se aguça o perfume dos gerânios

 

 

se aguça o perfume dos gerânios

na lua cheia a terra abranda a dor

logo as profundidades da mágoa

tempestades se aproximam

e essa dor que corta afiada

sangue escuro que jorra

 

que há de errado?

nas ruas desertas apesar do luar

plantas carnívoras visível solidão

morro acima onde as amendoeiras

são negras e retorcidas

imóvel sob a lua branca rendada

 

lá embaixo o mar distante

sentamos afastados nas pedras

tudo pode acontecer

o tempo todo cresce a distancia

o erro invade tudo sufoca a casa

envenenando facas e garfos

 

quanto ainda resta antes da morte?

o peixe pode estar envenenado

tudo separado pelo fogo

o erro cresce na pele dificulta o toque

apesar do brilho da lua cheia

vou sair você quer vir?

 

 

 

 

 

 

nesse diálogo silencioso

 

 

nesse diálogo silencioso

rascunho de mim mesmo

me apago e me inverto

 

nesse poder supremo

sou juiz e carrasco

me absolvo me condeno

esqueço refaço treino

 

momento suspenso

traços de pensamento

livre realizo milagres

 

 

 

 

 

 

cozinhar ao contrário

 

 

cozinhar ao contrário

de dentro pra fora

feito o primeiro canto

inda dentro do ovo

 

sacrifício da primavera

alegria da mudez

nada pronunciar

 

caroço no fruto

solidão cobrindo tudo

pele como muro

 

tudo em movimento

tinta placenta canto

inda dentro de mim

 

 

 

 

 

 

as fazedoras de anjo

 

 

as fazedoras de anjo

passaram por aqui

entraram e esperam dançando

como eu esperei dançando

a vida toda ele cozinhar pra mim

 

saiu enfim de mim uma boca

sedenta e perversa senhora

que me engolia

(cabeça pregada em poste alto

até que o tempo a consuma)

 

oito de abril

hospital rothschild

chambre 223

café água e croissant

 

procurei um amuleto e esse me encontrou

aliviado espera vc sair de quase

três horas de uma — othoplastie —

porque vc quis

 

esqueço o mau humor da equipe médica

mesmo com essa dor insuportável no meu braço

faço projetos de alegria me apego ao pouco de boa vontade

e no silêncio mais completo espero

 

rostos e olhos apressados

me fazem crer que foi tudo bem

vc esta na sala de revéille

e deve vir a qualquer hora

 

meu grande insubmisso

que vai celebrar mais um ano

daqui a poucos dias

 

em frente o butttes de chaumont

inteiro dança enquanto

homens bons fazem o mal

e o mal se faz por homens bons

 

se vão para o inferno ou para o céu

a decisão será deles

e não de um deus

 

as fazedoras de anjo murmuram

de quarto em quarto aliviando

céus infernos e dores

 

il fait beau

 

um bebê acabou

de nascer

e grita em mim

 

 

 

 

 

 

acordo antes

 

 

acordo antes

preparo a mesa

escolho um por um

os biscoitos o leite fresco

o primeiro café

 

decoro a mesa

separo as facas

limpo os copos

afasto as moscas

dos pães frescos

aliso com a mão

cada assento

acariciando o tecido

das cadeiras

cada uma

na distância certa

para que eles possam

sem esforço

se sentar

 

na alegria

 

quando acordarem

tudo pronto

não estarei mais aqui

o primeiro gole de leite

as pétalas das flores

os olhos acostumados

 

sozinhos entre eles

sem perceberem

nem presença

nem ausência

saberão que preparei

mais uma vez

a mesa

 

 

 

 

 

 

acima

 

 

acima

a sujeira dos vitrais

os bordados da catedral

luz que não se vê

 

em nós

ensurdecido

o silêncio dos esquecidos

 

no tempo de viver

a eternidade não existe mais

 

 

 

 

 

 

poemas são livres

 

 

poemas são livres

saem quando querem

pra caçar

 

inesperados

sabem no escuro

não fazem barulho

 

ecos de silêncio

são como gatos

o poema é um gato

 

silêncio de dentro

imóvel momento

coagulado

 

mais forte que a morte

com muitas vidas

atacam

 

como eu e você

 

 

 

 

 

 

no escuro

 

 

no escuro

tirando

o sapato

meio caindo

abrindo a porta

com cuidado

embriagada

falando baixinho

tropeçando e rindo

chorando um pouco

limpando o rosto

fazendo shhhhhh

com o dedo

no movimento

do corpo

no escuro

da madrugada

me flagrei

irremediavelmente

só e descalça

voltando

pra mim mesma

 

 

 

 

 

 

passou por aqui correndo

 

 

passou por aqui correndo

levantou o braço e disse

sim!

