Amores
borrados
Odeio
ser míope, mas detesto mais ainda os óculos. Está certo que deixam tudo
em seu devido lugar, definem o contorno das coisas e separam o que não
pode ser misturado. De que adianta? A vida não é assim. Além do mais,
acho muito feio ter aquilo pendurado em meu rosto. Quando pela primeira
vez me vi no espelho através das lentes, pensei que elas deixam o mundo
mais bonito enquanto eu fico mais feia. Mais bonito? Talvez mais
organizado. Só que eu não suporto tanta precisão. Esqueço os óculos na
cômoda, no balcão da padaria e acabo sempre tropeçando pela rua afora.
Ao menos posso recorrer a eles quando começo a ter vertigem em ver tudo
se derramando e escapando dos limites.
A
outra miopia, porém, é incorrigível. Os conteúdos não se adaptam aos
recipientes e se fundem virando um só borrão. Nesse caso, não há lente
que restitua a individualidade das coisas. Elas têm vida própria e
escapam dos limites.
Então
nosso amor era único, sólido e perfeitamente adaptado à bela moldura
que, feito uma cerca, o rodeava. Não demorou um mês e já se fundiu aos
outros amores, sempre tão repetitivos. Eu me tornei apenas mais uma,
nessa ciranda míope que borra os passados transformando tudo numa coisa
só. Aconteceu há poucas horas, mas já é quase fato antigo. Mas vamos lá,
recuperemos a história enquanto ela ainda guarda um pouco de frescor e
individualidade.
Passeávamos
no parquinho. A única coisa que tem para fazer nessa cidade é passear no
parque com seus brinquedos mixurucas, os mesmos desde quando eu era
pequena. Ele, homem viajado, olha para tudo com certa condescendência.
Tira o celular do bolso, um aparelho que tem câmera de vídeo, e me
mostra a filmagem que fez do alto da maior roda gigante do mundo. Meu
Deus, que altura! Tenho vertigem só de olhar o vídeo. É a vista lá do
alto que me dá tonteira ou são os gritos que me chegam misturados à
paisagem? O Big Ben, o rio Tâmisa, a Casa do Parlamento. Tudo envolvido
em uma névoa fina e branca. "Fog", ele me explica, "é assim que os
londrinos chamam essa neblina que você está vendo. É o charme da
cidade". "Então é charmoso esse vapor que embaça tudo?". Ele sorri e
continua a me mostrar o filme no celular, imagens anuviadas e tremidas
captadas pelas mãos amadoras. Ou distraídas?
Estremeço,
tento não pensar em nada. Inútil. O que me inquieta é o que não posso
ver. A pergunta irrompe dentro de mim, indesejável e apavorante: "quem o
estaria acompanhando?". Sim, porque não poderia estar sozinho no alto da
maior roda gigante do mundo. Certamente haveria de estar com alguém. Uma
mulher. No entanto, até aquele momento tudo que me havia chegado era uma
mistura confusa de vozes indistintas sob a moldura da bela paisagem
londrina. Mas então...
Ai,
meu Deus, por quê? A frase desavisada se destaca da barulheira. "Está
com medo, amor?". É a voz dele que consola os gritinhos femininos que
escapam pelo aparelho do celular.
Pronto.
Acabou. Acabou amor emoldurado, conteúdo original, história singular.
Uma frase que escapuliu do passado e a nossa história foi jogada
definitivamente na massa disforme dos amores pregressos. E se ele me
jogou assim na vala comum de suas mulheres passadas, agora é a minha
vez.
Então
vamos lá: Vladimir, em homenagem ao Lênin, o primeiro de todos, cujo
rosto definitivamente não consigo lembrar, depois veio João Paulo,
Geraldo, Peti, tão intenso e agora tão distante, Marcos Primeiro, o
filho da alcoólatra, Cristiano, o amor eterno que sucumbiu, Edson, meu
Deus como ele era lindo, André, Marcos Segundo, o amor eterno por quem
quase sucumbi, Edgar, antes não tivesse havido, Rogério, a que ponto
cheguei!
