NOSSO PASSADO É O NOSSO FUTURO

 

 

"O tempo é a insônia da eternidade".

Mario Quintana

 

1. Há mal que vem para o bem

 

A punheta que Fernando tocava toda manhã no banho sempre lhe fazia chegar atrasado ao trabalho. O seu chefe, climaticamente acostumado, já não mais lhe perguntava o motivo e não o despedia por sua competência nitidamente percebida na firma. E, mesmo se perguntasse, ele não diria, por mais íntimo que fosse. Com ou sem crachá, ele sempre lavava as mãos antes de um duradouro aperto de puxar todo o corpo, e aproveitando a lavagem, uma das últimas ações praticadas antes de sair, vale apoiar, ao menos estando ao lado dele, que o seu atraso era de minutos, mesmo sabendo da política da pontualidade, sobretudo no setor que fora selecionado. Mas, fora isso, na firma trabalhava de patins para se superar.

 

 

2. O cego segredo do não saber

 

Quase sempre, no livro geral, uma observação no seu nome com uma feia assinatura ao lado, sendo a melhor letra que conseguia cursar. Humanamente atrasado, pensava o seu chefe, quando verificava, com gana de reclamar com os outros, o grande livro de capa preta posto na recepção de subornos. Fora a masturbação, Fernando não tinha muitos vícios. Era quase perfeito, não falando de beleza, pensando nas suas ações. Só não se vestia tão bem para o salário que ganhava. Certa manhã, no alcance de uma gozada, depois que gemeu, ele concluiu que sua matinal punheta lhe deixava o resto do dia disposto para o que dava na telha. Com o chefe, diferente dos outros, nunca perdia a cabeça. Mas argumento de punheteiro não tem vez e, por saber que não tinha, não dava.

 

 

3. Resta o respeito para os que não rebolam

 

Sem advogado de defesa, humano pelo mortal excesso de sua prática, se de mesa em mesa corresse o seu matinal método, já que era solteiro, ele passaria a ser acompanhado pela vista como o punheteiro safado da firma. Mas a vista não acompanha o olhar, pois sem nenhum critério são dadas as opiniões. Mas pegaria mal, e ele, assim como qualquer outro, não queria para si tal predicado acompanhando o nome. Sim, porque para alguns somente o corpo cresce. Alguns apontariam o lápis para dizer e depois apagar se caso se questionasse o desrespeito: Fernando Punheteiro. Na obrigação de comparecer mostrando que veio e já pequeno o espaço para assinar o seu, Fernando colocava junto ao nome que todos lhe chamavam o resto do que era seu, mas bem abreviado, para caber.  Não teria espaço para alguém gritar em maiúsculas letras o que ele passaria a ser mesmo já sendo antes o que sempre foi. Era um homem de respeito e, por consequência, por todos que por ele já foi, respeitado. Era um homem que segurava peidos e só ao ar livre e sem humanos por perto soltava um daquele de rasgar a cueca.

 

 

4. A individual descoberta dos solitários


Desde o dia que descobriu como sentir prazer sem precisar estuprar alguém, ele nunca mais parou com a mão, tal qual um escritor. No começo, ainda na sua adolescência, assim que descobriu, quando subia numa árvore, caiu fraturando o braço e se desesperando todo pela impossibilidade da habitual tentação. Sem ter vivido outras, achou aquela a pior fase de sua vida. Como tudo que transpassa algo, passou. E mesmo antes de passar ele continuava, e batia, batia sabendo estar pecando por derrubar em vão aquilo no vaso. Entrava sem bater a porta do banheiro e suava, no aperto do cômodo, se passando por um canhoto sem opção de banca. Com um saco plástico no braço engessado, como tinha lhe ensinado a mãe, sem gastar papel para se limpar, corria para o chuveiro, olhando de cabeça abaixada o que era seu, sem nada gerar. Nunca teria um filho. Mas, se tivesse, seria pela geração espontânea tão derrubada cientificamente como aquilo que do seu pinto saia. Duma gosma, chamada de gagau por alguns, a origem do mundo. Mas não teria, assim como há no método científico a hipótese e a dedução, essa é a verdade. Nenhum dos dois. Melhor deixar o tempo pôr cestas na nossa porta e esperar os adultos se explicarem pela cegonha.

 

 

5. Sem camarim pras nossas apresentações

 

Já neurótico e cansado de tocar, um dia quis cantar. Como o momento chegado era na sua casa, dessa vez não foi embaixo do chuveiro. Cantou na sala, com o karaokê ligado em gemidos detectados. Olhando para a porção do que tinha na mão, ele resolveu entender, já pensando na digestão, impedindo daquela antologia semântica (do sêmen) o acréscimo de alguns na humanidade e engoliu, com total voracidade, sem cuspir.

