Quem se Importa?

 

 

Eu sei, prometi que um dia escreveria um poema com teu nome, te descreveria assim, mas tá complicado de encaixar as malditas rimas e construir uma estrutura bela que esteja a tua altura. Tudo que tenho são vacuidades no olhar, imensidão de textos inacabados e todas as contas a pagar dos meses de julho, agosto e setembro. Semana passada fugi de um cobrador histérico, ali na Rua da Praia, sabe? De repente me vi correndo desesperadamente tentando esquivar dos transeuntes apressados e dos vendedores que se espalham, se amontoam por ali, é nessas horas que a gente deseja uma bicicleta. Ah! Não pude deixar barato, tive de reagir. Desonrar a memória dos meus antepassados na frente do meu irmão, em pleno bar. Comecei quebrando todos copos e garrafas da nossa mesa, atirando-os ao chão, tentando acompanhar o ritmo da música ambiente, não deu certo. Depois, quebrei minuciosamente todos quadros com o melhor taco de sinuca da casa, o qual roubei. Pulei o balcão e, entre goles de Jack Daniels, atirei na parede oposta todas garrafas de bebidas que não me agradam. Após, fui para a cozinha e pedi pra dona Neusa sair dali que o estrago seria grande. Fiz tudo calmamente, com a serenidade de um monge zen-budista, pra não perder a razão.  Nessa altura do meu desvario os clientes já haviam abandonado o local, com medo, pânico e curiosidade. Meu olhar não perdeu sua vacuidade habitual, mas minhas mãos pararam de tremer por alguns instantes. Jamais senti remorso, sentimento dos fracos e mentirosos. O cobrador, dono do recinto, conhecido como Darci, se encontrava escondido no banheiro, ligando pra polícia. Arranquei o celular de suas mãos, atirei no vaso e dei descarga. O infeliz era incapaz de me encarar nos olhos. Pudera eu, aos 22, ver aquele senhor aos 44 chorando feito um guri de 8, lamentei sua fraqueza e sentenciei pausadamente baixinho ao seu ouvido com ar augusto e voz levemente rouca: "Fecha essa espelunca, calcula quanto te devo incluindo os estragos de hoje, amanhã de manhã a gente acerta". Não me disse nada, só concordou com a cabeça. Percebi que, naquele momento, o que o velho mais desejava era que eu fosse embora e nunca mais surgisse em sua vida. Pensei em algum tipo de tortura sádica e psicológica, mas só pensei, pobre velhote, a cara judiada pela vida desregrada e sofrida, uma vida de merda, pobre velhote. Fui embora com um sorriso malicioso no rosto, meu taco de sinuca debaixo do braço e todas as contas a pagar dos meses de julho, agosto e setembro e mais a conta do estrago no bar do Darci, naquela tarde chuvosa de outubro, sem o interesse de buscar novos rumos, novos ares e destinos, pouco me importava pra que lado ficava a longa estrada para a liberdade, solidão, só queria chegar em casa. Cheguei, servi um copo de Jack, acendi um cigarro e fui pra janela pensar. A vida é engraçada. A vida é a única coisa que todos temos em comum, cada um com a sua. Escrever é uma atividade como qualquer outra, é como engraxar um sapato, tocar um instrumento, julgar um pobre diabo no banco dos réus, lapidar umas palavras, afiar com esmero minhas frases, mergulhar de cabeça no possível título insólito deste conto. É, eu dou título por último às minhas obras. Quem se importa?

 

 

 

 

Céu Líquido

 

 

Consumido pela insônia e a solidão, encontrava-se sentado na poltrona da sala no casarão neoclássico em Dom Feliciano. O ano era 1984, se não me engano. Gostava de ficar naquele canto escuro da casa, era seu canto, um refúgio, não se sabe de quem ou de quê. Mantinha uma das mangas da camisa dobrada até o ombro, revelando um antebraço crivado de marcas de heroína. Segurava com uma das mãos uma seringa cheia de líquido precioso, curador. Tinha plena consciência do quanto era nociva sua conduta. Mas quem se importa com conduta quando se tem heroína e sensações orgásticas jamais experimentadas, feixes de luzes multicolores transbordando pelas paredes, uivos e gemidos angelicais ecoando em sinfonia. Perambulava entre restos e rastros de noites passadas. Santos enfeitavam o altar e rezavam rezas mudas alternadas com olhares impassíveis, meros porta vozes celestiais, guiados pelos deuses que os coagem do alto de seus tronos e pedestais. Observava o desenho que os contorces do seu corpo deixavam no ar, e os respirava pra depois vomitá-los em forma de borboletas e flores astrais. Já não pensava mais na vida, dedicava-se veemente a descobrir como transformar o chão em céu e vice-versa, um antigo sonho de infância, que veio a tona assim de repente.

 

 

 

 

Rabugento

 

 

A noite aqui está fria e estrelada. O vento é tão frio que ultrapassa a carne e gela até os ossos. Gosto dessas minhas frases curtas, sem rima. É uma pena não possuir visão da lua pela minha janela. O ato de se escorar no parapeito pra pegar um vento na cara e observar o lado de fora, com ou sem cigarro, esse ato tão desapegado da casa e do interior, olhando pra fora, induz à diversas reflexões. Passei meu dia ontem escutando samba pra espantar a tristeza. Sabe como é. Deixa a tristeza pra lá. Quem dera fosse assim tão simples. Canta forte, canta alto. Deixa disso menina! Vem escutar um blues melancólico, condizente com a situação. Só sossego quando os transeuntes apressados cumprimentarem-me adequadamente. Suplico para que o casal homossexual do andar de cima pare de urrar. Que os vizinhos ao lado cessem a cantoria. E que queimem todas as luzes de natal ao fim do dia, quando as visitas se forem.

Amanhã eu arrumo a casa. Hoje só quero fazer nada e depois descansar. Pegar um ar. O bom de rimar é que rima com lar. Brigar na mesa de bar por um desentendimento no jogo de azar, mas valia dinheiro. É isso aí, menina linda dos olhos cor de mel. Já fiz algo hoje e isso é tudo que posso conceber. Não me importo se aquela nuvem negra carrega chuva e não deixa o sol brilhar, se esse vento que invade a casa altera a sensação térmica do meu corpo e me arrepia, se o criador descansou ou não. Pouco me importa os placares da rodada ou quem se deu bem noite passada. Não me interessa a cotação do dólar ou se a bolsa de valores fechou o dia em alta. Não quero saber o resumo da novela nem quais os procedimentos corretos para higienização das mãos.

Nesse momento encontro-me internado dentre do mim mesmo. Um cadáver nem morto, nem vivo. Paradoxo ambulante. Um plágio de si mesmo. Rabugento.

 

 

 

 

 

 

[imagem yuksek | always on the run]

 

 

 

 

Henrique Ribeiro da Silva bebe pouco, lê muito, mente de vez em quando e é sincero o bastante pra admitir isso. Mora em Porto Alegre e estuda faculdade nenhuma. Tem quase certeza que gosto se discute. Não sabe se vai pra frente, pra trás ou fica parado. Crê piamente que todos precisam crer em alguma coisa. Acredita que o órgão sexual feminino move montanhas e faz o mundo girar. Não consegue explicar o que escreve e há três dias não pensa que é o Batman.