E
agora, ele. Chamemo-lo "O Inominável" a fim de lhe preservar a
individualidade. Não o misturemos aos demais, ao menos não por enquanto.
Ele, que me prometeu uma história nova em folha, distinta de todas as
outras, a história do único amor, amor da vida toda. Outros não me
fizeram essa promessa em tempos anteriores?
A
vala comum se abre diante dos meus pés, vai enterrar mais um "grande
amor da minha vida". Mas agora é pior: eu também fui sugada para junto
de mulheres indiferenciadas, torno-me eu própria uma a mais, sem nome e
sem rosto.
"Agora
estou certo, você é a mulher da minha vida". Há apenas poucas horas a
frase fazia todo o sentido. Agora, já é uma declaração remota,
envelhecida, como essas ladainhas repetidas indefinidamente ao longo dos
séculos.
Acabou
a singularidade. Em seu lugar, a sensação de um espetáculo circense que
vai se apresentando pelas cidadezinhas, sempre os mesmos números, o
mesmo desejo de novidade. E o palhaço o que é? É ladrão de mulher. Hoje
tem goiabada? Tem, sim senhor. Tem, sim senhor, hoje, ontem, antes de
ontem e infinitas vezes a repetição.
O
que sobra depois disso? Posso ainda tornar a ser a menina que se encanta
com o palhaço e seus velhos números como se ali o mundo se renovasse?
Onde recuperar tal inocência? Deve haver, tem de haver alguma água
milagrosa onde eu possa lavar meus olhos e desembaçar minha visão.
Melhor que os óculos que são provisórios e se quebram na primeira
queda.
Há
tão pouco tempo tudo parecia maravilhosamente organizado e agora de novo
os estilhaços de um amor que escapou da moldura. Mais uma vez o impasse.
Coloco os óculos para emoldurar o amor eterno? Ou aceito enfim a vala
comum e me enterro nessa mistura gosmenta de sangue, saliva e gozo até
que eu própria seja também essa mistura?
Ah,
O Inominável! Em breve, você se dissolverá numa longa lista de figuras
vagas e etéreas. É a forma que tenho de me vingar por ter me misturado
assim tão impiedosamente aos seus amores já vividos. Mas adiemos a
vingança. Deixe que eu retenha por um momento as declarações e os gestos
de amor eterno. Fixemos no instante anterior ao "está com medo amor". A
paisagem, a névoa, os gritos. Congelemos esse instante, não deixemos que
escape. Oh, João, por quê? Tarde demais.
Conversa
de meninas
Moram
na mesma rua, têm a mesma idade e estudam na mesma escola. Estão sempre
juntas, brincam de boneca, andam de bicicleta e, quando conseguem uns
trocados, compram balas e revistas na banca da esquina. Também gostam de
conversar, assuntos de meninas e assuntos de adulto não entendem
direito, mas queriam muito entender. Um dia, Bárbara chegou muito séria
e disse à Isabela:
—
Quando crescer, vou ser ateia.
A
amiga ficou apavorada. Àquela época, por conta de uns filmes que
assistira escondido dos pais, andava com um medo danado do demônio. Há
várias semanas, Isabela não dormia direito, não deixava que apagassem a
luz do quarto, pois temia que, no escuro, ele, o coisa-ruim, viesse
visitá-la. Para lhe tirarem o medo, alguém, sua irmã mais velha
provavelmente, disse-lhe que era só
acreditar em Deus, não duvidar nunca de sua existência e rezar o
pai-nosso todos os dias antes de dormir para que o diabo não aparecesse
em seu quarto. (Rezar o pai nosso antes de dormir tornou-se um hábito
que Isabela adotou pelo resto da vida, até mesmo nos momentos mais
incrédulos). Pode se imaginar, portanto, que a menina passou a temer o
ateísmo mais do que qualquer outra coisa. Por isso, quando Bárbara
apareceu com aquela novidade, ela, amiga zelosa, resolveu
dissuadi-la daquele precoce
desejo de ceticismo.