 

 

6. A integridade dos que procuram imitar

 

Tinha visto, num vídeo pornô, que uma mulher fizera isso e depois, sorridente, colocava o dedo na boca, mostrando estar bem e lembrando que cara o roteiro pedia antes de fechar a cena. Se é que vai ficar, o mal vem sempre depois, como a gozada que é antecipada com as sacudidas no pau. Fernando resolveu tratar a porra que dele saía como a urina de tudo que antes havia bebido e, no deserto caloroso de sua solidão, passou sempre a transformar porra em papa de aveia como conformação psicológica de sua alimentação. Pra não perder nada, gozava num pires e se alimentava antes de ir trabalhar.  

 

 

7. O suor das que eram suas

 

Como era feio ao extremo para casar, não tinha mulher, ao menos não uma definitiva para dizer que chegou. No lugar tinha raiva, porque a sua beleza ficava muito escondida, assim como a mais bonita beleza, e uma parte dela dentro da cueca e outra no interno da feia caixa que por fora ele era. Histórico que era e com uma criada identidade, era nômade por uma brecha e, sem uma pra agarrar na sua sobrevivência, as poucas que tinha duravam uma noite ao alcance de suas mãos, como marionete também nas mãos no momento duma apresentação. Mas já foi dito que o seu fogo também descobriu sozinho, lapidando o sabiá? Com funis que separavam, tal como as idades das diferentes épocas, ele era o cliente de todas elas, mas quando puxada uma conversa no ouvidinho, se o pagamento fosse o dobro do que ele oferecia, passava pra meu amorzinho em sussurros e gemidos como frenética alegria do prazer profissional. Logo quando assinaram sua carteira, ele comprou sua atual casa e daí surgiu as primeiras fêmeas a se espalhar pelos continentes de sua fixa residência, se deixando ser um sedentário a olhar suas queridinhas nômades.

 

 

8. Um programa diferente

 

Eu era o cafetão das meninas que Fernando enrabava e um dia, nas últimas glaciações, terminei indo com uma delas pro atendimento domiciliar. Percebi sua carência em tudo quando também participei e ele não estranhou. Eu tinha o contato de Fernando e uma quase formada amizade, por isso que sempre mandava as mais apertadinhas. Ninguém dava nada por ele. Nem eu, pra ninguém, fora aquilo que dou e que não é removível. As meninas todas eram pagas, sempre. Mas, como quem vê cara não vê pitoca, tirando as meninas que ele alcançava, nenhuma outra que recusava ir sabia do agoniado peso carnal carregado entre suas glabras coxas. Como raramente amigos se despem, talvez por respeito e medo de alterar a amizade, bem que deveria ser uma saudação, um ó balança aqui de uma busca profunda pelo outro quase mais que um abraço e nem eu sabia daquilo tudo. E de que sabemos? Enquanto não despirmos os corpos e as coisas de nada vamos saber. Fértil de imaginação, Fernando morreu porque tudo aquilo lhe pesava. Eu vivi, para contar. E vivo também estou para me desculpar pela mudança de narrador. O outro iria se engasgar e eu pensei falar alguma coisa enquanto pegava uma crônica de Fabrício Carpinejar. Porque quem se caga tem o direito de se lavar e, dependendo do cara, continuar. Não esquecendo que nenhuma das meninas, de verdade, lhe queria. Como quem come engole, um dia ele virou de vez e eu estava de bloco e caneta na mão para anotar.

 

 

9. Já por baixo sem querer me sufocar

 

De tudo isso, quando desci ao inferno, lembrei. Minha morte foi semelhante a dele. Morri porque pensava e, só porque pensava demais na morte, morri bem antes. Gêmeo no comportamento que somos, ele veio depois. Apressamos nossa ida, depois de mãos dadas, quando esquecemos o método que impedia a transmissão do que eu tinha. Nu e cru como entramos, saímos da cápsula injusta do mundo. Mas a verdade é que só para mostrar quem éramos pela Terra passamos e hoje, sem afta, minha língua apaga o fogo dele e as chamas que cobre o nosso corpo só apaga quando, na demora do nosso tempo, nossas mangueiras, unidas pelas mãos, começam a jorrar. Com aquilo tudo, já por baixo, não mais me deixo sufocar. Pelo contrário: assino sem querer assinar.

 

 

[imagem ©paulo madeira]

 

 

 

 

 
 
 
João Gomes (Recife/PE, 1996). Autor do e-book Testosterona (A Verba), do blogue Diário Sujo e colunista do Interpoética. É recifense e, em busca de apreensão, é facilmente encontrado no mangue da Rua da Aurora (ponto de pegação gay e seu atual campo de pesquisa). É escritor 24 horas e tem sérias obsessões sexuais acreditadas por ele como incuráveis. Foi publicado na antologia Granja. Escreve para não ter de contar de novo e para conseguir sistematizar experiências sexuais — mesmo as inventadas, assim como alguns orgasmos femininos.