Antes de falar sobre Barato, o livro mais recente do poeta mineiro Ricardo Pedrosa Alves (Curitiba: Editora Medusa, 2012) é necessário dizer: só por acidente o discurso poético toca o território do sentido, visto em sua acepção gramatical. Em compensação, essa linguagem capaz de atiçar uma espécie de "imaginação léxica" parece mobilizar, através de "roces semânticos" o acervo de associações subjetivas virtuais, vivas, constantemente atualizáveis no leitor que, não raro, lhe concede um sentido (ou quase sentido) a mais, mesmo precário, provisório, insuficiente a um completo e derradeiro conforto cognitivo. Talvez seja isso que faça com que o texto poético seja em certo ponto inapreensível: por que fabrica seus sentidos, à revelia "do sentido".

 Por isso a linguagem poética parece viver às voltas com a economia da compreensão, cujo viés pragmático quase sempre lhe monopoliza as ferramentas de fruição e abordagem. E, vale lembrar, é nesse contexto prenhe de funcionalidades que os conceitos parecem aderir à mente mais como agentes a serviço do hábito do que como despojos de um custoso convencimento. O texto de Ricardo Pedrosa, a rigor, não foge a essa problemática embora não se disponha a apresentar uma contribuição a seu (ou a algum outro) desenlace. Apesar de se desenvolver em uma espécie de epifania verbal, Barato não nos coloca diante de filosofias ou mitologias recomendáveis, fabulação edificante, algum prodígio de mensagem. Ao contrário, tem-se uma escrita centrada em uma espécie de desleixo criativo: perturbações morfossintáticas que dão conta de uma "polissemia nociva" (no dizer de M. M. Lotman) — nacos de informação de/formante contra certa monossemia útil.

Dado o encadeamento de suas linhas discursivas, proponho uma leitura de Barato como escrita autofágica, dizimadora de seus próprios traços e roteiros, biografemas acossados pela degradação: escrita que faz-se e desfaz-se, refazendo seu glossário em de/composição. Não por acaso o sintagma SOL, elemento ao mesmo tempo cauterizante e devorador de suas imediações, surja no livro quase como um lexema onipresente. Além desse signo cegante, palavras como água, sexo, areia, rio, osso, sangue, lama compõem uma espécie de argamassa semiótica que parece sustentar toda uma casta de derivações quase lisérgicas ("sintaxe repossessa" o autor diria); montagens, paráfrases, repetições ritualísticas, mântricas, aliterações (vide os poemas das páginas 38, 54, 114, por exemplo), enfim, toda uma liturgia centrada na lógica do erro. A propósito, creio que a foto da capa cola-se a uma radiante "física do decomposto" cara às operações dessa linguagem infecta perturbadora das noções. Mais: as cabeças desses dois peixes ostentam a craca da má consciência de um tempo: homens e mundos que começam a feder pela cabeça.

 Pretendo também ler Barato através do vazio deixado pelo movimento dessa mesma escrita que faz e desfaz seus sentidos, como se buscasse gozar inteiramente de sua oralidade (o som da fala do som). E talvez aqui o livro de Ricardo Pedrosa se identifique mais com a chamada "etnopoesia", demonstrando certa nostalgia da fala, não travasse esse livro um intenso diálogo também com diversas poéticas contemporâneas. Coincidência ou não, "vazio" ("vazar no poema o vazio", p. 15) talvez seja seu mote mais caro. Digamos, de forma resumida e arbitrária que Barato fala de impossibilidades (p. 72), de limites, perplexidades corriqueiras de que só nos aproximamos através desse tateio cego da fala falida.  Nesse caso, trata-se mais da fabulação do dizer (uivo, vagido em espiral) do que de uma escrita propositiva, isto é, com ponto de partida e de chegada programáveis. E é notável como o poeta vez por outra dá conta dessa insuficiência: "a fonte da fala secou". Daí perceber-se, em todo o curso dessa escrita, a tensão entre o ladrilho da língua contra o ladrido da fala. Todo o esfacelamento semântico de Barato revela essa irônica e paradoxal nostalgia da fala, seja pelo desdém ao "sentido" seja pelo gozo silábico de uma "fala que fale o calar": metaoralidade.

