ruptura (série a pedra da melancolia) | miguel gontijo | acrílica sobre mdf | 100x83 cm |
coleção particular | belo horizonte, mg | 2004 
 
 
 
 
 
 


 

O poema

 

para Micheliny Verunschk

 

 

luz lâmpada de torre telefônica

— a escureza dissimula o pedestal que a sustenta —

e vermelha verde vermelha amarela

(intermitente farol/sentinela

de pássaros insones/sonâmbulos

de aviões desgovernados/incautos)

paira: pseudo-astro alumbrado

 

ah meus cantares — policio

cata-ventos pipas em céus de ferrugem

: a alegria devagar

acata seus carrascos

 

e a cidade envolta em

catástrofes sem reparo

: próteses dentárias extraviadas

relógios de pulso abduzidos

 

eu — poeta (matéria

escassa)? — nasci para

conciliar pedra e vidro

 

mas percorro uma distância subterrânea

subcutânea

subterfúgica

e o mundo (tudo tudo!) —

esta manhã vai ficando

cada vez mais noite ampla

 

 

 

 

Razão

 

 

Lembro-me, perfeitamente, do instante em que o poema surgiu. Eram, aproximadamente, cinco horas da manhã. Havia atendido a muitas e muitas ocorrências, de um sábado para domingo, em 2009 — período de maior gravidade. Acidentes de trânsito com vítimas, tráfico de drogas, brigas familiares... Estava com a cabeça pesadíssima e pensava como muitos problemas poderiam ser evitados, se as pessoas tivessem tato para o diálogo, a tolerância e a conciliação. A cidade estava insone, por causa de um baile que ocorreu na noite. O dia custava a nos dar as primeiras flamas de seu bom-senso apaziguador. A viatura policial em que eu estava navegava por uma atmosfera semionírica oriunda dos restos ébrios dos frequentadores da noite. Quando ela parou em um cruzamento, para dar passagem a uma turba de pedestres que ainda cantavam, álacres, os derradeiros acordes do baile, visualizei, no alto de um morro, torres de transmissão de telefonia móvel, com coloridas luzes intermitentes precavendo aviões. Ao mesmo tempo, o rumor fantasma de um avião cruzou o céu cru de estrelas. Poucos minutos depois, eu chegava em casa e pousava no papel, sob as bênçãos da primeira claridade da manhã, o primeiro rascunho deste poema.

março, 2014
 
 

 

Wilson Torres Nanini (Poços de Caldas/MG). Poeta, autor de Alcateia (São Paulo: Patuá, 2013). É Policial Militar da PMMG. Participou da Poemantologia da Revista Arraia PajeúBR. Edita o blogue Quebrantos, Relances e Abismos ao Relento. Vive em Botelhos/MG.
 
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