Luas de Júpiter,

melissoantes palavras,

qual volitores

bólides siderais

cruzam os turvos e glaucos céus

anunciando a nova e inaudita poética.

Marmóreo mistério, grafia abissal

do espaço constelado.

Transléxico cromagnético de imagens prismáticas.

Plurífonas e concisas transvogais

singrando a campânula celestial, ressoando

os clarins roseourados da aurora

 

(Alberto Marsicano, poema-prefácio

para Luas de Júpiter, de Beatriz Amaral)

 

 

Esse poema de Alberto Marsicano, prefácio de Luas de Júpiter, é uma grande escala em doze tons vibráteis e linhas transcósmicas com que o mestre/músico/poeta/filósofo/tradutor presenteou-me, em junho de 2007. Desprende-se das palavras o animus melódico especial, em que cada sílaba, íntegra e plena, é também fragmento de um tear infinito, ou, como escreve o próprio Marsicano, insere-se na "grafia abissal no espaço constelado". A natureza prismática e o caráter transléxico que ele próprio identifica no meu texto poético, revela ressonâncias que, entre nós, se multiplicaram, em décadas de diálogo.

 

 

 

© Roberto Vilela [lançamento do livro Planagem, de Beatriz Amaral, 1998]

 

 

Na confluência entre a música e os idiomalabarismos de plúrimas portas, aliterações dançantes fazem voo galáctico, reinando nas frestas da expressividade nas quais o instrumento-grafema se diz cromático e transmigrante em audácias lúdicas. Nas sendas solares criadas por Alberto Marsicano, as trilhas se expandem, germinando silêncios, projetos e afetos. Fios sonoros entretecem fibras de um mosaico inusitadamente belo: rios  circundam um caleidoscópio de culturas, transignificando novas águas de cristalina elegância. Azul – intersecção de horizontes, em dúzias de volumes e descompassos recompostos. Em contraponto de desencontrários teares, sílabas azuladas redesenham órbitas na via láctea. Inexistem fronteiras. Um sitar contém em suas cordas todas as hipóteses – um vento tênue e seu sopro, como brisas/brasas – leves arpejos transpostos inauguram o toque. Cor no centro da cor. Lilás – híbrido canto em que sabiás li-li-lam entre asas e lilases, na linhagem de listras, entre as instâncias polifônicas do anil. Luzes que se aninham entre orquídeas, lótus e tulipas. Fonte de pétalas e pássaros. Estrelas no trânsito das ilhas alargam a lira numa pira acesa de improvisos. Olhos redespertos. Fluxo de cores emergindo re/des/contínuas e entreabertas. Vermelho – ígneos dias de incandescente vibravida. No centro da cifra, o olho do fogo em revesúvio que se alastra – amplo espectro de calores e vapores que desfia os desafios / redesconcerta nítidos e coloridos círculos triângulos losangos em plural de formas – transluminares poliedros – signantia de rubis entre rotas e portas de respostas. Amarelodiatônicas margens sinalizam tempo e contraponto – amarelo que desfia os dias de outro dia mais um dia – outrossol - rede pede o toque dos dedos - nascente e mítico desenho de um enredo – tocam sem toques o começo das palavras – séries de células-sílabas esculpindo auroras – plural de páginas – a cor do pincel tinge o que atinge – a luz que as escreve, ouro. Verde – remate de móbiles, franjas de selva e primavera – aves na curva da esquina e no curso das perguntas, linhas-clorofilas traçam rastros de palavras – ponte de nexos e espelhos transintáticos – borboletas viandantes em risco – no imprevisto de horas mutantes – na penumbra, casulos de um tempo de seda.

 

 

poema sem palavras

portão sem portas

harpa sem cordas

 

(Alberto Marsicano, em Sendas Solares)

 

 

E é na grande escala modal entoada pelo sitar — que o zenpoema sem palavras delineia o expressivo silêncio dos afetos / aqui, na intersecção entre os fios desconexos do cotidiano. Há a vibravida-floresta-deserto-mosaico, e os sons do sitar de Marsicano crescem e se alargam, num diapasão alado, incessantes como a luz de uma fermata, na infinita invenção de estranhezas, no esplendor de uma aurora sempre-mais-que-agora, quando mais livres, dançam, em mosaicósmica aquarela de células melódicas, melismas e fluxos sonoros, num vácuo de paradoxos minimilimétricos e quase re/des/feitos. O portão desconhece as portas: nele, passagens e amálgamas de enredos tocam-se na leve força dos dedos. Intacto começo sem começos. Luminar reabre sobre os olhos um clarão — e revejo o amigo, mestre de mestres, cuja trajetória estética e humana não parece ter tido um início, mas somente um sempre. Marsicano — o Mestre em cuja companhia alargamos as maiores fronteiras, no vasto entrelaçamento de culturas e idiomas. O adolescente entusiasmado com os estudos de violão migrou para o sitar indiano, ganhando mundo e estudou na Universidade de Benares, tornando-se discípulo de Ravi Shankar e de Krishna Chakravarty — de quem sempre nos contava, sorrindo, histórias incríveis — e tornou-se Mestre. Filósofo graduado pela USP, músico, poeta, tradutor, ensaísta, professor, escritor legou-nos uma obra tão multifacetada e genial como cada um de seus objetos estéticos. Introdutor do sitar indiano clássico no Brasil — um dos maiores músicos do mundo em seu instrumento — Marsicano teve o trabalho reconhecido e recebeu homenagem especial do governo da Índia, no cinquentenário da independência do país, em 1997. Seus discos Benares, Impressionismos, Raga do Cerrado, Quintessência, Eletric Sitar e Sitar Hendrix (indicado ao Prêmio Grammy) revelam o universo extraordinariamente híbrido em que inseriu a nobreza, a elegância e a delicadeza de seu instrumento. O encontro dom Haroldo de Campos marcou uma amizade/parceria especial e nos legou o belíssimo CD Isto não é um livro de viagem. Justamente por intermédio de Haroldo de Campos, ainda nos anos oitenta, conheci pessoalmente Marsicano, cujo trabalho já acompanhava — época em eu estudava música erudita (violão clássico). E nos tornamos amigos, entusiasmando-nos mutuamente a cada projeto. Juntos, realizamos leituras poéticas a partir de meados dos anos 1990, e celebramos o nascimento de vários de meus livros (Planagem/1998, Alquimia dos Círculos/2003, Luas de Júpiter/2007, A Transmutação Metalinguística na Poética de Edgard Braga/2013). Juntos homenageamos Haroldo de Campos em várias edições da HORA H. E juntos gravamos o CD Ressonâncias, lançado em 21 de agosto de 2010, contendo poemas de meus livros e dois poemas de Haroldo de Campos — A Poesia explicada em Tenerife 1 e A Poesia explicada em Tenerife 2 (ambos do livro Crisantempo) — conjugados aos belíssimos ragas e às improvisações especiais de seu sitar. Algumas das faixas do CD foram transformadas em vídeos pelo videoartista Grima Grimaldi.