—
Mas por que você está falando isso?
—
Não tem lógica. Se Deus gosta de todos iguais, por que os homens não têm
filhos? Só as mulheres sentem a dor do parto, já pensou nisso? — embora
meninas, já sabiam como as crianças vêm ao mundo e tinham muito medo da
dor do parto.
—
Mas tem o lado bom e o lado ruim de ser homem. Homem não sente a dor do
parto, mas também não pode usar saia, não pode passar batom... — a
feminista que Isabela se tornaria anos depois, certamente teria uma
síncope ao ouvi-la falar daquela forma.
—
Sim, mas você se lembra. A professora outro dia falou que não cai uma folha da árvore se
Deus não quiser, não é mesmo?
—
É verdade, e daí?
—
Se tudo o que acontece é da vontade de Deus, como você me explica esse
tanto de maldade que tem aí no mundo? Esse tanto de pobre, criança na
rua, gente que é assassinada. Se Deus é bom e tudo que acontece é
vontade dele, como é que ele pode querer tanta coisa ruim? — ela falava
com a lógica e a precisão da advogada que viria a ser muitos anos mais
tarde.
Isabela
perdeu o chão. Não podia negar que o que a amiga dizia fazia sentido. Ao
mesmo tempo, a menina temia a dúvida como se teme o próprio
demônio.
—
Mas Bárbara, como pode não existir Deus? Como você me explica tudo que
tem no mundo? Quem construiu o sol, os planetas, a água? Como tudo pode
existir se não existe Deus?
A
amiga ficou pensativa por alguns instantes. Isabela aguardou em
silêncio. Por dentro, vibrava antecipadamente com sua vitória sobre os
argumentos da futura advogada. Passado um tempo, Barbara responde, com o
dedo em riste:
—
Está certo. Deus pode até existir. Mas, ele tem muito o que se explicar.
Ah, isso ele tem!
Em
nome da mãe
A
hora da Ave Maria é quando irrompe, em toda a parte, o choro desesperado
dos bebês. Ninguém sabe o porquê, mas é comum que, no final do dia,
descarreguem um choro gratuito e inconsolável. Enquanto embalo meu bebê,
que berra com todo vigor, ouço no rádio a canção em latim. Benedicta
tu in mulieribus....
Então,
como numa prece feita de imagens, evoco a jovem de Nazaré. Aquela moça
quase menina que, sem ser casada e ciente de que os homens de seu tempo
gostavam de apedrejar mães solteiras, subitamente se deu conta de que
trazia no ventre uma criança. Que depois esse filho venha a se tornar
uma divindade e a moça deixe de ser mulher para virar santa já é outra
história. É a essa jovem e assustada Maria a quem rogo em minhas orações
e não àquela, petrificada numa estátua de gesso.
Lembro-me
de Rita, uma antiga colega de profissão, e seu filhinho Edu. Criado sem
a presença do pai, que sumira antes dele completar um ano de idade,
não conhecia a chamada
"presença masculina" e, ao que me consta, ela não parecia lhe fazer
muita falta. Enquanto Rita trabalhava, era Ana, a irmã mais velha, quem
cuidava do menino. Católica fervorosa, quando Edu estava com cerca de
três anos, achou que já era hora de ensinar o sobrinho a rezar.
—
Vamos lá, eu falo e você repete. Em nome do pai... — disse, levando a
mão à testa.
O
garoto, esperto que era, decidiu avançar por conta própria na lição que
mal começara a aprender:
—
Em nome do pai, da mãe...
—
Não, Edu! Da mãe não!
Ele
atacou, resoluto:
—
Da mãe sim, tia Aninha!
E
como ela continuasse a insistir que a mãe não constava da Santíssima
Trindade, gritou enfurecido:
—
Da mãe, sim! Da minha mamãe, sim!
E
saiu bufando e batendo o pé. Ali se encerrara, definitivamente, as
lições de catequese de Edu.