Entre o antes e o depois

 

 

despejo os olhos pela janela

e observo-os em voo cego

consumir as cores da cidade

 

posto entre mim e o que vejo

tudo parece pequeno e lento

sobretudo todo o amor que sinto

 

posto entre o sim e o que nego

tudo padece de entendimento

sobretudo todo desejo que limo

 

posto entre o fim e a eternidade

a ótica do medo

é a lógica do caos de meio-dia

 

as apostas estão encerradas

o tempo mostra as cartas

Royal Straight Flush

 

 

 

 

 

 

Ondas nervosas explodem na areia fina

 

 

desde que a indigência fincou bandeira

nas ranhuras viscerais de minhas metades

não lembro meu nome

nem ao menos imagino a rota percorrida

até esta borda de hemisfério

e já não interessa juntar cacos

espalhados pela areia fina

desde que amanheci repleto de outro

quando ainda não acreditava em sereias

e sequer desejava amores inteiros

 

 

 

 

 

 

Neste mundo de universos sobrepostos, os medos imaginários são reais

 

o trânsito segue caótico

flutuando em garrafas pet

nessa frigideira asfáltica

enquanto hienas famintas

devoram carcaças de desejos

abandonadas nas esquinas da cidade

 

 

 

 

 

 

O mergulho no espelho

 

 

o mergulho fundo e imprevisível

onde os demônios entocados sobrevivem ao sol

revela-se urgente e voraz

 

é inútil postar-se às margens do espelho

onde o nada letárgico é tudo que há

 

 

é inútil resistir ao vazio submerso

onde brota a angústia essencial

e é revelada a estrutura monolítica do tempo

 

 

 

 

 

 

A idade do tempo

 

 

poema nasce órfão de si mesmo

vazado de ventres indigentes

sinóptico e infinito

envelhecido

ainda que recém-nascido

reciclado

mesmo que sempre o mesmo

improvável

ainda que possível

necessário

ainda que tardio

ausente

mesmo que ao alcance das mãos

tumultuado

ainda que silencioso

açodado

mesmo que sempre tardio

seu

ainda que pareça ter sido meu

 

 

 

 

 

 

O silêncio espreita a cordilheira de mistérios espraiados na fronteira de

seu olhar

 

 

do sopé de encostas azuladas

encimado por fieiras de pedras escorregadias

não se vê o cume arredio

 

uma névoa densa e clara

apagara o topo inalcançável

 

resta instar ao acaso

que aja a favor da sorte

e remova a distância entre os infinitos

 

resta a imobilidade

ante o deserto silencioso e vago

 

 

 

 

 

 

Após o silêncio, reticências

 

 

um ectoplasma enfartado de cor

gravita grávido de luz

enquanto meus olhos orbitam

as valas escuras de sua nudez

e enxertam o imaginário

perdido no caminho

entre mim e o que vejo

 

 

 

 

[Do livro Entre mim e o que vejo. Brasília: Thesaurus, 2011]

 

 

 

 

 

o amor é transmitido

de pessoa a peçonha

 

 

puderam asseverar

depois de um ecocardiograma

a existência de um coração ofídico

 

inimaginável que houvesse

porquanto um sorriso devastador

era tudo que via

 

não notara o corpo tubular

a língua bifurcada

a pele fria enrodilhada em mim

 

 

 

 

 

 

 

flor do cerrado

 

 

sob o cinza seco do outono

o sol despeja ouro

sobre o cerrado contorcido de dor

 

é quase noite

e as flores do ipê amarelo caem

sobre o chão calcinado

 

nesse relevo inóspito

uma única flor pende viva

e vaza a tez monocromática

 

ainda é quase noite

e ainda caem flores do ipê amarelo

sobre o chão calcinado

 

 

 

 

 

 

beco sem saída

 

 

desde a semana passada

porque fui despejado das ruas

moro na mesma casa

que há anos mora em mim

 

 

 

 

 

 

rebelião

 

 

as horas finalmente escaparam do relógio

 

o tempo parou

 

os ponteiros perplexos

apontavam o vazio circular

 

sob o olhar estático da estação da cidade

a espera agonizava sobre os trilhos vazios

 

o infinito

há horas debruçado na janela

ainda contempla a ausência muda

 

 

 

 

 

 

a vida pela hora da morte

 

 

o morto experimentou o esquife de jacarandá

e gostou

 

já encasulado

cruzou os dedos sobre o peito

alinhou as costas

estalou os pés

e sentiu-se horizontalmente pleno

 

pleno da ausência de si mesmo

pleno da ausência de si mesmo

 

mas então ouviu o preço do conforto

 

pagamento à vista ou parcelado

 

e de um salto

postou-se verticalmente aceso

 

aceso como se a vida prosseguisse

 

aborrecido e ensimesmado

lamentou encontrar as coisas

tão pela hora da morte

 

 

 

 

 

 

fiquei por lá

extasiado

pela improvável

capacidade de voar,

apesar da

                 estranheza

                    estética

 

 

sim

havia em mim

um Gregor Samsa

naquela manhã cinzenta

 

da cabeça encurtada

subtriangularmente disposta

agora pendiam longas antenas

kafka

pela janela deixada aberta

desci até o térreo

já adaptado às múltiplas pernas

 

atadas ao corpo abaulado

asas improváveis

suspenderam-me em voo breve

até o tronco rugoso da Ingá

 

 

 

[Do livro Vão. Brasília: Thesaurus, 2013]

 

 

 

[imagens ©matthew xavier]

 

 

 

Morvan Ulhoa é poeta, artista plástico e agente cultural do Distrito Federal. Seus poemas estão publicados em antologias. Com diversas premiações em concursos literários, foi menção honrosa no Concurso Internacional Dar Voz à Poesia, de Portugal, e, por três vezes, finalista do Prêmio Sesc de poesia. Publicou Sobretudo poesia (2006), Entre mim e o que vejo (2011) e Vão (2013).