"Quarta-feira de Cinzas", poema que inicia e dá nome ao livro, é comissão de frente e enredo da criação de Oleg Almeida. Do resíduo, das cinzas, depois de uma orgíaca manifestação popular, que é apenas um mote para o poeta, renasce o poema.

O centro do mundo, uma ritualística recriada em um quarto, ali, onde extinta qualquer atividade mental, apenas a presença da nudez adormecida em almíscar ou âmbar, lambida pelo sol estival, num samba imóvel, em efêmera ilha...

 

Que nada perturbe seu sono,

que dure, profundo e leve,

até terminar a fatal Quarta-feira de Cinzas.

 

O que resta não é o nada, a figura de um cadáver, mas uma nova manifestação criadora, adormecida, e não perturbem seu sono, permaneça embebida em sonhos, que assim é toda ritualística iniciativa. Mesmo que hajam cascatas caóticas d’água na nudez presente, trata-se de um samba imóvel, não morto, mas nascente. Não há vaidade no corpo nu, apenas a sutiliza do percebido pelos sentidos.

Há um ontem a pontuar o poeta, distante da atmosfera ritualística quarto, que não exigia um "por quê" nem "porquanto". Isso foi ontem... No presente, a vigília toca o que sobrou do calor do carne, da dança, do álcool, das cores fortes, dos tambores, das saudações: Viva! Viva a rainha!; e o desejo de que a adormecida, sozinha, sem vaidades, assim permaneça.

 

Quem fez da alegria a cura?

 

Mas há a quarta-feira de cinzas, o Pedro, o trabalho pesado, o sujo, o depois, a família, o espelho e a reflexão do artista:

 

— Essa é, pois, tua vida, homem de lhanas palavras?

Estás contente com ela?

— Foi Deus que nos pôs em cima do morro, não foi?

E ficamos um pouco mais perto do céu

que a gente rica!

 

Há o gari e o artista, dois outros agentes de cura das dores provocadas pelo cotidiano que não o carnaval, existiu toda uma história de fome, posse, escravidão, ditadura e de medo,

 

Borralho do qual, uma vez por ano,

escapa a fumaça da liberdade.

 

Ela dorme, rainha! Não fales mal dela, jornal implacável. A quem interessa a vida real da musa nua no centro do mundo? Se ela abusa de frutas, está com glaucoma seu pai, enfrenta, sem dúvida, certos problemas... Deixemos que permaneça rainha na paz dos adormecidos que seu sono só pertence à feroz Quarta-feira de Cinzas.

Nada é (ir)real, a vida é frouxa, circular, repetitiva, não seria mais justo durar os cinco dias?  Com seus blocos de penas douradas, roucos estrondos, e o depois os restos malcheirosos, a rotina desesperada. O carnaval é a ressaca, a soberba vazada de um desejo distante, representações.

 

Há, todavia, dois sentimentos indubitáveis:

Impaciência, com que se esperam as festas,

e apatia que lhes sucede.

 

Entardece. A rainha acordada e bem-humorada, segura de si, retorna à vida, ou a vida retorna até ela, talvez tudo não passe de um jogo de fingimento entre imagens espelhadas que

 

Não dá para ver quem está no volante,

mas algo sugere que, se não houvesse, de vez

em quando, sequer uma pérola dentro das conchas

esplêndidas, não passaria nenhum Carnaval

da fugaz Quarta-feira de Cinzas.

 

O poema esgota-se em si mesmo, ou o si-mesmo esgota-se no tempo? O que sei é que o poeta Oleg Almeida se diz gerente do sebo das emoções e das termas romanas, doutor em melancolia e lero-lero, arauto da paz, brasileiro nascido com trinta e tantos anos, no poema "Meu nome".

E harmonia segue até a página 108, com uma outra pausa para a bateria, como uma escola de samba e seus blocos, cheio de alegorias e erudições como afirma o autor em seu poema "Os jornais":

 

Testar a erudição é, sem dúvida, mais agradável

do que computar as desgraças.

   

 

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O livro: Oleg Almeida. Quarta-feira de cinzas e outros poemas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011.

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abril, 2013

 

 

 

 

Carlos Pessoa Rosa. Cronista do PNETLiteratura, editor do site meiotom poesia & prosa, tem trabalhos publicados no Cronópios. Escreveu o livro de contos A cor e a textura de uma folha de papel em branco, fruto do prêmio UBE-CEPE. Publicou Mortalis: um ensaio sobre a morte, editora LivroAberto; Sobre o nome dado e Não sei não... pelo coletivo Dulcinéia Catadora. Em 2013, lança os livros Sabenças (novela, prêmio MEC 2010) e Casa (infantil), pela Pequeño Editor, na Argentina.
 
 
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