 

passei por lá correndo

quase morrendo

levantei o braço e disse

sim!

 

passaremos por ali mais tarde

entraremos sem pressa

e depois do café

braço a braço

nos diremos sim!

 

sim?

 

 

 

 

 

 

castanha brasa e fumaça

 

 

castanha brasa e fumaça

manhã descarnada

promenade à paris

 

passage estreita em montparnasse

impalpável impressionista

rimbaud absinto e marfim

 

a beleza foge não dura

verlaine e debussy

repetiram pra mim

 

desço espantando corvos

o eterno transitório

a beleza do mal sim!

 

(baudelaire carvão e jasmim)

 

no sena a mulher declama

aponta a lama que virou ouro

não falo do que é belo

só do que pode servir

 

o silêncio me empurra

feito destino

enfio minhas mãos nos bolsos

reinventando outras emoções

o vento me descabela

me penetra me desmancha

como açúcar na água

 

o traço de giz no chão

é minha casa enfim!

 

 

 

 

 

 

algéria a shariá e os rostos daqui

 

 

algéria a shariá e os rostos daqui

a violência no tato e os rostos daqui

pedaços largados se despedaçam

se arruínam nos rostos daqui

 

calado o amor olha — só o amor encara —

e quanto mais tudo apodrece

mais o amor fala

do ódio desses tempos daqui

 

 

 

 

 

 

nigéria negra luz

 

 

nigéria negra luz

nigéria sem guerra

nigéria a bela

 

antes

nos meus vinte anos

cheguei no tempo do ramadã

no tempo da kola nos dentes vermelhos

sorridentes misturados de miséria

nigéria

 

ah! kaduna

suas africanas

todas belas

porte esguio

finas

 

marfim roubado nos campos vastos

marcados por pés descalços

 

alá

que nesse tempo vivia tão longe

escondido

no coração dos homens

 

na oração

o canto do fim da tarde

com os pés lavados

o corpo ajoelhado no tapete sagrado

 

o olhar suplicando pra meca

o terço muçulmano na mão

a oração o canto a união

o sol se convidando

secando

 

a dança

os dentes o acara

a pepe

sua pimenta

as cabras as flautas

energia

vida

 

nigéria kaduna sokôto mulheres

 

a tinta preta na sola do pé

na palma da mão

pros dias de festa

 

tanta beleza

no rosto a pintura

no pescoço o marfim

no corpo alguns panos

nas costas a cria o jejum

 

a bênção no final que vem de lá

através da wata

sua lua cheia

a festa

então a grande festa pra alá

as danças os cantos a fé

 

o passado recente sempre presente

biafra guerra homem branco

 

os baobás

suas tribos

a terra

o odor da terra

 

cabras camelos lagartos pelos

dentes brancos mágica no olhar

simplesmente isso

simplesmente belo

simplesmente povo vivendo ar

 

kano kontagora bacita zulu jebba

vibração amor calor

wiwi seu fumo na roda

cerveja bob marley

corrente presentes troca

o fogo a vigília a noite

as armas

 

"uortiguile" "tiguila noco adela"

 

meus amigos

babaiô

alassa

ali

adamu

garba

 

o canto a dança a pele

cadeia de olhares

 

nigéria a bela

antes da guerra

da corrupção

do medo dos homens

da rebelião

da injustiça dos homens

da ingratidão

 

pedir perdão

pedir perdão

 

 

[imagens georgia o'keeffe]

 

 

 

 

 

Patricia Laura Figueiredo dedicou-se à poesia e ao teatro e mora em Paris desde 1990. Escreve o blogue http://www.patlaura.blogspot.com e publicou o livro de poesia Poemas Sem Nome (Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2011) em edição bilíngue (português/francês). Participou da coletânea de poemas Amar Verbo Atemporal, org. Celina Portocarrero (Rio de Janeiro: Rocco, 2012). Honrosamente, tem um poema no livro de Tavinho Paes, Sólida Solidão (2012) e outro poema no livro do artista plástico Thomas Shonnauer, na Alemanha (2013). Prepara seu segundo livro, No Ritmo das Agulhas. Vive entre dois mares.