A Aliança

 

Minha aliança caiu no poço

E o poço é muito fundo

Como tirá-la de lá?

 

Minha aliança brilha no breu

E eu cá de cima choro,

— Choro?

 

Minha aliança entre água, barro

e lagartixa

Que dó faz...

Que bonito é!

 

Minha aliança no fundo do poço

Como posso vê-la cá de cima

Reluzindo, reluzindo...

 

Minha aliança no fundo do poço

Onde há muito barro

O dia é noite, é sempre noite.

 

Minha aliança agora mora é no fundo do poço

mas no dedo anelar

resiste a marca branca

 

Minha aliança não é mais minha

Agora ela é da barata d'água

Que a engoliu.

 

 

 

 

 

 

Valsinha astigmática

 

Tenho no fundo dos olhos

a visão embaralhada do amor.

Sonho com um abraço

passo o futuro

passo o compasso

no traço da dor.

Pinga uma gota

Uma lágrima só

A vingar das ruínas

E desatar os nós.

Se o gostar transcendeu

no papel

O amor em babel

No Mombaça findou.

 

 

 

 

 

 

Som mar

 

Lugarejo soar — gita jazz

Som

Blues

No ar, noir

Jaz o lugar

Dicotomia: dicção: dique são, nego não.

Provado preso desprezo.

 

 

 

 

 

 

Transcender

 

Se viver é o percorrer ciclos

Vou percorrê-los

Uniciclo,

Biciclo,

Triciclo

Até eu ser

Transcedental-ser-rotulado.

 

 

 

 

 

 

Nova identidade

 

para Bhamam Ghobadi

 

Não tenho mais braços.

No entorno de vidas fulminadas

identifico pai, mãe, irmão.

Afundo meus pés nesse barreiro de lágrimas.

Sorver viver em um solo bordô.

 

 

 

 

 

 

Andorinha

 

Maquete do céu

Branco e azul no envolto viver:

Passarinho no fio

ignorante do choque.

 

 

 

 

 

 

Estorvo

 

Eu caminhava por uma avenida escura.

 

Eu caminhava por uma avenida escura

E encontrei  uma bola.

 

Eu caminhava por uma avenida escura

encontrei uma bola e chutei-a no ar.

 

Eu caminhava por uma avenida escura,

encontrei uma bola, chutei-a no ar

e ela caiu no abismo.

 

Eu caminhava por uma avenida escura,

encontrei uma bola, chutei-a no ar, ela caiu no abismo

E ergui o meu corpo.

 

Eu caminhava por uma avenida escura,

encontrei uma bola, chutei-a no ar, ela caiu no abismo, ergui o corpo

e não consegui mais andar.

 

 

 

 

 

 

Onça II

 

Segregada

dorme a patas

a suçuarana.

Cerrados os olhos de macadânia

silentes os grunhidos.

Dorme fada no instante rosa

despontado do pelo reluzente.

 

 

 

 

 

 

Isidoro

          

Na bateia

na bateia

na bateia

risca o diamante

 

no rosto

a hora do caboclo

no brilho do punhal.

 

 

 

 

 

 

*

 

A menina deseja

o glacê do bolo

e fita o branco

Das rosas em redemoinho agarradas nas cerejas

 

— antes do parabéns ela na frente do bolo

em rodeios, gatuna.

 

um segundo é o tempo

o corpo e o bolo

e a sensação incontida

de ter na língua

o que lhe traz no dedo:

o bolo é dela.

 

 

 

 

 

 

O coração como engrenagem

 

Uma passarinha voava

Um passarinho olhava

A gravidade do ar acabou

 

Passarinho ficou flutuando

Passarinha caiu de amor.

 

 

 

 

 

 

Timidez

 

Move, contida, as ancas

ri em parcelas

na horizontal, carnaval.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[imagens ©martha maia]

 

 

 

 

Simone de Andrade Neves (Belo Horizonte/MG, 1974).  Poeta. Aos dezenove anos, publicou o livro de poemas e textos O coração como engrenagem. Tem publicações em diversos periódicos, entre eles, Suplemento Literário de Minas Gerais, Revista Mininas (MG/SP), Revista Polichinello (PA), Revista Poesia Sempre - Fundação Biblioteca Nacional (2011). Participou, como convidada, do projeto "Arte no Ônibus", em 2006, e da Pelada poética (Belo Horizonte: Scriptum, 2010).
 
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