas e bem-educadas, dos seus gestos finos, da sua racionalidade, do seu bom-senso, da sua cortesia? Como pode uma pessoa tão importante em nossa vida desaparecer assim, sem deixar rastros, e se transformar em alguém para quem não é mais possível telefonar, a quem não se pode recorrer, com quem é vedado conversar? Como classificar essa não-estrada, essa impotência, essa interdição absoluta?

O mais intrigante de tudo é a percepção de que nossos parentes e amigos, por mais que nos amem, não sentem o que nós estamos sentindo. Não há substituição possível, não dá para passar procuração, é um peso que não se pode dividir. Pessoas queridas comparecem ao velório, às vezes até nos telefonam depois, mas cada uma está tocando a sua vida, fazendo suas coisas, trabalhando, amando, lutando. E não poderia ser diferente, pois a Terra continua a rodar, a realidade segue exigindo de todos os seres a eficiência que sempre exigiu, e apenas nós, os enlutados, nos sentimos à margem da vida, que prossegue inexorável.

Outras pessoas simplesmente se afastam, diante do tema tabu. Deixam-nos entregues à nossa dor, como forma de evitar o confronto com a sua própria finitude, motivo de intensa angústia.  Em uma sociedade que privilegia a alegria e o prazer, o espaço para o luto e a tristeza tornou-se cada vez mais reduzido. Isso sem falar no constrangimento causado pela expressão da dor, que deve ser cada vez mais discreta, inaudível, quase invisível. A palavra de ordem é não chocar, fazer cara de papel, exibir um quase sorriso Mona Lisa quando a vontade é de uivar, soltar gritos agudos e finos, agarrar o nosso defunto com as duas mãos e retirá-lo da urna funerária, obrigá-lo a ficar de pé.

É como se vivêssemos em duas dimensões, a do cotidiano, que nos empurra à força para a normalidade, e a subterrânea, que nos impele a um contínuo movimento entre pensar na pessoa morta e em seguida "esquecê-la", entre "vê-la" passar no corredor do apartamento e imediatamente responder a nós mesmos que é uma ilusão, morreu mesmo, não está mais aqui, o que estamos ouvindo é apenas a memória da voz dela, não é a voz propriamente dita, ela não fala mais, o perfume amadeirado que paira no ar é só um registro olfativo, nada além. Como consequência desse vaivém, no final do dia estamos exaustos, só queremos "Dormir, dormir... Talvez sonhar", como escreveu o dramaturgo inglês.

Não sei quanto tempo passamos vivendo nas duas dimensões ou se existe um tempo igual para todos. Já percebi, contudo, que os intervalos vão aumentando gradativamente, à medida que transcorrem os meses. Devagarinho, de maneira quase imperceptível, o cotidiano vai ficando maiorzinho. O processo é muito lento, não há que ter pressa, pois de nada adianta.

Embora usado em outro contexto, o título do livro de Alípio de Freitas é absolutamente apropriado. Viver é obrigado, a não ser que se parta para soluções mais radicais. Resistir é preciso.

 

 

março, 2014