Colho, ao acaso, esses nós de esvaziamento semântico (aquele vazar no poema o vazio). E o contraditório de tudo isso é que o autor, ciente de que "nenhum escritor comunica", vale-se ainda menos de gestos que da palavra. Essa peripécia revolve aquela imagem de Ovídio — "bocas que mordem o vazio". Daí, percebe-se em Barato uma empresa no sentido de cair fora da conotação, esvaziar as coisas, os nomes das coisas, seus suportes de representação possíveis — um duradouro arremesso de seta: "o alvo é o livro vivo" (p. 110). Impasse mallarmaico: atirar as coisas num vácuo semântico ou naquela "espiral de sentidos", dando-lhes, através da contravenção verbal uma falsa topo/grafia um puro "som do acidente": significados e significantes extraviados de suas ênfases morais; destruição do texto e contexto.

Às vezes, Barato aproxima-se de um discurso que transcorre quase sem ancoragem semântica, melhor dizendo, sobre sentidos movediços (a coisa nunca é ela coisa, o ácido nunca é o ácido), descortinando sonoras cópulas de ruídos. Sem pontos de estabilidade, sem zonas poéticas privilegiadas (onda polissêmica que tudo expulsa e tudo atrai), seus poemas nos colocam em franco desconforto cognitivo:

 

 

a carne é dura e escreve como palavra/

Não há palavra que escreva água

 

Ou

 

(esses lagos são de ácido profundo)

Esses lagos são de óleo profundo

 

 

Mas é nessa falha provocada pelos deslizamentos dos sentidos que o autor mergulha seus biografemas, seu jogo intenso de cores, acordes, granulações de sentidos periféricos e desestruturantes. Poemas dentro de poemas, solos distorcidos de vocábulos que se contaminam: linguagem sem adensamentos morais, mais viral que virulenta. Diria, com Ramon Xirau, "estranha floração de biografemas e erupção poéticas" se o "poético" não soasse aqui tão dispensável. Com efeito, mais comete o poeta incisões dissonantes no poético ("o ladrável") que um gesto verbal votado a um "estado lírico". "Desalinho lingual", "língua hileia" contra o leguleio, "rodopio de certezas" (bem próximas da "espiral de um mundo de certezas" do seu livro anterior Desencantos Mínimos (São Paulo: Iluminuras, 1996)

A título de ilustração dessa peripécia, destaco o poema da página 74, "é esse discurso". Aqui algo em suspensão, quando o autor detona radicalmente os significados, proposital fratura sintática, femural, o vallejiano fragelo da fala, não em busca do insólito da derivação mas do tortuoso, a consciência do insuficiente da nomeação e da intermediação dos conceitos. Uma sorte de gagueira fabril e febril, escavando na superfície da linguagem vazios de "pura interrupção", uma "fissura"; que as palavras retinam a par com seus vazios significantes, suas punções na ilharga de suas óbvias referências, "vagidos em espiral", "bumerangue do sentido" — são chaves que se abrem para esse ir e vir dos sentidos: cismo/grafia mallarmaica. Veja-se também o poema "o que a onda deixa na volta?", p. 33):

 

 

areia envolveu o corpo, cova, agora

glauco ele nela está, pirotécnicos soltos

dentro do morto, sombra caiada

em cada grânulo, os maiandros pétreos,      frisos

e

flutua fresco de manhãs lufadas e

 

como

 

sempre    a onda beleza dela, num rapto,

    lambeu o, levou

  

 o corpo

 

quase

 

tão

 

le                      -                               ve

 

que

 

não

 

hou                   -                               ve

 

 

Chamo a atenção para esse texto. É certo que estamos diante de uma gradual rarefação discursiva, comum a outros momentos do livro. No entanto, vemos aqui que tanto a desintegração sintática dos versos, quanto o esfacelamento dos signos (desde a ossatura de seus étimos), dão conta do espalhamento de um corpo putrefato, refletivo na dessimetria dos parágrafos. Uma dramática degradação corrói a integridade dos versos mergulhando-os em uma decomposição ideográfica. O poema, antes inteiro, vai tomando aos poucos uma dicção árida, quase monossilábica, órfã de contornos: fundo e forma refazendo os afazeres da onda que carrega os detritos semióticos de uma presença à deriva.

