Já se disse que poesia é o escrito mais do que escrito. Se o enunciado sugere algum enigma, será facilmente decifrado pelo contato com a poesia de Gastão Cruz. O premiado poeta português foi um dos quatro finalistas da categoria poesia, em 2012, da 10ª edição do Prêmio Portugal Telecom de Literatura em Língua Portuguesa, com  Escarpas, livro editado em seu país de origem pela Assírio & Alvim, em 2010 e, aqui, pela Mobile Editorial, em 2011. A poesia provocadora de Gastão Cruz já aportara nestas terras pela coletânea A moeda do tempo e outros poemas, lançada em 2009 (Editora Língua Geral). As tardias publicações brasileiras revelam que nenhuma metáfora é necessária para se constatar que um oceano separa a poesia produzida no Brasil daquela nascida em Portugal — com perdas de lado a lado.

Gastão Cruz nasceu em Faro, Algarve, em 1941. É poeta, crítico literário, tradutor, professor, encenador: é artista. Sem hesitações, um sólido marco e figura titular da literatura lusófona contemporânea. Sua obra extensa tem início em 1961, quando, com os poetas Maria Teresa Horta, Fiama Hasse Pais Brandão, Luiza Neto Jorge e Casimiro de Brito, promove a publicação coletiva Poesia 61. Seguem-se, a partir daí, obras antológicas, mencionando-se (apenas como parcos exemplos e sem critério algum) Outro nome (1965), Teoria da fala (1972), Campânula (1974), Rua de Portugal (2004), laureado com o Grande Prêmio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores, A moeda do tempo (2009), vencedor do Prêmio Corrente d'Escritas, e o recente Observação do verão (2011).

Sim, com Gastão Cruz, o real é transfigurado em letras e, na reconstrução do  universo, evola-se em poesia. A linguagem é elevada à máxima potência pelo manejo seguro das ferramentas literárias, sempre com o cuidado e o rigor que o distinguem (o poeta, cabe dizer, tem conhecimento seguro da arte camoniana). Intertextualidade, o diálogo com outras manifestações artísticas, a musicalidade, o desafio ao leitor pela deliberada quebra dos versos e pela pontuação ausente ou escassa forjam voz poética inconfundível, objeto de não poucos estudos e pesquisas científicas.

Gastão acredita na poesia como recriação da linguagem. Vê e trabalha o poder da palavra enquanto potencial vetor para a reconfiguração da realidade, que, metamorfoseada, autoriza renascimentos, releituras, vias alternativas ou paralelas. Em Ofício, poema de Escarpas, lê-se que "assim devolve o corpo a poesia / que se confunde com o duro sopro / de quem está vivo e às vezes não respira". Não se trata, em sua dicção literária, de falsear a emoção, mas de a remodelar pelos olhos da arte. Como em Fernando Pessoa, "o poeta é um fingidor", mas "deveras sente". E sente com a intensidade de Ramo (A moeda do tempo): "Talvez eu não consiga quanto amo / ou amei teu ser dizer, talvez / como num mar que tu não vês / o meu corpo submerso seja o ramo / final que estendo já não sei a quem".

Clara a recusa a soluções fáceis ou ao comodismo de discursos sedimentados, ressalta na poesia de Gastão o trabalho de lapidação por sobre o impulso que o inspira — sempre com olhos postos na musicalidade recomendada por Verlaine. A utilização do enjambement dá aos versos força e dimensão no ambiente escrito. Ainda em Rua de Portugal está Depois dum sonho: "Não deixaste o deserto mas / árvores na casa Em sonho és / o sedutor arbusto reflectindo / para sempre o meio-dia O sol / porém desfaz-se quando as pálpebras / num ardor se entreabrem e te ocultas / nos ângulos do quarto Ausente / és pois o centro / feroz da minha vida transitas / como serpente fria no ventre / contraído escondes-te na / floresta que sem cessar se expande / onde dormíamos E erras / nos limites duma casa / destruída por raízes".