 

 

© Nina Moraes

 

 

A atividade poética de Marsicano — ele mesmo um poeta de rara expressividade, autor de Idiomalabarismos e Sendas Solares, o levou à prática da tradução. E Marsicano, com tear verbal de mestre, traduziu Bashô, Hashin, Kitô, Ryota, Buson, Issa. Traduziu poesia coreana. Traduziu Blake, Wordsworth, Shelley, Keats. Rimbaud por ele mesmo e Jim Morrison por ele mesmo são outros exemplos de suas extraordinárias incursões pelo universo poético ocidental. Marsicano também publicou A Música Clássica da Índia e traduziu Conversas com Gaudí, de Cesar Martinell Brunell, entre outros. Em parceria com John Milton, publicou O Olho Imóvel pela Força da Harmonia, contendo traduções de William Wordsworth. Como escritor, também presenteou os leitores com suas Crônicas Marsicanas, deliciosos relatos de que me deu o prazer de ler os originais, antes de publicá-los.  Em seus muitos projetos desenvolvidos concomitantemente, iniciados, concebidos ou interrompidos — a presença constante de talentos jovens que identificava com sua antena única. Nesse caleidoscópio de multicriativos movimentos, trans/circula a luz de Alberto Marsicano, que agora atinge e conquista o tempo dos infinitos. Sempre máximo no mínimo, como o universo de um relâmpago transpoético ou, nas sábias palavras de Haroldo de Campos ao prefaciar, com um poema, uma das obras de Marsicano:

 

 

pré-haicai (para marsicano)

 

num relâmpago

o tigre

atrás da

corça

(isso

disse

sousândrade)

ou:

tiro nas

lebres de

vidro

do

invisível

(cabral:

falou)

assim a

multi-

mínima

arte do

hai-

cai

-bashô buson issa

(& outros ou-

tros) a

(vooflor)

borboleta

e o ramo

onde ela

pousa

 

Haroldo de Campos, abr/maio 1988

 

 

 

Referências

 

AMARAL, Beatriz. Luas de Júpiter (Belo Horizonte: Anome Livros, 2007. Poemas. Prefácio de Alberto Marsicano).

AMARAL, Beatriz. Raga Mosaicósmico para Alberto Marsicano (Piracicaba: Linguagem Viva, p. 5, agosto de 2013).

AMARAL, Beatriz e MARSICANO, Alberto. Ressonâncias (CD poesia/voz/sitar, MCK, 2010).

AMARAL, Beatriz. CD Ressonâncias Poemas "Índigo", "Peixes", "Tecido". Disponível em <http://www.beatrizhramaral.com.br>

CAMPOS, Haroldo de. Crisantempo (São Paulo: Perspectiva, Coleção Signos Poesia n. 24, 1998).

CÉSAR, Maria Cecília de Salles Freire. Ressonâncias de Beatriz Amaral e Alberto Marsicano, Germina — Revista de Literatura & Arte.

GRIMALDI, Grima. Tecido – Poema de Beatriz Amaral. Música de Alberto Marsicano. Vídeo de Grima Grimaldi a partir de uma das faixas do CD Ressonâncias, Arte em Vídeo.

GRIMALDI, Grima. Balada Quatro. Vídeos para os poemas "Peixes" e "Tecido", de Beatriz Amaral, faixas do CD Ressonâncias, Germina — Revista de Literatura & Arte.

MARSICANO, Alberto. Haikai (São Paulo: Oriento, 1988. Colaboração de Kensuke Tamai e Beatriz Shizuko Takenaga).

MARSICANO, Alberto. A Música Clássica da Índia (São Paulo: Perspectiva, Coleção Signos Música, n. 7, 2011).

MARSICANO, Alberto. Crônicas Marsicanas (Porto Alegre: LPM, 2007).

MARSICANO, Alberto. Sendas Solares (São Paulo: Massao Ohno / Roswhita Kempf, 1980).

MARSICANO, Alberto. Idiomalabarismos (Lisboa: Aletheia)

MARTINELL BRUNET, Cesar. Conversas com Gaudí (São Paulo: Perspectiva, Coleção Debates, 2007).