Primeiro de janeiro, ano novo, vida nova, Vida eterna, Sim, pois desde este dia ninguém mais morre, A morte decidiu suspender seu trabalho, A morte, que trata a todos de maneira igual, Não dá preferência a pobres ou ricos, brancos ou negros, jovens ou velhos, A morte, que democraticamente a todos nos faz sua única visita, de repente, deixa de aparecer em uma cidade.

 

É essa a ideia principal do romance As Intermitências da Morte, do escritor português José Saramago — até o momento, único autor que escreve em língua portuguesa a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. Nele, Saramago mantém seu estilo ágil, com uma pontuação que subverte muitas regras gramaticais para dar força e rapidez à narrativa. E nessa obra, a narrativa corre contra o tempo, que é limitado, como são limitadas as páginas do livro: sabe-se que haverá uma página final, uma linha final, um ponto final.

 

A morte apresenta-se a nós, "pobres mortais", próxima da figura de um ímã, com duas polaridades. Algumas pessoas a repelem, querem adiar seu encontro inevitável ao máximo. Outras, porém, como o jovem Werther, de Goethe, a atraem e se esforçam muito para dar-lhe o beijo fatal (já que, no seu caso, lhe é impossível beijar Lotte). Personificada na bela, jovem e sedutora figura de uma mulher de menos de 40 anos, a morte, sensível e exigente, na obra de Saramago, pela primeira vez na História, decide cruzar os braços e entrar em greve naquele lugar.

 

Esse fato, em um primeiro momento, é encarado com alegria: afinal, o caminho para a imortalidade e o elixir da juventude são uma utopia que  norteia  nossos instintos desde o início dos tempos. Porém, bastam algumas páginas para Saramago nos mostrar que o que parece interessante é, na verdade, motivo de preocupação. A morte é, ironicamente, presença essencial em nossas vidas.

 

Ateu, materialista e comunista, Saramago não perde a chance de fazer em As Intermitências da Morte uma panfletagem para questionamentos marxistas. A primeira questão levantada no romance é a própria existência de deus (propositalmente grafado pelo autor como substantivo comum, não próprio, destronando-o de sua autoridade) e da Igreja: "sem morte, não há ressurreição, e sem ressurreição, não há igreja". A ausência da morte corresponde à ausência de deus (essa grafia contagia mesmo). O leitor, neste momento, pode se questionar: deus é vida ou deus é morte? Tal pergunta pode incluir um questionamento do poder hierárquico entre esses dois elementos interdependentes: "A dúvida de que deus teria autoridade sobre a morte ou se, pelo contrário, a morte seria o superior hierárquico de deus, torturava em surdina as mentes e os corações do santo instinto, onde aquela ousada afirmação de que deus e a morte eram as duas caras da mesma moeda passara a ser considerada, mais do que heresia, abominável sacrilégio". A morte é associada ao medo e o medo é a senha para todo tipo de subserviência para se criar a ideia de paraíso (outro substantivo comum, Saramago?). O ganhador do Nobel conclui: "A filosofia precisa tanto da morte como as religiões". E dá-lhe, Nietzsche e Schopenhaer nesta dolorida intermitência: "(...)se filosofamos é por saber que morreremos, monsieur de Montaigne já tinha dito que filosofar é aprender a morrer".

 

Ecoando a observação que Hamlet fez a seu amigo Horácio no primeiro ato da peça de Shakespeare, o materialista Saramago também nos lembra que há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa filosofia. Uma dessas "coisas" é a questão econômica que a greve da morte traz à vida (me perdoem o trocadilho): as agências funerárias perderam seu ganha-pão. E surge, como consequência deste "desequilíbrio ecológico" no sistema capitalista imortal, um mercado paralelo da  morte, uma máphia (sim, com "ph", dando a esta e todas as máfias uma linhagem antiga, sugerindo que a prática de burlar a lei vem de há muito tempo) para atravessar parentes doentes — a ausência de morte não os cura da doença, apenas os mantém doentes — para o outro lado da fronteira, com o consentimento não admitido do governo local (pois se ninguém morre, o excesso populacional torna-se um sério problema administrativo). O tráfico de drogas aqui passa a ser o tráfico de vidas (ou de mortes). É, desse modo, uma história que faz referência à Cidade de Deus e à Gomorra, para citar dois exemplos recentes de livros/filmes que abordam esta questão tão próxima a nós brasileiros.

 

Assim como em  Ensaio sobre a Cegueira, Saramago cria em As Intermitências da Morte um universo que equipara todas as pessoas: ali são todos cegos, aqui são todos imortais. Pronto, está criado o terreno para a natureza humana se mostrar com todas as suas garras sub-reptícias.

 

Se tomarmos por base a imagem da lagarta que Saramago utiliza nessa obra, descrevendo o momento de sua morte como o início da vida da borboleta, não parece ser um exagero metafísico afirmar que a morte é também uma espécie de transformação da vida. E que suspender a morte (ainda que temporariamente) é congelar a vida. E, no estado de suspensão em que a vida se encontra, de fora, a morte nos observa como um Big Brother: parada, apenas esperando o momento de dar o bote.

 

É curioso notar, especialmente nas edições brasileiras dos livros de José Saramago, a observação que ele faz de questão de ressaltar: "Por desejo do autor, foi mantida a ortografia vigente em Portugal". Com a recente reforma ortográfica (defendida por Saramago) que unifica a ortografia da língua portuguesa nos diversos países que a falam, a Companhia das Letras poderá economizar alguns tubos de tinta, pois o desejo do autor não se fará mais necessário. Já que falamos de um fato atual, o já octogenário autor dessas Intermitências poderia ter personificado a Morte (na obra ela cresce tanto que merece virar substantivo próprio) de maneira mais atualizada, fornecendo-lhe um pouco de tecnologia: escrever cartas, como Ela (opa, a maiúscula foi um ato falho!) faz para se comunicar com as pessoas, é um comportamento anacrônico. O e-mail é um meio bem mais rápido. Assim, ao ter que colocar a carta no envelope e selá-lo, Saramago, mesmo sem a intenção, faz com que a Morte retarde sua chegada.

 

A transformação e a ressurreição discutidas nessas Intermitências vão ao encontro da afirmação feita por Salman Rushdie em seus Versos Satânicos: "Para voltar a viver, é preciso morrer antes". Saramago também parece cantar o refrão da canção em que Raul Seixas diz: "Morte, morte, morte que talvez seja o segredo desta vida". Nesse sentido, os ultra-românticos, conhecedores dos segredos da noite, nos ensinaram o que As Intermitências da Morte nos alerta: a morte nunca dorme.

 

 

 

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O livro: José Saramago. As intermitências da morte.

São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

Lisboa: Editorial Caminho, 2005

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março, 2014