Notável ainda o diálogo que estabelece com a pintura. Um foco em Jeune homme nu assis au bord de la mer (1836), poema de As pedras negras (1995) que (re)vê o quadro homônimo de Jean-Hippolyte Flandrin, hoje no Museu do Louvre: "As coxas e o tronco formam quase / um círculo pois tem / a cabeça pousada nos joelhos / cingindo com os braços as flectidas // pernas Mármore deve ser / a matéria em que aguarda a prolongada / catástrofe de nada / já sentir // acto de pedra à espera / de ser interpretado corpo branco pensando o seu destino / inverossímil // O abandono tornou-se / rígido a dor irreal e o mar / junto do qual está representado / é apenas a perda não se sabe de quê". A mesma voltagem conecta a obra de Cruz à música (Alguns pianistas, em Escarpas): "... // Sviastolav Richter imitava / o rigor da poesia ou da leitura / que dela fazem os que leem nela / do universo a explosão futura: // em cada nota morre o universo / tal como em cada sílaba / da poesia, por isso ele tocava / em sala escura // ...".

A homenagem ao ator falecido Pedro Hestnes pungentemente remete ao seu apreço pelas artes cênicas (Pedro Hestnes, em Observação do verão): "Passou a alguns metros de onde eu / estava; não o via / há anos e nem sei / qual a última vez que com ele falara // Não o reconheci de imediato e bastou / essa dúvida para criar um hiato / na linha dos olhares de repente cruzados / dentro da tarde; receara // decerto não ter sido por mim reconhecido / enquanto que eu não fora já a tempo / de lhe mostrar que o vira e me lembrava / do seu rosto mesmo que um pouco menos // luminoso que outrora; e um remorso / absurdo me tomou por ter perdido / esse olhar hesitante / no desconcerto breve de uma tarde". O Encenador reflete o vigor poético do autor de Escarpas, ao guardar a vastidão de arte, teatro, poesia e vida em mínimo e exato corpo de poema: "O encenador conhece o seu espectáculo / Há um lugar do qual noite após noite / o torna a ver sem de ninguém ser visto // Para que volta onde já nada é seu / onde a verdade se soltou do caos / e mente agora a uma luz fictícia?"

A atualidade é uma nota irrecusável da poesia de Gastão Cruz. Mesmo as referências ao cotidiano, à experiência — tão caras a poetas mais jovens — comparecem a seus poemas, mas, neles, com os distintivos do aprofundamento, da experiência, da precisão, da criatividade, tons que dão densidade e tensão a seus versos: voo largo do que se vive ao que se escreve, garantia de bom espanto para quem lê. Som e tempo sempre presentes. O som como exteriorização da escrita a provocar o corpo; o tempo como objeto que caminha em cenários variados. Trata-se de poesia que, sutil e quase delicadamente, violenta a fala comum, dando-lhe as feições do que sobressai. Diz o poeta em Na poesia (Rua de Portugal): "Na poesia procuro uma casa onde o eco / existe sem o grito que todavia o gera".

A exemplo do que vem acontecendo com autores dedicados às narrativas, é fundamental que se volte energia para a publicação de poetas portugueses no Brasil. A interação entre vozes de diferentes gerações, latitudes e longitudes somente trará benefícios para todos os interessados nesse raro prazer que é a leitura e a produção de poesia. Não custa lembrar que, para todos nós, o português é uma pátria.

Tomando-a de A vida da poesia (2008), a Gastão imponho sua própria sentença: "contudo, a certa altura, o reconhecimento de um poeta ou de poema acaba por tornar-se uma evidência — uma evidência rara que se aprende a distinguir. Porque são sempre poucos os que estão verdadeiramente atentos à 'importância misteriosa de existir', os que conseguem 'prender a frase ao texto do universo'". Assim é Gastão Cruz. 

 

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[Artigo originalmente publicado no Jornal da Associação

Nacional de Escritores – ANE,  janeiro de 2013.]

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dezembro, 2013
 
 

 

 

Alberto Bresciani (Brasília/DF). Poeta e magistrado. Tem poemas e contos nos portais Alguma poesia, Cronópios,  Musa Rara, Antonio Miranda e em outros pontos da internet. Os jornais Rascunho e Correio Braziliense e a Revista Macondo de Literatura também veiculam seus escritos. Em 2011, publicou Incompleto movimento, poesia (Rio de Janeiro: José Olympio). Escreve o blogue Nóstres.
 
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