Na conhecida classificação de Roland Barthes, digamos que a poesia de Ricardo Pedrosa Alves apresenta-se menos como texto de prazer do que "texto de fruição", constituído de elementos que desconfortam, de certa forma um procedimento até comum nas esmeradas e eruditas construções contemporâneas. No entanto, o texto a que me atenho de certa forma e para ficar somente naquela classificação, prende-me a atenção pela desregrada afeição à potência do dito, à fala como extensão negativa do próprio conhecimento, enfim, pela recusa à comunicação meramente "erudita". E se Barthes fala em "interstício da fruição", é bem possível que ele tenha visto o texto literário certamente como um objeto composto não somente por elementos lógicos e ideológicos facilmente hierarquizados. Em Barato tem-se uma linguagem crítica e impetuosa com seu entorno e ao mesmo tempo terna com sua vasta malha de afetos (e afecções); o poeta vai fluindo suas "microcartografias das sensações" como um incidente de comunhão, aproximação, interferência, convívio tenso e prazeroso, sem o enfadonho "culto da proeza e do brilhantismo" (Bordieu).

Enfim, tomo a desmesura de Ricardo Pedrosa Alves como crítica à própria ilusão totalizante. Uma deriva calculada. Não portadora de uma energia fundante, fraudulenta, inaugural, rivalizadora de mundos e sistemas — nesse ponto é paradoxalmente contida, eis que decorrente do que André Dick chama de uma "linguagem tão expansiva quanto controlada". Mas esse exato expandido de Pedrosa, ressalte-se, não delineia nem delibera sobre um drama social específico, embora seja palpável em suas linhas esse "suco podre das significações", que pavimenta nosso viver e dizer à míngua. Como autêntico poeta da contemporaneidade, fastioso de nomear e ao mesmo tempo cultivando um "vagir-se em segredo", ele transita por todas essas margens suspeitas do real corrompido, calcando sua superfície indecidível: o chão, assíduo à festa do intelecto e colhendo os frutos da dança: um autêntico dançante móbile sintático.

 

 

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O livro: Ricardo Pedrosa Alves. Barato.

Curitiba: Medusa, 2011, 156 págs.

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dezembro, 2013

 

 

 

 

Cândido Rolim (1965, Várzea Alegre, CE). Livros publicados: Rios de Mim (1982), Arauto (1988), Exemplos Alados (1997), Pedra Habitada (2002) e Camisa qual (Éblis, Porto Alegre, 2010). Artigos sobre a poesia do autor: "O Alvo Incerto da Pedra" (Ronald Augusto, Jornal de Poesia-web), "Mais poesia em tempo de pobreza" (Ricardo Aleixo, Suplemento Cultural Diário do Nordeste — Cultura, 28/08/1988), "Arauto: mensageiro da morte que vive" (Márcio Almeida, Estado de Minas, 09/06/88), "Os tempos de leitura da poesia" (Ademir Demarchi, Rascunho, 24/10/2003), "A Ressurreição da Pedra" (Batista de Lima, O Povo, Fortaleza/CE 12/03/2004), "Uma morada para o poema" (Carlos Gildemar Pontes, Correio das Artes, João Pessoa, 8 e 9 de maio de 2004), "A poesia da pedra transfigurada" (Batista de Lima, Diário do Nordeste, 30/07/2005). Tem artigos, resenhas e ensaios sobre poesia publicados em revistas do Brasil e sites de literatura: Babel (SC/SP), Porto& Vírgula (RS), Caos Portátil (CE), Cronópios [www.cronopios.com.br], Famigerado [www.famigerado.com], Germina [www.germinaliteratura.com.br], Clareira [www.clareira.naselva.com], Bula [www.revistabula.com.br], Sibila [www.sibila.com.br], entre outros. Vive em Fortaleza/CE.
 
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